O método da escolha dos sapatos de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas tem oito pares de sapatos. São oito esquerdos e oito direitos. Para escolher os que vai usar, Xamilas usa um método que algumas ervilhas apelidam de peculiar. O procedimento é muito simples. Xamilas tem os seus sapatos todos no mesmo quarto, num monte, dispostos aleatoriamente. Com as luzes apagadas, chega lá e escolhe dois sapatos completamente ao acaso. Se forem dois sapatos esquerdos ou dois direitos, Xamilas repõe o segundo sapato e volta a escolher um novo do monte até que saia um sapato do lado que deve ser. Os dois sapatos que obtém desta forma são os sapatos que vai usar nesse dia. Xamilas chama a este processo o Método da Escolha dos Sapatos. Foi a própria Xamilas que inventou, algo que a deixa muito orgulhosa. Ainda hoje, passados vinte anos sobre o dia em que inventou este método, a melhor forma de abordar Xamilas pela primeira vez é perguntar-lhe se ela é *a* Xamilas que inventou o método da escolha dos sapatos. Os seus olhos iluminam-se por dentro quando lhe fazem essa pergunta. E sente borboletas a esvoaçar na barriga. Daquelas com várias cores.

Usando este método, torna-se bastante difícil usar dois sapatos do mesmo par. Na maior parte dos dias, Xamilas anda com sapatos diferentes. Mas isso não a incomoda minimamente porque sabe que, se um dia usar dois sapatos do mesmo par, será um dia especial. E no entanto, todas as ervilhas olharão para Xamilas como se nada fosse, já que apenas verão um normal par de sapatos. Xamilas acreditava que o facto de ter deliberadamente diminuído a probabilidade de algo acontecer, tornava esse acontecimento muito mais especial. Aquele gesto simples do dia-a-dia, e que nunca lhe retirava mais de cinco minutos por dia e apenas a tinha feito perder o comboio duas vezes, encerrava em si a mais profunda essência do Princípio da Ordem Natural.

A Ordem Natural é uma filosofia teológica que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Ordem Natural (PON). O PON é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. No caso de Xamilas, andar com dois sapatos que fizessem par seria uma dessas coincidências não fortuitas. A partir do PON deduz-se directamente todo um conjunto de directivas basilares que devem reger o modo de vida das ervilhas que crêem nesse princípio. O moto da Ordem Natural é "Há coincidências. E são absolutamente fascinantes." A Ordem Natural vai mais longe e incita os seus crentes a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais. Daí o Método da Escolha dos Sapatos de Xamilas.

Xamilas é uma ferverosa crente no PON. Por isso, deixa que a própria Ordem Natural proceda, não só à selecção do seu calçado, como também que faça parte da sua vida em todo um outro conjunto de coisas. Basicamente, em tudo. Por exemplo, depois de se converter à Ordem Natural, Xamilas nunca mais combinou encontros convencionais com outras ervilhas. Deixou de marcar hora e locais específicos e passou a combinar detalhes muito mais vagos. E quanto mais vagos melhor. Ainda noutro dia, para se encontrar com Lustrosa, mandou-lhe uma mensagem a dizer: "Temos assuntos para falar. Encontramo-nos perto da hora de almoço na zona da Baixa. O teu casaco é absolutamente lindo." Xamilas sentia que, dados os detalhes vagos para o encontro, se elas se conseguissem de facto encontrar, seria algo tão especial que valia a pena correr o risco de não se chegarem a ver. Era algo por que valia a pena sofrer. Já Lustrosa, que não só não era fã do PON como regia a sua vida pelo Princípio da Optimização Extrema*, respondeu-lhe apenas "OK. 12h30 à porta do Minitreço. Aliás, na caixa 34. Aquilo tem várias portas e era uma confusão." Xamilas ficou desapontada. Lustrosa tinha conseguido tornar um encontro que podia ser um supremo fascínio em algo sem qualquer espécie de significado.

Xamilas acredita que há algo de mágico, de etéreo, naquele princípio. Algo que a faz ter arrepios na espinha só de pensar nele. Às vezes quando se concentra muito a pensar no PON chega a sentir uma espécie de incisões cutâneas muito precisas, embora não dolorosas, na zona do abdómen. Xamilas lembra-se bem de um desses momentos, até porque foi quando foi operada ao apêndice, que é algo que dificilmente se esquece. Disse-lhe o médico que aquilo tinha sido tudo causado por ela comer as graínhas das uvas. Ela não ligou. De cada vez que tentava safar-se das graínhas acabava por trincá-las. E as graínhas têm um sabor demasiado amargo na opinião de Xamilas.

Xamilas aprecia o PON acima de tudo porque abomina a ideia de que o universo seja determinístico. Abomina bastante, até. Aliás, abomina tanto que quase morreu de dores no peito quando percebeu que num universo determinístico não poderia congratular-se por conquistar alguma coisa, nem mesmo o seu lindo descapotável. E uma vez também ficou um bocado picada por ter que comer bolachas de chocolate quando o seu cérebro quase colapsou por ser obrigada a escolher entre pão de trigo e pão de centeio. Não que ela desgostasse das bolachas, muito pelo contrário. Mas o facto de não ter sido sua a escolha, irritava-a particularmente. Sentia-se abusada. E o abuso é mau. Muito mau. Quando se sentia abusada, Xamilas focava a sua energia no PON e ficava muito mais calma. O símbolo do PON é um pequeno pónei azul com a crina em arco-íris. Por isso Xamilas, gosta de fechar os olhos e imaginar um pónei a saltitar pela floresta a comer bagos de uvas com graínhas. O símbolo do PON ser um pónei é uma grande coincidência, principalmente porque nalguns dialectos de ervilhas pónei escreve-se foneticamente como "pon". Como por exemplo na frase "Olha ali aquele pon tão bonito". Algumas ervilhas diriam "Não há coincidências". Mas Xamilas dirá antes "Há sim senhora. E são absolutamente fascinantes".

* O Princípio da Optimização Extrema diz que o tempo de vida deve ser utilizado de forma óptima para maximizar o número de coisas que conseguimos fazer. Diz o princípio que quanto melhor optimizarmos o tempo, mais poderemos desfrutar do tempo de vida. Embora pareça uma contradição, nas suas formas mais fundamentalistas, este princípio chega a sugerir que, mesmo que o tempo que se perca a optimizar seja superior ao que se ganha ao pôr a optimização em prática, o esforço por pôr em prática este princípio é suficiente para tornar toda a existência mais especial.

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