Robirta dedica uma música de adoração a Champi

Robirta, sempre curiosa, sedenta de mundo, quis conhecer de perto a magia de Champi. Por isso, a partir de certo dia passou a ir regularmente às sumecas para partilhar com o resto das fiéis toda a alegria de ser Champista. A sua vida nunca mais foi a mesma. A descoberta da forma exacta como se tinha desenrolado a criação do Universo trouxe-lhe emoções tão fortes que escreveu Champi, uma música de adoração ao Grande Pinguim, gravada depois em conjunto com os Granizados. Os Granizados, um grupo de grãos-de-bico predominantemente a capella, haviam-se estreado com Robirta no surpreendente tema tribal, Batongo.

Não se identificando os Granizados com nenhuma das correntes pinguinísticas existentes, procuraram com as suas intervenções na música, trazer aos ouvintes a sua própria interpretação do Champismo, mas sem nunca fugir às palavras originais de Robirta. Contribuíram ainda de forma crucial para gravar as grasnadas a quatro vozes, tão típicas de pinguins imperadores cor-de-rosa fluorescentes, que se podem ouvir na conclusão do tema.

Aperceber-se de que tudo tinha agora uma explicação e, ainda para mais, logo uma tão simples, despoletou em Robirta um fascínio e um extâse simplesmente indescritíveis. Chegou mesmo a babar-se. Mas limpou-se com um lenço e ficou arrumado o assunto. Pelo menos dessa vez. Com algum receio, Robirta conjecturou que aquela baba estava relacionada com o nome do livro onde estavam escritas todas as verdades, o Baba do Mundo. Mas depois explicaram-lhe que se lia "B-A-Bá do Mundo". Ficou muito mais descansada. Espumar baba do mundo pela boca seria algo altamente desesperante. Sabia lá ela onde é que o mundo tinha andado com a boca.





CHAMPI
Robirta e os Granizados

A Grande Pinguinada é uma lição
De um grande Amor que me enche o coração
Bela e profunda dá-me a explicação
Quando não chego lá só com a razão

A Pinguinada dá-me a mão
Quando me vou abaixo e caio ao chão
Falo com Champi e vejo a solução
Mesmo que apenas mera ilusão

Com Champi já não pratico o mal
(pratico o mal)
Pois do juízo final
Talvez tortura com gelo acidental
(tortura, tortura)

Com Champi giram os carrosséis
(os carrosséis)
Cantamos, comemos pastéis
Temperados com as cinzas dos infiéis
(as cinzas dos infiéis)

Se às vezes pecar por distracção
(vou pecar, vou pecar)
Ele dá-me a redenção
Basta-me encher um balão
(vou encher um balão)

Com Champi deixo as vagens na Bacia
(há bacia, há bacia)
Ele faz a sua magia (há magia)
E o mundo pula de alegria
(há alegria)

A Grande Pinguinada é uma lição
De um grande Amor que me enche o coração
Bela e profunda dá-me a explicação
Quando não chego lá só com a razão

[Grasnadas de êxtase típicas
de pinguins imperadores
cor-de-rosa fluorescentes]

A Igreja Champista

Quase todas as ervilhas do mundo eram Champistas. Podiam discordar nalguns pormenores como, por exemplo, o processo exacto que levou à fecundação de Patchi e, por consequência, à génese do universo, mas na sua essência o mundo era unânime: o universo tinha começado por ser uma placa de gelo cheia de pinguins e, Champi, o Grande Pinguim, como pai solteiro, acabaria por ser o responsável, de uma forma ou de outra, por trazer ao mundo o resto do universo, num ovo que ele pensou ter gerado com Patchi, uma fêmea pinguim lindíssima, mas que afinal tinha sido simplesmente rejeitado por um pinguim chico-esperto. Resumidamente, era isto.

Não deixava de ser impressionante que, estando a ervilhandade sempre tão condenada à discórdia em quase todos os aspectos da vida em sociedade, surgisse em uníssono em matéria de criação do universo. A realidade, é que eram inúmeros os factos que apontavam para a verdade absoluta e apodítica das crenças advogadas pela Grande Pinguinada. Para começar, havia um livro com milhares de anos, chamado Baba do Mundo (pronunciado: B-A-Bá) onde toda a história da génese do universo era descrita ao mais ínfimo detalhe. As primeiras ervilhas a lerem o livro, acharam a história engraçada no campo da faca e do alguidar. Estavam, no entanto, convictas, apesar de isso não estar escrito em parte nenhuma do livro, de que se tratava de perfeita ficção e de que qualquer semelhança com a realidade seria pura coincidência. Para elas, era óbvio que o universo tinha sido regurgitado por um bisonte num momento de maior apetite. O problema foi quando se começaram a verificar todo um conjunto de profecias que estavam escritas nesse livro.

Por exemplo, no Baba do Mundo, estava preto no branco que uma ervilha de seu nome Pérfila iria entrar num restaurante no Vale da Alface às 12h56 e que iria acabar por ser expulsa por embirrar demasiado com a formatação da ementa. E isso aconteceu. Ao ínfimo detalhe. Esta e muitas outras. Quando confrontadas com essa precisão na previsão do futuro, às ervilhas não restou mais do que aceitar o Baba do Mundo como sendo a pura e integral verdade. Algumas ervilhas queixaram-se de que essas profecias mais detalhadas estavam todas invariavelmente escritas à mão, muitas vezes razuradas, numa parte mais recôndita do livro. Outras, afoitas, tentaram fazer notar o facto de que o livro tinha muitas páginas arrancadas, onde podiam ter sido escritas profecias que nunca se realizaram. Essas ervilhas não mantiveram tais ideias durante muito tempo. Principalmente porque foram todas queimadas.

As ervilhas que faziam demasiadas perguntas acerca do Baba do Mundo, chamadas de infiéis, eram usadas num ritual extremamente interessante chamado Roda, roda, carrossel. Este delicioso passatempo era, de entre os rituais de chacina, aquele que mais animava a assistência. Neste ritual, as ervilhas Champistas faziam uma fogueira e construíam um carrossel à volta dela. Depois, começavam a andar à roda em cima de girafas e de outro tipo de animais da savana, simbolizando o Equador e desta forma o limbo entre o Bem e o Mal, enquanto entoavam canções sobre o Amor Divino de Champi. A certa altura, eram despejadas umas quantas ervilhas infiéis na fogueira deixando toda a assistência ao rubro; não só podiam andar de carrossel, como ainda contemplavam carnificina. No final, eram distribuídas dúzias e mais dúzias de pastéis de nata, previamente polvilhados com as cinzas das infiéis, com que as ervilhas Champistas se deliciavam. Nestas actividades sociais, as ervilhas interiorizavam de forma estupenda que não valia a pena pôr em questão a veracidade do Baba do Mundo. E não puseram. E, assim, surgiu a Igreja Champista.

A Igreja Champista, era a expressão institucional da crença na Grande Pinguinada e, em particular, nos factos descritos no Baba do Mundo. Foram produzidos milhares e milhares de cópias do livro, ao ponto de esse se tornar o livro com mais impressões em todo o mundo. Estava em qualquer gaveta de mesinha de cabeceira de hotel. Por toda a parte, não há aldeia que não tenha um Iglu com uma escultura de um pinguim cor-de-rosa fluorescente no topo, com um ovo de ouro maciço sobre os pés, exaltando a dor e o espírito de sacrifício vividos por Champi durante o Inverno em que se formou o universo. Nesses Iglus a temperatura foi, durante séculos, exactamente a mesma que se pensa ter sido a temperatura do Inverno em que Champi viveu: -40ºC. Hoje em dia, para não contribuir para o aquecimento global, e também porque o número de fiéis tem vindo a descer, a temperatura é mantida nos +21ºC. Simbolicamente, a diferença entre -40 e 21 é precisamente 61, que foi o número de dias necessários para Patchi pôr o ovo de onde surgiria todo o universo. Nada era deixado ao acaso na Igreja Champista. As ervilhas reuniam-se nos Iglus pelo menos uma vez por semana e, no seu interior, entoavam cânticos de acasalamento de pinguim imperador, as chamadas grasnadas, com o intuito de chamar Champi e lhe comunicar os seus anseios e preocupações. Essas cerimónias eram designadas por sumecas. Havia sempre uma representante divina da Igreja de Champi a liderar as sumecas, a chamada Pósia. Durante a sumeca, a Pósia seguia um ritual de movimentos e palavras sábias que iam desde a simulação da cópula de Champi e Patchi, à própria teatralização do instante em que Patchi pôs o seu ovo. Todos os momentos relevantes desde o aparecimento de Genitália até ao momento da eclosão do univero de dentro do ovo de Champi estavam presentes nas sumecas.

As sumecas, porém, eram muito mais do que meras celebrações da criação do universo. Eram, acima de tudo, uma forma de as ervilhas se sentirem protegidas, amadas por Champi, e de terem uma luz que as guiasse na vida. As Champistas tinham razões fortes para praticar o Bem. Razões, aliás, bem mais fortes do que o mero facto de se sentirem mal por praticar maus actos e do que sentirem genuína compaixão pelas ervilhas a quem podiam fazer mal. Na realidade, as Champistas sabiam melhor do que ninguém que, no dia da sua morte, as suas almas seriam transportadas até ao Equador e, lá, Champi decidiria se elas iriam para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul. Champi era omnisciente, omnipresente e omnipotente, e iria julgar as suas acções no tão temido juízo final. Não havia maneira de lhe escapar. No Pólo Sul, aguardava-as uma vida contemplativa em que poderiam admirar Champi no seu habitat natural. Se mergulhassem um pouco nas águas em volta, poderiam encontrar as Amorosas, lulas colossais que se enrolam em torno das ervilhas, as abraçam plenas de afecto e as fazem sentir o puro Amor de Champi. Ser-lhes-ia também oferecida, como brinde, uma caneta de feltro especial com que podiam fazer desenhos no gelo. As ervilhas adoravam fazer desenhos no gelo.

Já no Pólo Norte, esperava-as o terror da tortura com gelo acidental. A tortura com gelo acidental era a pior tortura que alguma vez alguém podia ter inventado. Pior do que ouvir debates políticos, deixava a um canto os trabalhos forçados e as queimaduras com fogo por parte de homens muito fortes e vis usando ornamentos com picos. A tortura funcionava da seguinte forma. As ervilhas andavam pelo Pólo Norte a fazer a sua vida. Depois, por vezes, passavam perto delas foquinhas bebé a acartar sacos de cubos de gelo para levar a algum urso polar que queria uma bebida refrescante. (Era comum no Pólo Norte as focas bebé serem escravizadas pelos ursos polares e utilizadas nas actividades mais insignificantes.) Ora, qualquer ervilha que ali estivesse, mesmo uma ervilha que pelas suas más acções tivesse vindo parar ao Pólo Norte, iria sentir alguma compaixão pelas pobres foquinhas. Ainda para mais, elas eram extremamente fofinhas. No momento em que a compaixão estava no seu ponto máximo, uma das focas passava mais perto e deixava escorregar o saco de forma a que os cubos de gelo caíssem todos em cima da ervilha a ser torturada.

