Kolmicas e as caixinhas coloridas

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. É obcecada por colibris de penas tufadas. Por colibris de penas tufadas e por informação. Assina duas revistas semanais de ciência, uma de economia e três de generalidades, dois semanários e um diário, e ainda uma revista de geografia que lhe explica, por exemplo, os rituais de acasalamento dos urubus. Toda esta informação aliciante totaliza cerca de 1200 páginas todas as semanas.

Tendo em conta que em cada dia Kolmicas trabalha oito horas e dorme outras oito, mesmo que não fizesse mais nada, teria que ler cerca de duas páginas e meia por minuto para absorver toda aquela informação, o que é impossível. Felizmente, na realidade, Kolmicas não precisa de ler todas as 1200 páginas e o tempo que tem seria exactamente o necessário para ler tudo o que é relevante.

Porém, Kolmicas não se contenta apenas com ler toda aquela informação de forma linear e criou todo um sistema inovador. Para facilitar a absorção de informação, Kolmicas gosta de começar por estruturar aquele conjunto caótico de informação. Então, Kolmicas utiliza o tempo, não a ler todas aquelas fontes de informação, mas sim a folheá-las para seleccionar o que é interessante e o que é irrelevante. As coisas interessantes coloca-as numa caixinha azul com um mocho amarelo desenhado, para ler com atenção mais tarde. As irrelevantes coloca-as numa caixinha vermelha com um veículo de triturar lixo desenhado, para ler apenas se lhe sobrar tempo depois de ler as coisas da caixinha azul.

Infelizmente, quando acaba de organizar todos os seus recortes e vai efectivamente começar a ler o primeiro recorte, a semana está praticamente a acabar. Mas isso não é muito grave, porque nessa altura ela junta as sete caixinhas azuis com mochos amarelos e armazena-as numa divisão da casa dedicada apenas a guardar as coisas interessantes. As sete caixinhas vermelhas com veículos de triturar lixo são colocadas na arrecadação. Com o tempo adicional de pôr as etiquetas correctas em cada caixinha e o tempo de ir comprar novas catorze caixinhas, não lhe sobra tempo para mais nada. Claro que isso não a incomoda porque Kolmicas sabe que quando tiver tempo irá pegar naqueles recortes e ler os mais importantes. E mesmo que não o faça, pode haver alguma altura em que lhe apeteça ler informação interessante e bastará abrir uma qualquer das caixinhas azuis escolhida ao acaso.

Em semanas mais atarefadas, Kolmicas por vezes atrasa-se no processo de catalogação da informação e tornam-se necessárias medidas de emergência. Kolmicas detesta essas medidas de emergência, mas há alturas em que se tornam imprescindíveis. Uma coisa que ela não aceitaria, seria deitar fora jornais ou revistas que tinham custado tanto dinheiro. Numa dessas situações extremas, Kolmicas chegou a acumular quase metade das revistas e jornais de duas semanas sem serem analisados. Teve que comprar uma caixa preta, na qual desenhou uma borboleta cor-de-rosa com um ponto de interrogação em cada asa, e onde colocou em monte todos os jornais que não tinham sido catalogados em azul ou vermelho. Depois pôs essa caixa por baixo da sua cama, porque não queria sequer ver essa parte negra da sua vida.

Todo este processo de estruturação de informação requer muito tempo. Por essa razão Kolmicas não tem qualquer vida social. Sempre que é convidada para algum evento, Kolmicas declina. Sente-se de facto muito tentada a ir, mas invade-a imediatamente uma tensão enorme. Só de pensar na quantidade de caixas pretas que daí adviriam e em como isso poderia levantar a sua cama num dos lados e pô-la a dormir inclinada, fica com calafrios. Kolmicas detesta dormir inclinada. Fá-la ter sonhos em que parece que está sempre a cair mas nunca chega realmente a cair, e o descanso não é o mesmo.

Um dia, quando Kolmicas estava no trabalho, a sua casa ardeu. Não se safou nada. Excepto a arrecadação, que é na cave do prédio. Os peritos pirotécnicos concluíram que devia ter sido um curto-circuito numa das tomadas do quarto de dormir. Disseram que se não fosse todo aquele papel acumulado debaixo da cama, provavelmente nada disso teria acontecido. Kolmicas culpou-se para o resto da vida. Sabia que se tivesse sido diligente e estruturado todas as fontes de informação atempadamente, nada daquilo teria acontecido. Ficou triste. Porém, aprendeu uma lição: não se deve procrastinar coisas importantes. Prometeu a si própria que, mesmo que isso implicasse às vezes não jantar ou até falar menos tempo ao telefone com a melhor amiga, não ia deixar um recorte que fosse por catalogar. A sua diligência foi aparentemente recompesada. Até à data, nunca mais houve incêndio algum na sua casa.

1 comment:

  1. Anonymous26/7/09 20:09

    Verdadeiro retrato de muitos humanos. Caixas, caixinhas e caixotes para tudo organizar, catalogar e, finalmente, trabalhar...

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