A queda do saco de gelo era totalmente propositada e tudo era feito com o único intuito de queimar com gelo a pobre ervilha. Porém, os movimentos da foquinha bebé eram tão bem forjados e feitos de forma tão subtil que nenhum observador poderia concluir objectivamente que tinha havido intenção de magoar. Nem mesmo a própria ervilha magoada. Agravava ainda a tudo isso, o facto de, assim que os cubos de gelo caíam todos, a foquinha bebé se desfazer em desculpas, fazendo a expressão típica de foquinha bebé, e começando a dizer que tudo lhe corria mal, que nunca conseguia fazer nada direito na vida, e que não era justo o patife do urso polar obrigar um animal tão indefeso a fazer trabalhos forçados. Nenhuma ervilha conseguia barafustar com a foquinha. E era isso que tornava tudo mais frustrante e revoltante nesta tortura, aquela necessidade imperiosa de explodir em todas as direcções de imediato castrada pelo medo de magoar alguém indefeso como uma foquinha bebé ternurenta. Principalmente porque a tortura se repetia vezes e vezes sem conta. Ainda assim, de cada vez que acontecia, mesmo que a milésima, era impossível ficar com a impressão de que tinha sido um acto propositado. Era esta a principal razão para não se querer ir parar ao Pólo Norte. Isso, e também, o facto de se ser esporadicamente torturada com a visão de morsas algo que, por si só, já era suficiente para afastar conscientemente qualquer pecado da vida. A somar a tudo isto, ao contrário do que se passava no Pólo Sul, não se recebia qualquer brinde; se apetecesse às ervilhas fazer um desenho no gelo, tinham que usar o próprio corpo e o gelo na pele chegava mesmo a aleijar.

A Igreja Champista sabia, no entanto, como era inato o pecado nas ervilhas. Por isso, tinha previsto mecanismos de absolvição. No final de cada sumeca, as ervilhas tinham sessões individuais com a Pósia do seu Iglu onde dissertavam sobre aquilo que elas pensavam ser os seus pecados da semana. A Pósia ouvia atentamente deliciada todas as atrocidades cometidas e, no final, passava-lhes a receita de absolvição, que não era mais do que um papel cujo único conteúdo era um número a tinta azul num tipo de letra muito apelativo. Quanto pior o pecado, maior o número na receita; o tipo de letra não era influenciado pela gravidade do pecado. Aquele número devia depois traduzir-se em igual número de actos de redenção. Um acto de redenção, também chamado trabalho de sopro, consistia em encher um balão e pendurá-lo à entrada do Iglu. Dizia-se que se o balão caísse, a ervilha não merecia absolvição; se o balão ficasse suspenso no ar, havia forte probabilidade de absolvição. Mas apenas se as ervilhas estivessem verdadeiramente arrependidas dos seus actos.

As primeiras ervilhas a praticarem os actos de redenção, compraram balões ao desbarato num supermercado e encheram-nos à boca. Verificaram envergonhadas que todos os balões que encheram, caíram. Foi então que descobriram que, se comprassem os seus balões, já cheios, numa banca de balões à porta do Iglu, eles ficavam, como que por magia, suspensos. Por isso, todas as ervilhas passaram a comprar os seus balões ali mesmo à saída da sumeca, a uma ervilha que parecia mesmo a Pósia com uma barba postiça e que utilizava um sistema especial de enchimento que envolvia uma bilha de Hélio. Tecnologia celestial e, por isso, cara. Cada balão custava cerca de 5 vagens, o preço de 10 cafés, e, por exemplo, o pecado de ter tido maus pensamentos envolvendo a vizinha do quinto esquerdo acarretava uma receita de absolvição de 10 balões, num total de 50 vagens. O pecado, literalmente, não compensava.

Era estranho que, se as ervilhas sabiam que iriam ter que pagar aqueles valores pelos pecados, os confessassem nas sessões individuais. Era muito mais fácil para elas, simplesmente não falar no assunto e poupar dinheiro para alimentar a sua família. Ainda para mais porque, para além do dinheiro gasto com os balões, as Champistas ofereciam também mensalmente 10% do seu salário à Igreja Champista para manter Champi feliz*. Porém, a Igreja Champista avisava que as ervilhas não deviam mentir acerca dos seus pecados, porque Champi estava em todo o lado e sabia exactamente o que elas andavam a fazer. Se elas não fossem absolvidas, iam para o Pólo Norte para o resto da vida. Aparentemente, isto era suficiente para manter uma sociedade inteira na linha. E manteve. Pelo menos, foi o que me disse uma amiga minha. E ela não é de mentir. Mentir é feio e faz crescer pelos na língua.

* A oferenda mensal das Champistas era dada sob a forma de vagens, deixadas na Bacia Cupular, uma bacia com uma grande cúpula à entrada do Iglu onde estava a Água Primordial, símbolo da fonte de vida. Não era seguramente coincidência que a água fosse simultaneamente a primeira substância a surgir do Vácuo Primordial, sob a forma de uma placa de gelo, e fosse ao mesmo tempo a fonte de todos os nutrientes necessários às ervilhas no seu dia-a-dia. Era tido como certo que era necessário fazer oferendas regulares na Bacia Cupular, caso contrário, Champi iria ficar irado e causaria cataclismos da pior espécie. E mesmo de outras espécies que, embora pudessem não ser a pior, fossem suficientemente más para meter medo.

A Grande Pinguinada


Há muitas teorias sobre o começo do universo. Esta é uma delas. Mas não é uma qualquer. É aquela em que quase todas as ervilhas do mundo acreditam. E, se tantas ervilhas acreditam nela e se já o fazem há vários milhares de anos, só pode ser mesmo verdade.


No início, não existia nada. Nem mesmo o verbo. Era um vazio, o chamado Vácuo Primordial. O Vácuo Primordial tinha a característica espantosa de não ter rigorosamente nada. A única coisa que tinha, por assim dizer, era existência. Só que a sua existência primava, ironicamente, pela não existência de mais nada. Podia-se dizer que o Vácuo Primordial era o expoente máximo do egoísmo. Mas como o universo nessa altura ainda era um lugar justo, os egoístas não podiam levar a melhor durante muito tempo. Assim, volvidos três minutos, apareceu uma placa de gelo que ficou ali assim a pairar no vazio. Logo a seguir, começaram a cair pinguins do céu. Céu é uma forma de expressão; vinham de cima. Quando caíam no gelo, ficavam a rebolar como se fossem ervilhas a fazer exercício no prado. Àquele conjunto da placa de gelo e dos pinguins, chamou-se mais tarde Genitália, pela razão óbvia de ter estado na génese do universo. Não se sabe exactamente como surgiu Genitália. Nem exactamente, nem mais ou menos. Não se sabe. Porém, não se fala disso porque isso não é importante. Afinal de contas, são apenas três minutos que não se compreendem.

Genitália era essencialmente feita de gelo e de pinguins. Todos pretos e brancos, como qualquer pinguim. Excepto um, que era cor-de-rosa fluorescente. Chamava-se Champi e era um pinguim imperador. Para além da cor pouco comum, Champi tinha ainda a particularidade de piscar como se fosse o cursor de um ecrã de computador. Ficava visível durante meio segundo, para depois não se ver durante outro meio segundo. Fazia um efeito engraçado quando andava porque parecia que desaparecia num sítio e aparecia noutro. Parecia e era exactamente isso que acontecia. Tirando o facto de ser cor-de-rosa fluorescente e de piscar, Champi era um pinguim em tudo igual aos outros. Era muito afável e comunicativo.

Como quase todos os pinguins imperadores, Champi queria acasalar e fazer pinguins. Quase todos porque havia também pinguins que queriam de facto copular mas que não estavam interessados em relações duradouras, muito menos em criar pinguins. Depois havia ainda outros que queriam criar pinguins, mas preferiam acasalar com pinguins do mesmo sexo e daí não era fácil surgirem novos pinguins. Mas como eles não sabiam, continuavam a tentar. Champi não sabia explicar a
razão para querer acasalar e fazer pinguins, mas era algo inato. Por isso, chegada a altura própria, passou longos dias a cortejar uma fêmea lindíssima chamada Patchi. Patchi não se interessava minimamente por ele. Por isso, um dia, Champi apanhou-a de surpresa durante o sono e resolveu o assunto. Passados 61 dias, Patchi pôs um ovo e, como todas as fêmeas imperador, passou-o ao progenitor macho, Champi, que teve que o guardar numa parte quentinha, por cima das suas patas. Entretanto criou-se um pedaço de mar alto, com peixes e orcas, à volta de Genitália. Patchi, que estava esfaimada e exausta, foi para lá encher-se de petiscos. Champi ficou ali a tomar conta do ovo. Passaram muitos meses e, de Patchi, nem sombra. Até porque não havia ainda sol. Naquele Inverno, o frio assolou Genitália como nunca tinha assolado antes. Principalmente porque nos Invernos anteriores ainda não havia Genitália. Champi resistiu corajoso ao frio polar durante vários meses. A vontade de trazer um pinguim ao mundo era tão forte que ele sabia que seria capaz de vencer qualquer cataclismo.

Certo dia, ainda Patchi passeava algures no mar alto, o ovo começou a tremer. Tremeu, tremeu, e rachou de um dos lados. Champi ficou ansioso. O seu filhote estava prestes a nascer. Champi não se conseguia conter de emoção. A casca quebrou completamente e Champi pode ver finalmente o resultado de todo o seu esforço. Para seu espanto, porém, ao invés de um pinguim bebé, lá dentro estava, sim, um universo. Champi ficou altamente decepcionado. Tinha andado todos aqueles meses, diligente, com o ovo para trás e para a frente, pensando que talvez até lhe saísse um pinguim a quem pudesse ensinar a jogar à bola, tinha superado grandes provas de coragem, de dedicação, e vai-lhe sair um universo? Era preciso azar. Champi esperava algo de fascinante e maravilhoso, não era um universo. E porquê logo a ele? Ele nem sabia o que podia fazer com aquilo.

Champi passou dois dias em rejeição. Dizia que o filho não era dele, que tinha sido algum pinguim que por pirraça lhe tinha trocado o ovo durante a noite. Ainda por cima, Patchi andava lá entretida no mar alto a enfardar peixe e não estava ali para ajudar nas decisões familiares importantes. Passado algum tempo, Champi concluiu que, qualquer interpretação que ele desse àquele estranho acontecimento, a realidade era incontornável: adoptado ou não, aquele universo era o seu filho e ele não podia rejeitar um filho. Champi decidiu chamar-lhe Afilósio. Não sabia bem quais eram os nomes típicos de universo, mas Afilósio pareceu-lhe fazer muito sentido. E começava pela letra A, o que alfabeticamente vinha antes de Ana, por isso ficaria nas carteiras da frente na escola e estaria sempre com muita atenção. Champi queria que Afilósio tivesse todo o sucesso do mundo. Até mesmo, todo o sucesso do universo, pensou com um sorriso de confiança.

Os primeiros dias de Afilósio foram terríveis. Chorava que se fartava. Era uma barulheira insuportável. Ao ponto de um dos pinguins na vizinhança comentar:

- Ainda bem que me safei da pestinha a tempo. Eu vi logo que um ovo que dizia Frágil e que trazia um lacinho de embrulho não podia ser boa coisa.

Champi não ouviu, e ainda bem. Champi foi um pai extremoso, sempre muito atento a cada preocupação do seu filho. Passado mais alguns dias chegou finalmente Patchi que, através de chamamentos muito peculiares, correspondidos de forma precisa por Champi, conseguiu logo encontrá-los. Quando viu o que tinha saído do seu lindo ovo, Patchi não quis acreditar na sua malfadada sorte. De imediato, disse que não iria aceitar aquela situação. Também disse que, independemente disso, tinha usado o tempo no mar alto para reflectir e que achava que a relação deles não tinha futuro e que passavam o tempo a discutir. Champi disse que eles não discutiam certamente, já que mal falavam por ela passar o tempo todo no mar alto a comer peixe. Patchi virou costas e desapareceu para sempre.

- Todos iguais... todos iguais... -- repetia volta e meia Patchi pelo caminho, cada vez mais distante, abanando a cabeça.

Champi estava então na difícil situação de pai solteiro. Ainda por cima, tinha a seu cargo um universo. Champi sabia que ia conseguir criar o seu rebento e que lhe ia dar todo o amor e carinho que um pai sabe dar a um filho. E foi precisamente isso que aconteceu. Ou algo parecido.

Nota: A Grande Pinguinada não é taxativa sobre a forma como se deu a concepção, existindo várias correntes. A mais proeminente, o Champismo Divino, diz que Champi se limitou a olhar para Patchi de forma tão ternurenta e tão pejada de Amor puro que Patchi foi fecundada por graça divina, de forma imaculada e que, apesar de sempre apregoar o contrário, tudo aquilo que Patchi sempre desejara era criar o seu próprio filho, e ainda mais se, em vez de um pinguim, por um acaso inesperado se tratasse de um universo. Segundo essa corrente, Patchi não abandonou Champi por falta de paciência para a vida familiar mas, pelo contrário, foi atacada por uma orca enquanto procurava alimento para o seu filho; essa orca malvada estraçalhou-a de forma brutal, apesar de ela ter lutado heroicamente pela vida.

A segunda corrente mais proeminente, o Champismo Terra-a-Terra, diz que Champi se limitou a violar Patchi durante a noite, que apesar de Patchi lhe estar sempre a fugir era exactamente isso que ela queria e que até fingiu estar a dormir para poder levar a melhor sem ter que dar o braço a torcer. Segundo esta segunda corrente, Patchi era uma promíscua sem vergonha que usava o seu corpo para seduzir pinguins macho e que depois os deixava pais solteiros. Também dizia que, depois de passar o ovo resultante deste esquema ao macho, Patchi roubava-o durante a noite para vender ao desbarato a orcas desconhecidas. Isso explicava que deixasse, em sua substituição, ovos com universos lá dentro. O efeito surpresa de sair um universo do ovo, deixava sempre os machos em grande azáfama e eles distraíam-se do problema principal que era terem-lhes roubado o seu filho.

Ubíquo e a mão de Lustrosa

Ubíquo era um grão-de-bico altamente filosófico e que punha em questão a cada instante o propósito e o valor da sua existência. Ubíquo tinha grande dificuldade em sentir que a vida era melhor do que a morte, em aceitar que havia actos absolutos de Bem e Mal. Foi isso que o fascinou em Ceroulas e que o levou a identificar-se tanto com ela. No entanto, rapidamente percebeu que a vida a dois com Ceroulas seria impossível. Não crendo que houvesse qualquer padrão no mundo, qualquer lei que se repetisse, qualquer constante, Ceroulas passava o tempo a ignorar toda a sua experiência passada e via sempre tudo como se fosse a primeira vez. Isso era interessante, como novidade, nos primeiros tempos da paixão. Talvez nos primeiros dois dias. Depois disso, Ubíquo começou a ter dificuldade em aceitar que ela lhe perguntasse constantemente o nome. Ele respondia sempre que o seu nome era Ubíquo.

- Ah, mas é que agora estavas debaixo de uma macieira. Podias chamar-te Ubíquo apenas quando não estavas debaixo de macieiras e queria ter a certeza -- explicou Ceroulas de uma dessas vezes.

Ceroulas era claramente uma inspiração filosófica para Ubíquo. Tanto assim era que no dia em que a conheceu criou imediatamente uma das suas músicas mais filosóficas, Universo Azul Carmim. Mas a vida prática com Ceroulas era demasiado complicada e, por isso, fugaz. Ubíquo, sempre muito genuíno e verdadeiro, explicou a Ceroulas que não conseguia mais viver assim e ela aceitou perfeitamente esse facto. Para ela, era apenas mais um acontecimento no Universo, nada do que era inesperado para os outros era inesperado para ela. Apenas a constância a surpreendia. O seu espanto era, sim, todos os dias, quando via que Ubíquo ainda estava com ela, não o facto de ele se ir embora. Não por se ter a si própria em má conta, simplesmente porque não esperava que qualquer coisa hoje ainda o fosse amanhã.

Passaram vários meses em que Ubíquo nunca encontrou qualquer inspiração para as suas músicas. Até que conheceu Lustrosa. Não chegou a falar com ela. Nem sabe se ela sequer sabe que ele existe. Apenas a contemplou a passar na rua, com o seu casaco hipnotizante. Ao fitá-la, os olhos de Ubíquo emanaram espirais de luz vermelha que ficaram reais a pairar no ar rodando à sua volta. Ficou absolutamente fascinado e quis levar Lustrosa para fora do mundo, para longe de tudo e viver paixão sem fim. No momento em que Lustrosa passou por ele, tudo ficou subitamente em câmara lenta. Lustrosa, a rua, tudo. Porém, Ubíquo sabia que as suas calças rotas, a sua filosofia existencialista e o seu desprezo completo pelo capital, pelo materialismo, nunca teriam lugar no universo de uma ervilha como Lustrosa. Ubíquo parou, virou-se e seguiu as suas curvas com o olhar à medida que ela se afastava. Viu-a ficar cada vez mais pequena, cada vez mais distante. À cadência dos passos de Lustrosa, Ubíquo sentiu um ritmo invadi-lo e ficar gradualmente mais forte. O seu sangue passou a circular nesse ritmo, preciso, o bater do coração marcando o mesmo exacto compasso. Ainda na rua, quase ao virar da esquina, sentiu uma melodia sair-lhe de dentro do peito e palavras involuntárias a sairem-lhe da boca

- A mão dela... a mão dela... -- repetia baixinho num ritmo antes nunca ouvido

e ao longo do caminho até casa, todos os tons da música que lhe chegavam não sabia bem de onde se concertavam num todo coerente, tomando aos poucos forma, consistência. Chegado a casa, gravou num só take o que viria a ser um dos seus grandes sucessos, A Mão Dela.





A MÃO DELA
Ubíquo

A mão dela é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

A mão dela é um poço e lá no fundo
Água limpa e cristalina
Que alimenta a colina,
O mundo

O barco parte, e eu
Vou navegar
No breu da noite, frio,
Vou acabar sem a mão dela

(A mão dela) é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

[Improviso em lamento]


Ubíquo remete-se ao Azul Carmim

Conheço uma ervilha. Ah, não, espera, é um grão-de-bico. Chama-se Ubíquo e, ao contrário do que o seu nome possa sugerir, não está em todo o lado. Ubíquo integra Os Granizados, um grupo a capella que, juntamente com Robirta, gravou Batongo, uma música algo peculiar. Ubíquo é um grão-de-bico existencialista e que dedica grande parte da sua vida a reflectir sobre questões filosóficas profundas. Uma das grandes questões que desde cedo o assolou foi a de não ser possível provar que os grãos-de-bico não são simplesmente um cérebro num boião cheio de líquido no qual são induzidas por impulsos eléctricos todas as percepções sensoriais que os grãos-de-bico pensam sentir no seu dia-a-dia. Toda a vida de um grão-de-bico pode ser uma mera ilusão e não é possível um grão-de-bico provar que a sua própria vida é mais do que apenas isso. Porque, para o provar, teria que sair de si próprio e isso não é possível. Há relatos de grãos-de-bico que ficaram fora de si mas pensa-se que é apenas em sentido figurado.

Recentemente, Ubíquo conheceu Ceroulas, uma ervilha com uma concepção do Universo absolutamente original. Fascinou-o a forma como Ceroulas não assume nada acerca do Universo, nem sequer que há leis físicas que o regem. Mas, acima de tudo, fascinou-o o conceito abstracto e etéreo do seu Universo Azul Carmim, um Universo de conceitos onde existem todos os conceitos que alguma vez alguém pode inventar. Fascinou-o, principalmente, porque sabe que esse Universo tem existência independentemente de o seu cérebro estar dentro de um boião ou não. Ubíquo sentiu que o Universo Azul Carmim lhe punha um sorriso de fascínio nos olhos e lhe permitia não se preocupar tanto com o facto de o seu cérebro poder viver dentro de um boião. Desse fascínio, surgiu Azul Carmim, a sua mais recente criação.





AZUL CARMIM
Ubíquo

Ponho as minhas ceroulas
Finjo estar sempre alegre
Com as surpresas do Universo:
Azul Carmim!

Mas algures na penumbra
Subsistem as dúvidas
Crateras profundas
Quero emergir

O caminho vedado
O arame farpado
Olha-me sempre de lado

Sou só um cérebro
Alimentado por uma pilha solar?
E os corpos mera ilusão
Ficção impressa no meu olhar?

Robirta fascinada com o Batongo

Robirta passou várias semanas nas profundezas da Amazila em comunhão com uma tribo nativa. Viveu, conviveu e partilhou momentos absolutamente maravilhosos com as ervilhas de lá. Expressiva e criativa como é, sentiu tomar forma dentro dela um conjunto de sons inspirados na linguagem falada por aquela tribo, o Batongo. Tratava-se de uma linguagem essencialmente composta por sons de tambores. Cada vez que alguma das ervilhas daquela tribo queria falar, fosse com quem fosse, tinha que convidar essa ervilha para ir até aos tambores, e falar depois com ela. Robirta adorou esse peculiar sistema de comunicação. Robirta passou semanas a ouvir os tambores, ora suaves, ora exaltados, dependendo da mensagem que a ervilha que os usava queria transmitir. Robirta viu um espectro de tonalidades, de entoações, de pequenas nuances de diálogo, em todos aqueles batuques que teve o prazer de ouvir. Interessou-se em especial por um conjunto de versos da poesia tradicional local. No final, saiu uma peça fascinante feita sem qualquer instrumento, apenas vozes: a de Robirta e a dos Granizados, um grupo de grãos-de-bico que canta predominantemente a capella.



BATONGO
Robirta e os Granizados

[Cantando sons inspirados nos seguintes versos em Batongo, uma linguagem de batuques falada por algumas tribos de ervilhas nativas das profundezas da Amazlias.]

Nuances de cor
Teus traços carregados
Quero sentir o sabor
De bifinhos panados
Absorve-me a dor
O mero silêncio dos prados
E nos batuques sem fim
Ouço pedaços de mim

Robirta assalta o banco

Depois de ter sentido o cheiro da paixão e de passar apenas uma de muitas e muitas noites para esquecer a beber num bar qualquer por ter sido desprezada por aquele que pensava ser o seu grande amor, Robirta sentiu ter encontrado finalmente a sua alma gémea. A alma gémea, porém, não tinha a mesma opinião. Por isso, Robirta teve que se contentar em fazer uma musiqueta em que dizia que bem tentou, mas que nada levou. Claro que como estava farta de ser tida como lamechas por ter passado noites e noites a chorar que nem uma perdida com um copo de vodka à frente, Robirta optou por uma música mais animada e dinâmica. O resultado foi surpreendente.




NADA DE TI
Robirta


Tua casca é tão dura de roer
As tuas covas são impossíveis de ter
E no entanto eu não consigo alienar-me
Assalto ao banco e dispara o alarme

E eu desembesto, perseguição pela rua
Levo o dinheiro até ao sítio secreto
Mas nada de ti
Nada de ti!

Como é que é, pessoal?
As ervilhas a curtir?
Como é que é, malta?
Toca a abanar essa casca!
Como é que é?
Nada de ti!

Quero a tua casca, quero a tua casca
Sentir as tuas covas aqui
Quero a tua casca, quero a tua casca
Sentir as tuas covas em mim

[Solo de voz libertador]

Mas nada de ti
Nada de ti!
Nada de ti!

Porquina na espuma do arrependimento

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Porquina acreditava na teoria das Bombocas e Ranholas de Alipas. E acreditava com muita força. Mais ou menos a mesma força necessária para levantar um caixote de fruta. Mas dos pesados, não é um caixote de uvas, por exemplo. Porquina tinha a certeza de que era uma ranhola já que a sua vida corria extraordinariamente mal em todos os domínios. Por oposição, a vida de Lustrosa, principalmente desde que tinha criado a sua maravilhosa Teoria do Casaco, corria às mil maravilhas. Lustrosa era aquilo a que se podia chamar um poço de sucesso. Podia, e chamava-se. Isso incomodava muito Porquina. A mera existência de Lustrosa irritava Porquina ao ponto de espumar pela boca.

Num dia de frustração exacerbada, Porquina decidiu matar Lustrosa. Logo de seguida arrependeu-se. Mas, logo de seguida, novamente, voltou a decidir matar Lustrosa. Preferia viver o resto da vida com o sentimento de culpa do que com aquela frustração sem fim. Saíu de casa pela fresca e foi directa a uma loja de armas. Ia comprar uma pistola de 9mm. Viu-a na montra. Era novinha em folha e reluzia. Ao olhá-la, Porquina esboçou um sorriso de ternura. A funcionária explicou-lhe que, dada a natureza do produto em questão, era necessário preencher um formulário especial. Passou-lhe o formulário para a mão. Consistia numa folha quase toda em branco. Numa ínfima porção do espaço da folha podia ler-se a pergunta:
"Planeia cometer algum crime ainda hoje? (S/N)"

Porquina não precisou de pensar muito sobre a resposta. Ela queria matar Lustrosa e matar era um crime. A resposta era obviamente Sim. Escreveu a sua resposta e devolveu o formulário à funcionária. A funcionária explicou-lhe que Sim não era uma resposta permitida. Apenas podia escrever S ou N. Porquina corrigiu, já num novo formulário. A funcionária lamentou e disse-lhe que tinha que ser a tinta preta. Porquina voltou a preencher um novo formulário já com a tinta correcta e perguntou-lhe por que não a avisou logo de ambos os erros no primeiro formulário.

- Ó menina, uma coisa de cada vez. Uma coisa de cada vez. Quem tudo quer, tudo perde -- respondeu a funcionária com um ar muito profissional e imperscrutável.

Porquina aceitou o seu argumento. Realmente, não é boa política fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Podemos enganar-nos. Porém, ficou surpreendida com aquela coincidência extraordinária. Logo no dia em que ela decide matar Lustrosa, alguém lhe pergunta se ela planeia praticar um crime nesse dia. Por outro lado, ficou algo preocupada. Será que a funcionária sabia do seu plano secreto?

A funcionária recebeu o novo formulário e viu o S preto da resposta. Percebeu que Porquina ia cometer um crime naquele dia e ficou preocupada. Olhou para Porquina e fez aquela cara de quem finge não pestanejar mas pestaneja. Porquina achou estranho que ela precisasse de fingir não estar a pestanejar. Não havia mal nenhum em pestanejar. Era um gesto normal e todas as ervilhas pestanejavam. Sempre esta hipocrisia de não se assumir como se é. Porquina confirmou mais uma vez que as ervilhas do seu tempo tinham medo de ser elas próprias, se preocupavam demasiado com a opinião dos outros e evitavam todo o tipo de confrontações. Porquina abanou a cabeça interiormente.

Feita a compra, saíu da loja. Estava contente porque agora a sua vida tinha um propósito. Também estava contente por esse propósito ser eliminar uma das grandes fontes de frustração da sua vida. Ainda viu a funcionária, do outro lado da vitrine, por entre carabinas e espingardas de canos serrados, com um ar extremamente preocupado a falar ao telefone e a segui-la com o olhar. Porquina achou que talvez a funcionária estivesse a telefonar à namorada que lhe estaria a dizer que não gostava do hálito dela. Isso explicaria o ar preocupado. E a funcionária de facto não tinha grande hálito. Tudo batia certo.

Apanhou o autocarro. Lá dentro, ao pensar na missão que tinha à frente, começou a ficar nervosa. Todas as pessoas olhavam para ela com reprovação, com desprezo, com desdém. Porquina tinha a sensação de que todos em conjunto se levantavam, lhe apontavam o dedo, e em uníssono gritavam "Assassina! Assassina! Assassina!". Porquina sabia que era uma boa ervilha, que a sua missão era apenas algo que ela tinha que fazer pelo bem comum, pelo bem estar emocional de todas as Ranholas do mundo. Alguém precisava de as libertar daquele fantasma de Lustrosa sempre a pairar sobre as suas cabeças de ervilha. Quando restabelecia a confiança no propósito da missão, também as ervilhas em redor lhe pareciam mais calmas, serenas e menos incriminadoras.

Chegada a altura certa, desceu do autocarro e seguiu na direcção da casa de Lustrosa. Morava numa zona de vivendas muito selecta. As vivendas serem tão espectaculares, e terem aqueles jardins todos tão bonitos, eram outro factor de irritação para Porquina. Olhou-as por momentos. Começou a espumar da boca. Tirou um lenço do bolso e limpou-se. Prosseguiu o seu caminho. A sua irritação avolumava-se, mas ao mesmo tempo também a sua compaixão pelo próximo sobressaía. E Lustrosa estava claramente mais próxima. Porquina chegou às traseiras da vivenda de Lustrosa. Abriu a porta do jardim e encostou-se a ela, já do lado dentro. Reflectiu sobre o que estava prestes a fazer. Hesitou. Ficou ali horas e horas a debater consigo própria o valor da vida das ervilhas, a fragilidade da vida, a razoabilidade do direito a uma ervilha tirar a vida a outra, abordou a noção de alma, se existiria ou não, se teria pintas roxas ou amarelas. Naquelas horas esclareceu várias das suas dúvidas sobre metafísica e existência, mas não esclareceu a mais importante: se iria usar a sua arma ou não naquele dia. Nisto, um barulho, era a porta da frente, Lustrosa tinha entrado em casa. Era já noite e Lustrosa acendeu a luz da sala. Porquina viu a silhueta de Lustrosa perfeita na janela. Viu-a tirar o seu lindo casaco e pendurá-lo num cabide de pé.

Porquina estava muito nervosa, o suor escorria-lhe pela testa, pela face. Com as mãos a tremer, tirou a pistola do bolso e tentou carregá-la. O carregador caíu-lhe ao chão. Começou a tremer mais. Pensou novamente no valor da vida, em como sentia que não tinha o direito a fazer mal a Lustrosa. Pelo menos, não daquela forma tão drástica. Carregou a arma. Empunhou-a. Apontou-a à janela. A silhueta de Lustrosa perfeita. Porquina podia imaginar-lhe todos os contornos absolutamente perfeitos, as linhas esbeltas, o casaco lindo agora já pendurado. Começou a espumar da boca. Tirou o lenço, limpou-se. Voltou a apontar a arma. As mãos tremiam-lhe, tremia-lhe já o corpo todo, Porquina mal se conseguia equilibrar.

Mais uma vez hesitou. Lembrou-se do dia em que Lustrosa a tinha convidado para jantar, ali naquela mesma casa, de como a tinha tratado bem, de como tinham tido um serão tão agradável, de como Lustrosa lhe tinha oferecido um tiramisu espectacular. Desta vez, ao pensar em Lustrosa, não espumou da boca. As mãos pararam de tremer. Os seus braços baixaram. Sentiu-se aliviada. Todo o peso da culpa tinha ido embora. Porquina percebeu que não conseguia nem queria matar Lustrosa. Teve vergonha de si própria por ter pensado todas aquelas coisas horríveis, por se ter deixado fazer refém da inveja. Decidiu que se queria ser mais feliz teria que lutar por tornar a sua vida melhor e contentar-se com ter tentado o seu melhor em vez de simplesmente destruir quem fosse melhor.

Porquina voltou-se, abriu a porta do jardim e saíu. Nesse preciso instante, chegaram seis viaturas da polícia que a encurralaram contra a parede das traseiras. Porquina percebeu que eram da polícia porque tinham sirenes às cores e diziam Polícia.

- Ponha a sua arma no chão! Já! -- gritou um dos agentes num tom militar, em plenos pulmões.

Porquina obedeceu. Três agentes correram na sua direcção, saltaram-lhe para cima e deitaram-na ao chão. À custa de farta violência física, mesmo sem que houvesse qualquer resistência por parte de Porquina, algemaram-na e meteram-na dentro de uma das viaturas. Foi julgada pelos seus actos e foi condenada a prisão perpétua por homícidio. Morreu na prisão. Foi de gripe do grão-de-bico. Logo ela que nem gostava de grão-de-bico.

A viagem de Robirta ao Universo Bicolor

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Um dia Robirta ia a passear pela rua à procura de inspiração para mais uma música quando viu uma casa a arder. Pensou que alguém podia estar em apuros, por isso aproximou-se. Não porque fosse ajudar. Ela não era de actos heróicos. Queria apenas perceber se encontraria ali material para a sua nova canção. Ficou a olhar, a olhar, em buscar de algo etéreo e profundo. Entretanto chegaram vários carros de bombeiros. Em dois minutos, os soldados da paz apagaram o fogo e controlaram a situação. Robirta perguntou a um deles o que se tinha passado. Ele respondeu-lhe que uma ervilha tinha deixado demasiada lixarada debaixo da cama e que um curto-circuito tinha pegado fogo aquilo tudo. Também lhe disse que a curiosidade tinha matado o gato, mas Robirta não percebeu onde é que um gato era chamado para a história. Talvez a tal ervilha tivesse um.

Entretanto, saíu uma ervilha com uma caneca de chá verde na mão, ainda a fumegar, e embrulhada num cobertor com um ar bastante abalado. Chamava-se Kolmicas. Robirta ficou horas a conversar com ela. Queria saber o que se tinha passado e inspirar-se naquela ervilha traumatizada para escrever a sua música e dar largas à sua criatividade. Kolmicas explicou-lhe a grande saga da sua vida em estruturar a informação e em atribuir-lhe uma caixinha vermelha ou uma azul. Robirta ficou absolutamente fascinada. Era impressionante como ela encontrava a cada canto, a cada virar de esquina, alguém com uma história de vida tão fascinante. Escreveu Universo Bicolor, um dos seus maiores sucessos discográficos de todos os tempos.





UNIVERSO BICOLOR
Robirta


Agarro o jornal matutino
São tantas as notícias novas
Toda a informação me olha e implora
Sistemática estruturação

Ao fim do dia, refresco a meu lado
Decido o que é irrelevante
Recortes precisos, a magia no ar
Começo aquilo que me faz vibrar

Catalogar, compartimentar
Eu nunca nesta vida vou parar
Caixinhas azuis, caixinhas vermelhas
Para mais tarde me deliciar

Talvez esse dia nunca chegue
Talvez a luta impossível
Um dia vou contemplar o universo bicolor
Quero acreditar

Quando abro a janela
Esvoaçam lá fora alegres os colibris
As penas incendeiam-se de cores
Que os meus olhos não sabem abarcar

Toda a entropia que me apoquenta a alma
É por demais espampanante
Procuro refúgio bem no fundo de mim
Nem que sucumba eu vou até ao fim

Robirta descobre a magia do Pónei Azul

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Um dia Robirta viu uma ervilha a andar com um sapato raso e outro de salto alto e, intrigada, foi ter com ela. Perguntou-lhe por que razão andava com um sapato de cada feitio e advertiu para os problemas de coluna que essa prática podia trazer. Mal sabia Robirta o que a simples decisão de fazer aquela pergunta lhe reservaria. A ervilha dos sapatos diferentes era Xamilas, famosa por ter criado o Método da Escolha dos Sapatos. Nas duas horas seguintes, Robirta aprendeu tudo e mais alguma coisa sobre o Princípio da Ordem Natural e converteu-se irreversivelmente à filosofia teológica da Ordem Natural. Ficou tão fascinada com a nova visão do mundo recém adquirida que, criativa como era, trouxe ao mundo uma linda canção. Chamou-lhe Pónei Azul. No início do refrão pode-se constatar a genuína imersão de Robirta neste tema quando, no auge da evocação ao Pónei Azul, a voz lhe falha de emoção de uma forma totalmente improvável e inesperada.




PÓNEI AZUL
Robirta

Pela manhã calço os meus sapatos
Não sei de que cor vão ser
E se iguais nos meus pés chatos
Rodopio de prazer

Marcado encontro algures na margem
Onde e quando, vou esconder
Se do bosque a tua imagem
A alegria de te ver

Pónei azul [falha de voz emocional], faz-me voar
Leva a minha casca até à beira do mar
Pónei azul, não peço demais
Só um mundo de escolhas, de momentos especiais
Pónei azul, arco-irís sem fim
Dos escombros, perfeita, a harmonia improvável em mim
Ponéi azul, fazes-me tão feliz
Às vezes por um triz (pónei azul)
Às vezes por um triz (pónei azul)

Amelínia e a origem das espécies

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Parêntida gostava muito de contar histórias à sua filha, Xambélia. Histórias célebres, como a de Atlantis ou de Esnífia. A filha parecia gostar, caso contrário não continuaria a fazer perguntas à hora de dormir. Ou, se calhar, era simplesmente forma de ajudar a mãe, que talvez precisasse daquela terapia criativa de imaginar mundos fantásticos. Seja como for, Xambélia ouvia-as sempre. Pelo menos nos primeiros quarenta segundos.

Eram quatro da manhã e Xambélia estava sobressaltada em mais um dos seus sonhos surrealistas. Desta vez fugia de uma libelinha gigante que a queria matar sussurrando-lhe mensagens misteriosas ao ouvido enquanto ela colhia hortelã. Parêntida ouviu o alarido no quarto da filha e ignorou-o por completo. Ao fim de duas horas daquilo, e de perceber que não iria também ela conseguir dormir, decidiu ir lá. Quando chegou viu a filha a rebolar-se frenética nos lençóis, com as mãos a tapar os ouvidos e a gritar

- Não estou a ouvir!! Não estou a ouvir!!

A mãe esboçou um sorriso de escárnio e apreciou por uns instantes o momento. Depois, tocou-lhe ao de leve. Xambélia percebeu que era apenas mais um sonho surrealista e acalmou. Só que depois ficou sem sono. Por estar sem sono, pôs-se a reflectir um pouco sobre a origem da vida. Olhou Parêntida com um ar profundo e perguntou

- Por que há tantos animais e vegetais diferentes e não há só ervilhas?

Parêntida sabia da importância de responder a esta pergunta metafísica. E também da importância de adormecer Xambélia rapidamente se ainda queria dormir alguma coisa antes de acordar para ir trabalhar. Parêntida era insuportável quando dormia pouco. E sabia-o. Ponderou também ela um pouco sobre a génese da vida e começou a sua explicação:

Era uma vez uma amiba chamada Amelínia. Usava o cabelo preso atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo. Amelínia era o único ser vivo no mundo. Sentia-se muito sozinha. Por isso, desenhou outra amiba em papel cavalinho. Fê-lo porque era um papel mais rijo e Amelínia não queria que o desenho se dobrasse ou amarrotasse. Quando acabou o desenho, a amiba que havia desenhado saíu do papel e tornou-se numa amiba real. Não que não tivesse já realidade física quando estava no papel. Porém, era feita apenas de celulose. Quando saíu do papel passou a ser uma célula. É daí que vem a palavra célula, de celulose. O segundo ser unicelular do universo era, portanto, nos seus primórdios, feito de celulose. O primeiro era, obviamente, Amelínia. Pode-se perguntar de onde surgiu Amelínia. Mas também se pode não perguntar, por isso, vamos escolher a segunda. Amelínia gostou tanto da sua nova amiga que decidiu chamar-lhe Cimpória. Ficaram logo muito amigas. Viam a novela sempre juntas no sofá-cama de Amelínia.

Amelínia não conseguia deixar de pensar como era surpreendente que o seu desenho se tivesse transformado num ser vivo real. Às vezes dava por ela a cogitar como seria se desenhasse outros seres vivos que lhe viessem à cabeça. Ou mesmo outros que não lhe viessem à cabeça. No entanto, era sempre incapaz de os desenhar, com medo de provocar descontinuidades irreversíveis na evolução natural das espécies. Um dia fartou-se de viver naquela ansiedade de não saber se era possível criar outros seres vivos. Foi à papelaria e comprou vários blocos A4 de papel cavalinho e um conjunto de lápis 2B. Amelínia gostava muito de lápis 2B porque eram muito macios. Começou então a desenhar vários vegetais. Desenhou uma couve roxa e uma bananeira mas não aconteceu nada. Amelínia não desistiu e, com todo o cuidado, repetiu os dois desenhos mas, desta feita, em folhas de papel separadas. Ficou deliciada quando viu a couve e a bananeira materializarem-se à sua frente, bem reais. A partir daí desenhou sempre cada ser vivo numa folha separada. Fazia, aliás, todo o sentido: um ser vivo, uma folha. Aproveitou, e comeu uma banana. Sabia mesmo aquilo que ela pensava.

Maravilhada com o sucesso da couve e da bananeira, decidiu ir mais longe. Desenhou um ornitorrinco. Ficou perfeito. Contudo, nada aconteceu. Mesmo apesar de ter sido desenhado numa folha separada. O ornitorrinco permanecia no papel. Impávido. Imóvel. Um silêncio sepulcral. Passado um pouco ouviu-se uma voz grave e calma vinda de todos os lados e de parte nenhuma:

- Este animal é ridículo. Parece um mamífero, mas ao mesmo tempo parece um pato. E esses ovos no desenho, são dele? Isto está um pouco confuso. Tenta outra vez.

Amelínia rapidamente percebeu que tinha que suplementar os seus desenhos com algumas instruções sobre o comportamento do animal que queria criar. Fazia sentido. Era difícil criar um animal inteiro apenas a partir de uma imagem. Ficava muita ambiguidade por resolver. De facto, a aparência exterior do ornitorrinco por si só não dizia o suficiente sobre ele. Para o criar, era preciso facultar informação adicional. Por isso, Amelínia passou a escrever anotações na parte de trás do desenho. No caso do ornitorrinco, escreveu que ele punha ovos mas que amamentava as suas crias. Podia também dizer coisas sobre a personalidade do animal que queria criar. Neste caso, escreveu brincalhão. Era interessante como não era importante a linguagem em que essas anotações eram escritas. De facto, Amelínia podia mesmo escrever numa linguagem acabada de inventar só para aquele desenho, porque havia uma entidade algures que saberia exactamente o que ela queria dizer e criava o animal de acordo com as características descritas no verso da folha de papel. Amelínia não deixava de ficar fascinada com a fidelidade dos animais criados à sua ideia original. Eram exactamente como ela os queria ter criado, mesmo que por vezes a sua descrição no verso fosse um pouco vaga.

Durante anos, Amelínia dedicou-se a criar animais e vegetais dos mais variados que conseguia imaginar. Adorava aquilo. Tinha encontrado uma forma deliciosa de exprimir a sua criatividade. E ela tinha uma imaginação por demais fértil. Só assim se explicava que tivesse criado o peixe-bolha, o aye-aye ou mesmo o axolote. A situação começou a complicar quando Amelínia decidiu criar um animal especificando no verso que esse animal deveria ser capaz de criar outros animais através de desenhos. A partir daí, tudo descambou. Surgiu uma série de animais mal intencionados, que criavam animais ridículos por puro prazer. Eram maldosos. Começaram a ser criados animais de todas as formas e feitios, sem qualquer tipo de restrição. Havia um que era um balão de borracha que se enchia sozinho e que depois se esvaziava a uma velocidade alucinante em zig-zags pelo ar e se espetava contra o animal que estivesse mais perto. Depois, ria-se que nem um perdido, como uma hiena. Muito irritante. Mas não era apenas pura maldade. Eram interesseiros. Criaram um animal que era um tapete persa e que servia apenas de meio de transporte a quem lhe desse um passou-bem. Ao fim do dia, ficava deitado no chão da sala. Quando se fartavam dele, vendiam-no num mercado qualquer a preços alucinantes.

Apareciam animais tão estapafúrdios que era óbvio não poderem ser o resultado de qualquer evolução. Isso preocupou Amelínia que sabia que a única teoria que explicava decentemente a origem das espécies era a que dizia que eles tinham evoluído. Então Amelínia decidiu criar um animal novo a que chamou Papadão. Era muito parecido com um papa-formigas, mas tinha a particularidade de aspirar, ao invés de formigas, apenas animais que nitidamente não pudessem ter surgido por evolução natural. Esses, e também todos os animais mal intencionados ou interesseiros que criassem ou pudessem algum dia criar, através de desenhos, outros seres vivos que não pudessem ter surgido por evolução natural. Tinha a particularidade adicional de, assim que tivesse eliminado todos esses animais, se aspiraria a ele próprio. Amelínia criou milhares de exemplares desse tal Papadão. Eram muito castiços. Tinham um sentido de humor muito particular. E apreciavam o jogo da sueca. Tudo isso tinha sido especificado por Amelínia no verso do desenho. Excepto o interesse pela sueca. Amelínia não apreciava jogos de cartas.

Todos os Papadões executaram diligentemente a tarefa que lhes tinha sido atribuída e no final aspiraram-se a si próprios. Isso deixou Amelínia radiante. O seu plano tinha funcionado na perfeição. Actualmente existe toda uma variedade de espécies animais e vegetais essencialmente devido ao engenho e à criatividade de Amelínia. É muito fácil então perceber de onde vem tanta variedade. Para além disso, felizmente, devido à cultura científica e à luta e preserverança de Amelínia, a teoria da evolução das espécies mantém-se, hoje em dia, como a teoria mais simples que explica a existência de toda a actual variedade genética. Graças a Amelínia, o mundo permaneceu coerente.

No fim da resposta de Parêntida, Xambélia dormia já profundamente. Ou talvez estivesse a fingir. Mas Parêntida achou que ela estava a dormir e por isso foi-se embora. Encostou a porta do quarto e foi ver televisão. Ouviu um barulho vindo do quarto da filha e tirou imediatamente o som à televisão. Pareceu-lhe claramente ouvir o distinto barulho de um lápis 2B a passar sobre papel cavalinho e depois um ladrar normal seguido de um meio abafado. Seria provavelmente do sono. Era já muito tarde. Decidiu apagar a televisão e ir dormir. Na cama estava um leão marinho a roçar-se nos lençóis. Desentalou a sua metade da cama e deitou-se com cuidado para não o acordar. Depois, adormeceu.

Esnífia e a natureza do espirro

Conheço uma ervilha. Chama-se Xambélia. Como todas as ervilhas, Xambélia tinha uma mãe. Chamava-se Parêntida. A mãe. Xambélia tinha sempre muitas perguntas sobre o mundo. Parêntida tinha uma forma pedagógica de as abordar, contando-lhe histórias fantásticas, como a de Atlantis e a Salinização dos Mares. Acima de tudo, eram histórias verdadeiras. A verdade sempre foi uma conceito muito subjectivo.

Era hora de dormir e, como sempre, Xambélia não tinha sono. Rebolou-se algumas vezes na sua cama, mas nada.

- Parêntida!... -- chamou, como sempre, num tom completamente inesperado.

A mãe entrou esbafurida pelo quarto adentro e só sossegou quando percebeu que era apenas a filha a chamar. Acalmou. Mas agora já não se podia ir embora porque a filha tinha dado conta que ela tinha entrado.

- Por que espirram as pessoas? -- perguntou Xambélia como se tivesse muito interesse na resposta, algo que ambas sabiam não ser minimamente verdade.

A mãe olhou durante um bocado para o fundo de si à procura da resposta e, quando a encontrou, começou:

Era uma vez uma ervilha chamada Esnífia que gostava muito de alfazema. Andava sempre com um raminho atrás. Um dia decidiu, de livre vontade, espetar dois ou três caules da alfazema nas narinas com toda a força que tinha. Imediatamente fez aquilo que hoje em dia se designa por espirrar. Ficou surpreendida com o estrépido do fenómeno e repetiu-o mais algumas vezes. Como aquilo era algo a que achava muita piada, volta e meia enfiava os caules da alfazema no nariz e espirrava como se não houvesse amanhã. Ao fim de algum tempo a usar desta prática, desenvolveu uma alergia tão crónica que, mesmo sem enfiar qualquer alfazema no nariz, só o pensamento na alfazema gerava uma sequência considerável de espirros. Ao fim de mais algum tempo, já nem precisava de pensar na alfazema para espirrar. Era um processo involuntário e incontrolável. Espirrava de cinco em cinco segundos.

Como era a única ervilha do mundo que espirrava, tornou-se famosa e criou uma moda muito própria. Espirrar tornou-se tão in que muitas ervilhas tinham já aprendido a técnica de fingir os espirros para conseguir atrair a atenção de outras ervilhas. O espirro tornou-se numa forma de demonstração de estatuto social. Apenas as ervilhas capazes de demonstrar tal capacidade de forma exímia podiam ascender socialmente e, no fundo, sobreviver na sociedade. As ervilhas que nunca espirravam eram segregadas e discriminadas, eram-lhes sempre rejeitados os melhores empregos, faziam pouco delas um pouco por todo o lado. O extremo da humilhação era quando uma ervilha que espirrava lhes fazia cócegas com um raminho de alfazema na parte de baixo da casca à frente de todas as ervilhas em redor.

Como sempre, a selecção natural tratou de dar preferência às ervilhas que, através de alguma mutação pontual e depois por cruzamentos entre ervilhas, nasciam já com a capacidade de espirrar involuntariamente. Eram essas de facto as ervilhas com mais probabilidade de sobreviver e de se reproduzir. Tudo isto resultou numa disseminação genética generalizada da propensão para espirrar. Volvidas muitas gerações, foram ficando apenas as ervilhas que volta e meia espirravam. Hoje em dia, não há ervilha que não espirre de vez em quando. Algumas fazem até um ar altamente snob prendendo o espirro, algo que é tido como um comportamento típico das classes mais elavadas. Espirrando agora todas as ervilhas era natural que surgisse algo que pudesse fazer a distinção social entre as ervilhas.

Depois do estrelato, Esnífia entrou numa fase mais depressiva da vida, principalmente quando o espirro se banalizou e praticamente todas as ervilhas espirravam involuntariamente várias vezes ao dia. Esnífia deixou de aparecer na televisão ou de ser convidada para as festas cor-de-rosa. Como resposta, isolou-se nas montanhas onde se dedicou à cultura de vários tipos de ervas aromáticas. Passava o dia a enfiar caules diversos no nariz, à procura de novos fenómenos interessantes. Ao longo do resto da sua vida descobriu ainda dois ou três fenómenos fascinantes. Fenómenos, aliás, tão fascinantes que deixavam o espirro a um canto. Porém, por estar de costas voltadas para o mundo, nunca deu a conhecer a ninguém tão maravilhosas descobertas. Um dia, quando cortava um raminho de hortelã, apareceu-lhe uma libelinha gigante que lhe segredou uma mensagem ao ouvido. Nunca ninguém soube o que foi, até porque não estava mais ninguém lá para ouvir e a libelinha optou também ela por se remeter eternamente ao silêncio nesta matéria, mas foi uma mensagem tão forte que Esnífia morreu de medo. Ficou de barriga para cima. E com os olhos abertos. Esbugalhados.

Finda a resposta, Parêntida olhou a filha ternamente, apenas para confirmar o que já previra. Xambélia dormia profundamente. Desta vez Parêntida não aconchegou os cobertores à filha. Pensou que, se ela tivesse frio durante a noite, talvez sonhasse com a Primavera para aquecer, e se lembrasse da alfazema com força suficiente para dar uns espirros valentes. Parêntida queria acreditar que um dia Xambélia iria ser alguém na vida. E os pais querem sempre o melhor para os filhos. Embuída desse espírito, Parêntida foi-se deitar. Desta vez não se esqueceu de verificar se tinha deixado alguma coisa ao lume. Não tinha.

Atlantis e a salinização dos mares

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Tem uma filha. Chama-se Xambélia. A filha, claro, porque a mãe já disse que se chamava Parêntida. Xambélia estava na idade das mil perguntas. Quase todas as suas frases acabavam com a palavra porquê. E quase nenhuma tinha mais do que uma palavra; apenas uma ou outra. Parêntida sabia como era importante responder a essas perguntas mais longas da sua filha.

Eram tenras horas da manhã e cheirava a alecrim porque algumas ervilhas tinham estado a fumar marijuana durante a noite. Como em todas as manhãs em que cheirava a alecrim, e também em todas em que não cheirava, Xambélia sentiu chegar-lhe ao seu cérebro de ervilha uma dessas suas perguntas com mais de uma palavra. Virou-se para a sua mãe, acabada de chegar ao quarto por um motivo qualquer que hoje em dia já não se sabe qual foi, e disse

- Parêntida! Por que é o mar salgado?

Xambélia tinha a particularidade de tratar a sua mãe pelo seu nome próprio em vez de usar a palavra mãe. Por um lado, tinha muita dificuldade em produzir o som nasalado necessário para pronunciar a palavra mãe correctamente. Por outro, e acima de tudo, havia razões intrínsecas profundas para o fazer. Não era para ser chique ou porque tivesse a mania. Era apenas porque, se dissesse Parêntida, a mãe reagiria mais depressa por não saber quem a estava a chamar. Qualquer filha chama a sua mãe por mãe mas Xambélia sabia que, se o fizesse, a mãe saberia exactamente quem a estava a chamar e levaria muito mais tempo a responder.

Poder-se-ia talvez supôr que Parêntida reconheceria a voz da filha e a estratégia de Xambélia não resultaria. Porém, era precisamente com o facto de a mãe conhecer tão bem a sua voz que Xambélia jogava, fazendo uma voz diferente, umas vezes esganiçada, outras simplesmente ridícula, de cada vez que queria chamar a mãe. A verdade, é que esta técnica funcionava na perfeição, já que depois de a mãe se virar instintivamente na direcção de Xambélia ao ouvir o chamar estridente de um desconhecido, tornava-se difícil fingir que não tinha dado conta. Parêntida não queria ferir os sentimentos da sua filha.

Parêntida tinha já experimentado a técnica de nunca olhar quando ouvia um chamamento ridículo do seu nome. No entanto, desistiu dessa técnica no dia em que foi atropelada por uma betoneira apesar de uma amiga ter chamado histérica o seu nome por dezasete vezes. Aliás, Xambélia estava lá e um dos seus chamamentos preferidos da mãe era precisamente uma imitação perfeita dos gritos da amiga. Xambélia teve a sorte de não ser atropelada porque atravessou primeiro sozinha já que a mãe estava distraída a ver uns sapatos numa montra e disse a Xambélia para ir atravessando:

- Toma atenção a essa betoneira, que vem lá lançada -- disse à filha num tom carinhoso.

Esse atropelamento foi um momento baixo na vida de Parêntida. A betoneira ia certamente fazer serviço importante e atrasou-se. Parêntida detestava deixar outras ervilhas à espera. E deu certamente uma trabalheira ao neuro-cirurgião de serviço nessa noite, que muito provavelmente tinha família à espera em casa. Não que ele pudesse sair antes caso não tivesse havido o acidente, já que estava de serviço, mas podia às vezes querer ver alguma coisa interessante na internet no computador lá da urgência. Ou mesmo uma que não fosse interessante.

Desta vez, porém, Parêntida estava até bastante contente por ter caído na armadilha de Xambélia. Responder a esta pergunta de Xambélia não só fazia parte dos seus importantes deveres de mãe, como era algo que lhe dava um imenso prazer. E era, aliás como quase todas as perguntas da filha, uma de resposta fácil. Na sua mente ecoou novamente a pergunta da filha:

- Por que é o mar salgado?

Parêntida ponderou um pouco sobre se deveria deixar o tacho ao lume enquanto respondia à filha. Optou por deixar. Depois, começou:

Era uma vez uma ervilha com Incontinência Perspírica Crónica (IPC). Chamava-se Atlantis e não fazia copos de cristal. Um dia, puseram essa ervilha num oceano qualquer. Era, como todos os oceanos de então, de água doce. Atlantis, com o medo de se afogar, começou a suar incontrolavelmente. Ali, nas suas imediações, toda a água salgou. As ervilhas que estavam por perto apreciaram essencialmente duas coisas: (i) era muito mais fácil boiar na água em redor de Atlantis; (ii) se a água em redor de Atlantis ficava salgada, podiam então criar algo a que chamariam, por exemplo, salinas, onde se poderia retirar o sal à água e produzir não só sal, o que daria imenso jeito para dar algum sabor às alfaces, como até mesmo água doce, que era óptima para beber. O facto de já existir água doce em abundância nos oceanos não lhes pareceu relevante.

Dado esse conjunto fascinante de vantagens, um grupo de ervilhas auto-denominadas As Verdes, que se preocupava em tornar o mundo um lugar melhor para todos os vegetais, decidiu fazer uma petição na internet com o intuito de se proceder à salinização de toda a água dos mares. Conseguiram milhares de assinaturas, mas não foi uma luta fácil. Primeiro, porque as petições na internet não têm qualquer valor jurídico mas, principalmente, porque a água doce não só era potável como servia para a cultura de vegetais e era difícil convencer o parlamento da República Inomesa a autorizar uma medida que poderia trazer tantas alterações à vida das ervilhas. A líder d'As Verdes, Rebaldas, sabia que tinha uma tarefa desafiante pela frente. Tentou convencer o parlamento de que, se se salinizassem todas as águas, seria altamente benéfica para a economia do país a criação da nova indústria de dessalinização absolutamente necessária para a existência de água potável. Iria ser criado um sem número de novos postos de trabalho. Mas Rebaldas guardou o aliciante mais poderoso para o final: passaria a ser muito mais fácil boiar quando se tomasse banho na praia. O parlamento que estava indeciso, ficou imediatamente convencido. O mundo ficaria um sítio muito mais seguro para as suas crianças nas férias de veraneio. A ideia passou e foi posto em marcha o megalómano Plano Mundial de Salinização (PMS) que tinha por único e nada modesto objectivo a salinização de todas as grandes massas de água.

Todos os dias levavam Atlantis para um local diferente do mundo e diziam-lhe que vinha lá o tubarão. Atlantis, que era daquelas ervilhas que jogava invariavelmente pelo seguro, acreditava sempre que vinha lá de facto o dito tubarão e a adrenalina libertada despoletava a sua incontrolável necessidade de suar aos litros. Salgado aquele lugar, passavam para outro. Quase sempre aquele que estivesse mais longe. As Verdes adoravam viagens de barco. Eram pagas com o dinheiro dos contribuintes. A actividade de Atlantis tornou-se tão importante que chegaram a dar o seu nome a um oceano, em sua homenagem. Toda esta azáfama era óptima, claro, para Atlantis que ficava a conhecer todos os cantos do mundo. E, quando a tentavam afogar para salgar as partes mais profundas do oceano, via uns quantos corais raros lá no fundo. Ao fim de algumas décadas praticamente todas as águas do mundo estavam salgadas. Todas, com excepção dos rios. O que se passava com os rios era que, como as águas estavam sempre a correr, o sal acabava por ser todo levado até ao mar mais próximo e os rios ficavam sempre de água doce. As Verdes eram um grupo de ervilhas muito perseverantes no que tocava a proteger o ambiente. Por isso não iriam desistir facilmente de salgar todos os rios também.

Já depois de todos os mares e oceanos salgados, dedicaram várias décadas a fazer experiências usando Atlantis para salgar um rio em particular, o Xaniledes. Porém, o sal, teimoso, descia sempre para o mar. Experimentaram variar sistematicamente quase todas as variáveis da experiência -- Atlantis de cabeça para baixo, Atlantis com uma touquinha cor-de-rosa ridícula, Atlantis sem dentes, Atlantis empanturrada de Pastéis de Tentúgal a dizer a palavra farfalhudo -- mas nada parecia resultar. Ao fim de 40 anos desistiram. Nessa altura deram conta que todos os peixes do mar onde desaguava o Xaniledes tinham morrido. Decidiram chamar-lhe Mar Morto. Depois passaram os 20 anos seguintes a tentar culpabilizar uma indústria de calçado da região pelo desastre ecológico. Sem sucesso. As indústrias poderosas têm sempre os melhores advogados. Alegaram que não era usado sal no seu fabrico de sapatos tradicionais.

O Mar Morto tornou-se numa atracção mundial e o fluxo turístico de ervilhas, que vinham de terras longínquas para ver de perto um mar onde não havia qualquer tipo de vida, fez florescer a indústria de sapatos da região. Mais do que sapatos para uso corrente, a indústria produz agora sapatos decorativos, comprados como recordação da região pelos turistas. Os famosos sapatos, os chamados Chaliques, têm pintados peixes virados de barriga para cima, a boiar, lembrando o triste evento numa exortação ao princípio fundamental de que nos devemos preocupar com a natureza e, em particular, com os peixes.

Parêntida terminou a história com um sorriso embevecido nos lábios.

- Percebes agora, Xambélia, por que é salgado o mar? -- perguntou à filha.

De Xambélia apenas um respirar mais forte. Nas horas tenras da manhã, Parêntida ajeitou-lhe os cobertores, apagou a luz e encostou a porta do quarto da filha. Sentiu que Xambélia tinha muita sorte em ter uma mãe tão conhecedora do mundo. "É quando elas dormem que compreendemos verdadeiramente como as crianças são uma benção", pensou. Depois, foi finalmente começar o cigarro que tinha enrolado havia uma hora atrás. Enebriada pelo fumo da marijuana, acabou por se esquecer do tacho ao lume. Tinha apenas água, o tacho. Era para cozer massa mais tarde. A água foi evaporando e o tacho acabou por ficar vazio ao lume. Ficou assim duas horas e meia. Quando Parêntida acordou, já de manhã, teve que colocar novamente água no tacho para cozer a massa. Parêntida detestava quando tinha que repetir a mesma coisa duas vezes. Mas teve que o fazer. Era isso ou não comer a massa. E aquela massa era uma perdição.

Pérfila e o Bisonte Alado

Conheço uma ervilha. Chama-se Pérfila. Tem um cabelo absolutamente ridículo, mas esse tema não é agora oportuno. Tem também uma toupeira-nariz-de-estrela chamada Crispi que leva consigo para todo o lado. Gosta da sua companhia. São muito amigas. Discutem temas diversos, incluindo o aquecimento global. De entre todas as características invulgares que existem, Pérfila tem uma muito particular. Sempre que olha para qualquer coisa, consegue imediatamente seleccionar apenas aquilo que é importante. A maior parte das ervilhas, quando confrontadas com demasiada informação, sentem-se incapazes de raciocinar. Isso não acontece com Pérfila. Pode haver milhares de factos, todo um cenário inabarcável a analisar, que Pérfila consegue sempre isolar as duas ou três coisas realmente relevantes para ela e focar-se nelas. E pode depois ficar ali horas e horas a focar-se nessas coisas importantes. Importantes, para ela. Para ela e, quase sempre, para mais ninguém. De entre todas as características invulgares que existem Pérfila tem, de facto, uma muito particular. Na melhor das hipóteses, a pior de todas.

Pérfila era frequentemente convidada a sair de estabelecimentos públicos. Uma vez, num restaurante, ao fim de hora e meia sentada, ainda não tinha pedido qualquer prato porque continuava a tentar convencer o empregado que o tipo de letra do menu não só não era apelativo como havia duas ocorrências da letra A na palavra "Omaleta" que pareciam não ter exactamente o mesmo tamanho. Numa outra ocasião, ficou com a casca toda negra depois de ter esgotado a paciência a uma ervilha gorílica* por ter passado o tempo a dizer à sua namorada, bem mais pequenina e vistosa, e que tinha uma mini-saia que era quase um cinto: "Parece-me que o teu bronzeado não está exactamente uniforme na tua perna direita. Podes virar-te para te ver por trás?". As relações sociais eram também muito difíceis. Uma amiga de Pérfila cortou relações com ela depois de ela ter passado a maior parte do velório da sua mãe a dissertar sobre a natureza não optimal dos trajectos individuais de cada caruncho na madeira do caixão. Chegou a usar um cronómetro.

Durante muitos anos, Pérfila nem sequer percebia o que se passava. Achava que as outras ervilhas eram simplesmente más ervilhas, já que só isso explicava que a tratassem tão mal. Um dia conheceu uma ervilha brutálica** que lhe explicou tudo preto no branco. Pérfila ficou ciente desta sua característica e de como isso prejudicava a sua vida pessoal. Aceitou a dura realidade e decidiu fazer alguma coisa para a mudar. Tentou todos os tipos de terapia. Nenhuma teve qualquer sucesso. A grande frustração de Pérfila era que, mesmo quando ela dava conta de que a sua característica se estava a manifestar, era impossível alterar o seu próprio comportamento. Era como se uma força exterior tomasse conta dela. Aquela característica era intrínseca e incontornável. Por vezes Pérfila ficava tão irritada com o facto de ser assim que chegava a ver, bem real, essa sua característica pendurada mesmo por cima dela, a cerca de um metro da sua cabeça, e com a forma de um bisonte alado cor-de-laranja. Tudo isso era aceitável para Pérfila. O que a incomodava era uma pequena mancha na pata anterior esquerda do bisonte. Aquela mancha era por demais irritante. Era minúscula, quase invisível, mas parecia sujo ou, se não parecia, podia parecer.

Tipicamente, volvidos alguns meses, Pérfila era forçada a afastar-se do grupo de amigos e do bairro em que se inseria e a mudar de terra. Tornou-se numa ervilha nómada, passava a vida a rolar. Pérfila chegou a viver alguns anos em Urdiche, mas praticamente só comeu areia. Tinham-lhe dito que talvez ali ela se adaptasse melhor, dado o carácter muito focado e observador das ervilhas nativas. Aprendeu a língua num ápice e deliciou-se por nunca se ter identificado de forma tão profunda com um idioma. Porém, ao fim de meros quatro dias de vida em sociedade, foi marginalizada e obrigada a viver numa parte deserta da ilha, sem contacto com outras ervilhas, e onde não havia coisas sobre as quais se queixar. Até porque não havia mesmo nada. Era um deserto. Ao fim de três anos de isolamento, quando a foram buscar para a pôr numa jangada feita em conjunto por toda a população de Urdiche, e que a poria premeditadamente e para sempre à deriva no Oceano Pacilis, Pérfila limitou-se a dizer: "Os grãos de areia deste deserto têm dimensões não standard. E não apreciei o tom de castanho. Isto é que é a jangada? Por que usaram dois tipos de madeira?".

Enquanto a jangada se afastava, à distância, ainda se pôde ouvir Pérfila dizer "Meu Deus, são três tipos de madeira!". E aos poucos a jangada afastava-se com Pérfila cada vez mais distante, cada vez mais pequena. Os esboços de sorriso nos acenos esticavam-se na proporção inversa do tamanho aparente de Pérfila que se aproximava do horizonte. Uma gaivota voava na direcção da jangada quando ecoou à superfície do mar: "Estas tábuas nem sequer estão paralelas...". A gaivota desviou a rota, assustada. Por se ter distraído, acabou por voar numa direcção completamente errada, por se perder e morrer de cansaço. Chamava-se Germésia. A gaivota. Que nome mais pateta.

* As ervilhas gorílicas são ervilhas fisicamente muito desenvolvidas, tanto em altura, como em volume, como em tudo, e que se caracterizam por praticamente só comunicar através de linguagem gestual que na grande maioria das vezes se resume à violência física. Tinham a particularidade de apenas atacar ervilhas que tivessem no máximo metade do seu volume.

** As ervilhas brutálicas são ervilhas despojadas do conceito de eufemismo ou da hipocrisia típica da vida em algumas sociedades geradores de frases como "Sim, a tua filha já chumbou 17 vezes no 8º ano mas isso não quer dizer que não seja capaz; as pessoas devem lutar por aquilo que querem e nunca desistir do seu sonho.".

Um mundo de Bombocas e Ranholas

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Alipas era amiga íntima de Xamilas. Tão íntimas que partilhavam até escovas de dentes. Principalmente se fossem azuis. As escovas. Costumavam ter discussões muito profundas acerca da aleatoriedade do mundo e do destino. Muitas ervilhas achavam que elas tinham exactamente a mesma opinião sobre esses assuntos. Do ponto de vista de cada uma delas, porém, a sua diferença de opinião era abissal.

Xamilas acreditava que havia coincidências e que elas eram fascinantes. Daí que tivesse criado todo o seu método da escolha dos sapatos e deixasse o Princípio da Ordem Natural reger a maior parte da sua vida prática. Alipas, por oposição, achava que não havia coincidências. Sentia que aquilo que algumas ervilhas chamavam "coincidências" eram, ao invés, fruto de uma qualquer intervenção de uma entidade sobrenatural sobre o mundo. E era daí que toda a sua divergência brotava.

Para Alipas as ervilhas podiam dividir-se em três classes mutuamente exclusivas: (1) ervilhas de sorte, (2) ervilhas de azar e (3) o resto da maralha. Todas as outras ervilhas também aceitavam que as ervilhas se podiam dividir nestas três classes. A diferença era que para Alipas esta divisão era relevante. Alipas designava as ervilhas de sorte por bombocas, e as ervilhas de azar por ranholas. As bombocas eram todas aquelas ervilhas a quem tudo corria às mil maravilhas independentemente do que fizessem. Eram ervilhas de sucesso. De uma forma ou de outra, as tais boas "coincidências" aconteciam-lhes sempre e levavam-nas sempre ao sucesso. Era por isso que Alipas não acreditava que elas fossem coincidências. Por ela, podiam chamar-lhes o que quisessem: ancinhos, revólveres, feldspatos triclínicos. Mas coincidências, não. Alipas também acreditava que uma bomboca não tinha sorte apenas numa faceta da sua vida; tinha-a em todas. Ou era ervilha de sorte ou não. E, se era de sorte, então tudo lhe corria sempre bem. E se por acaso não corresse, então isso sim era o que ela chamava uma coincidência. E as coincidências não passavam disso mesmo e podiam ser ignoradas.

Por exemplo, Alipas estava absolutamente convicta de que a sua irmã era uma ranhola nata. Sempre que a irmã saía com o carro até ao centro da cidade, apanhava uma multa de estacionamento. Era certo. Podia não ser sempre, mas era muitas vezes. Certamente muitas mais do que acontecia a uma ervilha normal. E isto não era mera percepção ou memória selectiva. Alipas era muito científica e fazia um registo completo das suas evidências experimentais sobre as quais fazia depois um tratamento estatístico rigososo. Durante dois anos, registou todas as saídas de carro da irmã e da mãe até ao centro. A mãe serviu de ervilha de controlo, já que Alipas não acreditava que a mãe fosse uma ranhola ou uma bomboca. Uma ervilha de azar não teria ganho duas vezes o primeiro prémio da "Melhor Sopa de Feijão Verde do Vale", mas uma ervilha de sorte não podia ter casado com alguém que, não só a abandonou ao fim de dois anos de casamento, ainda grávida da segunda filha, como lhe batia todos os dias pares do mês e a sua cor preferida era lilás.

Os dados recolhidos não deixavam quaisquer dúvidas. A sua irmã tinha tido 45 multas de estacionamento durante o período de dois anos enquanto que a mãe não tinha tido qualquer uma. A irmã de Alipas era claramente uma ranhola. Os factos não deixavam margem para grandes divagações. E contra factos não havia argumentos. A menos que fossem argumentos estúpidos como os de Xamilas. Alipas achava que Xamilas conseguia ser muito picuinhas. E chata. Isso tornava-se manifestamente claro pela forma como Xamilas mexia o dedo indicador esticado no ar e ficava com uma voz muito mais nasalada e irritante enquanto falava. Mas isto apenas quando estava a ser picuinhas. No resto do tempo Xamilas era, não só uma ervilha normal, como até mesmo muito adorável. Nesta discussão concreta, porém, prendia-se com detalhes técnicos da análise estatística. Isso irritava profundamente Alipas que sentia que não se estavam a discutir as questões de fundo, mas apenas pormenores matemáticos irrelevantes que apenas serviam para ofuscar a verdade absoluta de que a irmã de Alipas era uma verdadeira ranhola. É que bastava olhar para ela, para saber isso. Andava sempre despenteada e cheirava mal da boca.

Xamilas argumentava que a comparação não era justa porque a irmã tinha ido 432 vezes à baixa enquanto a mãe apenas tinha ido 8. Isso não fazia qualquer sentido para Alipas. Que interessava se uma delas gostava mais de ir à baixa do que a outra? "Teve mais multas não teve?" Xamilas perguntou se a mãe de Alipas, que parecia uma ervilha tão calma em comparação com a despassarada da irmã, não seria mais cuidadosa a estacionar. Alipas disse imediatamente que sim, que não só a mãe era mais cuidadosa a conduzir -- tanto era que nunca iria estacionar num sítio proibido -- como a irmã era uma revoltada e nunca na vida iria pôr dinheiro num parquímetro. Quando Xamilas tentou sugerir que as 45 multas podiam não ser um azar intrínseco da irmã mas sim uma consequência do seu mau comportamento consistente, Alipas usou um argumento difícil de contornar: "Oh, lá estás tu com as tuas coisas". Xamilas também achou estranho que o registo da mãe não tivesse qualquer multa mas estivesse rasurado. Perguntou a Alipas o que eram aqueles riscos. Ela explicou que em rigor a mãe tinha levado uma multa, mas que tinha sido apenas porque a mãe estava muito irritada naquele dia e acabou por deixar o carro de qualquer maneira. Em circunstâncias normais nunca o faria. Por isso aquele dado não contava. E não contou.

Xamilas sentia-se impotente para mudar as crenças de Alipas. Era como tentar explicar a certos vegetais, como as alfaces, que um par de cada uma das espécies de seres vivos não podiam caber todos numa arca e que, se coubessem, iam lá estar lesmas, tarântulas e um monte de variedades diferentes de vermes e minhocas nojentas e não apenas pandas e coalas fofinhos. O que mais irritava Xamilas era que Alipas tinha o descaramento de lhe dizer que, se ela não acreditava em bombocas e ranholas, era porque era demasiado fechada a novas ideias. Que tudo o que Alipas estava a fazer era a manter o espírito aberto, não negando a sua existência. Que a Ervilhandade só não avançava mais depressa por haver tanta ervilha com visões redutoras como a de Xamilas. Nessa altura Xamilas normalmente bebia um copinho de água para se refrescar e pensava em campos de papoilas.

Xamilas achava muito difícil de entender que, a existirem de facto bombocas e a terem sempre tanta sorte, não passassem o tempo a jogar no totoloto para ficar ricas. Alipas explicou que a verdadeira bomboca não tem a percepção de ter essa sorte e por isso não a consegue usar assim directamente em seu proveito. Xamilas achava que isso era um mecanismo de auto-sustentação, mas preferiu ficar a observar uma núvem púrpura que estava mesmo por cima delas e que tinha a forma de pescadinha de rabo na boca. Alipas acreditava verdadeiramente que certas ervilhas tinham mais probabilidade de ganhar o totoloto do que outras. Mais ainda, conseguia dizê-lo em voz alta. Xamilas, chocada, perguntou se as bolas que andavam na roda do totoloto tinham efectivamente noção disso e abriam espaço para as bolas com os números que uma bomboca tivesse posto num papel três dias antes numa aldeola qualquer. Alipas disse-lhe que as bolas eram seres inanimados, que não tinham consciência e que isso era estúpido. Xamilas decidiu que não valia a pena tentar dizer mais nada. Mas como era muito amiga de Alipas, achou que não deviam ficar zangadas com aquilo e convidou-a para ir beber um refresco para o café da praia. Ficaram ali as duas juntas a aproveitar o calor de Verão e a contemplar a ténue separação entre o mar e o céu. No silêncio, apenas os piscares de olhos das duas amigas. Passou um barquinho à vela ao longe que desapareceu na linha do horizonte. Isso, ou afundou-se. Nunca saberemos.

O método da escolha dos sapatos de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas tem oito pares de sapatos. São oito esquerdos e oito direitos. Para escolher os que vai usar, Xamilas usa um método que algumas ervilhas apelidam de peculiar. O procedimento é muito simples. Xamilas tem os seus sapatos todos no mesmo quarto, num monte, dispostos aleatoriamente. Com as luzes apagadas, chega lá e escolhe dois sapatos completamente ao acaso. Se forem dois sapatos esquerdos ou dois direitos, Xamilas repõe o segundo sapato e volta a escolher um novo do monte até que saia um sapato do lado que deve ser. Os dois sapatos que obtém desta forma são os sapatos que vai usar nesse dia. Xamilas chama a este processo o Método da Escolha dos Sapatos. Foi a própria Xamilas que inventou, algo que a deixa muito orgulhosa. Ainda hoje, passados vinte anos sobre o dia em que inventou este método, a melhor forma de abordar Xamilas pela primeira vez é perguntar-lhe se ela é *a* Xamilas que inventou o método da escolha dos sapatos. Os seus olhos iluminam-se por dentro quando lhe fazem essa pergunta. E sente borboletas a esvoaçar na barriga. Daquelas com várias cores.

Usando este método, torna-se bastante difícil usar dois sapatos do mesmo par. Na maior parte dos dias, Xamilas anda com sapatos diferentes. Mas isso não a incomoda minimamente porque sabe que, se um dia usar dois sapatos do mesmo par, será um dia especial. E no entanto, todas as ervilhas olharão para Xamilas como se nada fosse, já que apenas verão um normal par de sapatos. Xamilas acreditava que o facto de ter deliberadamente diminuído a probabilidade de algo acontecer, tornava esse acontecimento muito mais especial. Aquele gesto simples do dia-a-dia, e que nunca lhe retirava mais de cinco minutos por dia e apenas a tinha feito perder o comboio duas vezes, encerrava em si a mais profunda essência do Princípio da Ordem Natural.

A Ordem Natural é uma filosofia teológica que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Ordem Natural (PON). O PON é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. No caso de Xamilas, andar com dois sapatos que fizessem par seria uma dessas coincidências não fortuitas. A partir do PON deduz-se directamente todo um conjunto de directivas basilares que devem reger o modo de vida das ervilhas que crêem nesse princípio. O moto da Ordem Natural é "Há coincidências. E são absolutamente fascinantes." A Ordem Natural vai mais longe e incita os seus crentes a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais. Daí o Método da Escolha dos Sapatos de Xamilas.

Xamilas é uma ferverosa crente no PON. Por isso, deixa que a própria Ordem Natural proceda, não só à selecção do seu calçado, como também que faça parte da sua vida em todo um outro conjunto de coisas. Basicamente, em tudo. Por exemplo, depois de se converter à Ordem Natural, Xamilas nunca mais combinou encontros convencionais com outras ervilhas. Deixou de marcar hora e locais específicos e passou a combinar detalhes muito mais vagos. E quanto mais vagos melhor. Ainda noutro dia, para se encontrar com Lustrosa, mandou-lhe uma mensagem a dizer: "Temos assuntos para falar. Encontramo-nos perto da hora de almoço na zona da Baixa. O teu casaco é absolutamente lindo." Xamilas sentia que, dados os detalhes vagos para o encontro, se elas se conseguissem de facto encontrar, seria algo tão especial que valia a pena correr o risco de não se chegarem a ver. Era algo por que valia a pena sofrer. Já Lustrosa, que não só não era fã do PON como regia a sua vida pelo Princípio da Optimização Extrema*, respondeu-lhe apenas "OK. 12h30 à porta do Minitreço. Aliás, na caixa 34. Aquilo tem várias portas e era uma confusão." Xamilas ficou desapontada. Lustrosa tinha conseguido tornar um encontro que podia ser um supremo fascínio em algo sem qualquer espécie de significado.

Xamilas acredita que há algo de mágico, de etéreo, naquele princípio. Algo que a faz ter arrepios na espinha só de pensar nele. Às vezes quando se concentra muito a pensar no PON chega a sentir uma espécie de incisões cutâneas muito precisas, embora não dolorosas, na zona do abdómen. Xamilas lembra-se bem de um desses momentos, até porque foi quando foi operada ao apêndice, que é algo que dificilmente se esquece. Disse-lhe o médico que aquilo tinha sido tudo causado por ela comer as graínhas das uvas. Ela não ligou. De cada vez que tentava safar-se das graínhas acabava por trincá-las. E as graínhas têm um sabor demasiado amargo na opinião de Xamilas.

Xamilas aprecia o PON acima de tudo porque abomina a ideia de que o universo seja determinístico. Abomina bastante, até. Aliás, abomina tanto que quase morreu de dores no peito quando percebeu que num universo determinístico não poderia congratular-se por conquistar alguma coisa, nem mesmo o seu lindo descapotável. E uma vez também ficou um bocado picada por ter que comer bolachas de chocolate quando o seu cérebro quase colapsou por ser obrigada a escolher entre pão de trigo e pão de centeio. Não que ela desgostasse das bolachas, muito pelo contrário. Mas o facto de não ter sido sua a escolha, irritava-a particularmente. Sentia-se abusada. E o abuso é mau. Muito mau. Quando se sentia abusada, Xamilas focava a sua energia no PON e ficava muito mais calma. O símbolo do PON é um pequeno pónei azul com a crina em arco-íris. Por isso Xamilas, gosta de fechar os olhos e imaginar um pónei a saltitar pela floresta a comer bagos de uvas com graínhas. O símbolo do PON ser um pónei é uma grande coincidência, principalmente porque nalguns dialectos de ervilhas pónei escreve-se foneticamente como "pon". Como por exemplo na frase "Olha ali aquele pon tão bonito". Algumas ervilhas diriam "Não há coincidências". Mas Xamilas dirá antes "Há sim senhora. E são absolutamente fascinantes".

* O Princípio da Optimização Extrema diz que o tempo de vida deve ser utilizado de forma óptima para maximizar o número de coisas que conseguimos fazer. Diz o princípio que quanto melhor optimizarmos o tempo, mais poderemos desfrutar do tempo de vida. Embora pareça uma contradição, nas suas formas mais fundamentalistas, este princípio chega a sugerir que, mesmo que o tempo que se perca a optimizar seja superior ao que se ganha ao pôr a optimização em prática, o esforço por pôr em prática este princípio é suficiente para tornar toda a existência mais especial.

Robirta e as noites para esquecer

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Depois de ter descoberto o Cheiro da Paixão, Robirta descobriu a dor de ser abandonada pelo grande amor da sua vida e decidiu beber para esquecer. Escreveu "Mais Uma Noite Para Esquecer". Quase sempre vodka. Noites e noites naquilo. Não sei se alguma vez sairá desta fossa. Vamos acreditar que sim.







MAIS UMA NOITE PARA ESQUECER
Robirta

É sexta-feira à noite e eu
Não tenho ninguém com quem rolar
Longe os tempos em que as tuas covas viviam perto de mim
Longe os tempos em que a tua casca me abraçava sem fim

Por isso quatro da manhã e eu
Perdida num bar qualquer
Vou beber
Vou beber para esquecer

Abandonaste-me e fiquei ao frio
Onde está a minha humidade?
Passo os dias a chorar e tu não queres saber
E hoje é só mais uma noite para esquecer