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Um mundo de Bombocas e Ranholas

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Alipas era amiga íntima de Xamilas. Tão íntimas que partilhavam até escovas de dentes. Principalmente se fossem azuis. As escovas. Costumavam ter discussões muito profundas acerca da aleatoriedade do mundo e do destino. Muitas ervilhas achavam que elas tinham exactamente a mesma opinião sobre esses assuntos. Do ponto de vista de cada uma delas, porém, a sua diferença de opinião era abissal.

Xamilas acreditava que havia coincidências e que elas eram fascinantes. Daí que tivesse criado todo o seu método da escolha dos sapatos e deixasse o Princípio da Ordem Natural reger a maior parte da sua vida prática. Alipas, por oposição, achava que não havia coincidências. Sentia que aquilo que algumas ervilhas chamavam "coincidências" eram, ao invés, fruto de uma qualquer intervenção de uma entidade sobrenatural sobre o mundo. E era daí que toda a sua divergência brotava.

Para Alipas as ervilhas podiam dividir-se em três classes mutuamente exclusivas: (1) ervilhas de sorte, (2) ervilhas de azar e (3) o resto da maralha. Todas as outras ervilhas também aceitavam que as ervilhas se podiam dividir nestas três classes. A diferença era que para Alipas esta divisão era relevante. Alipas designava as ervilhas de sorte por bombocas, e as ervilhas de azar por ranholas. As bombocas eram todas aquelas ervilhas a quem tudo corria às mil maravilhas independentemente do que fizessem. Eram ervilhas de sucesso. De uma forma ou de outra, as tais boas "coincidências" aconteciam-lhes sempre e levavam-nas sempre ao sucesso. Era por isso que Alipas não acreditava que elas fossem coincidências. Por ela, podiam chamar-lhes o que quisessem: ancinhos, revólveres, feldspatos triclínicos. Mas coincidências, não. Alipas também acreditava que uma bomboca não tinha sorte apenas numa faceta da sua vida; tinha-a em todas. Ou era ervilha de sorte ou não. E, se era de sorte, então tudo lhe corria sempre bem. E se por acaso não corresse, então isso sim era o que ela chamava uma coincidência. E as coincidências não passavam disso mesmo e podiam ser ignoradas.

Por exemplo, Alipas estava absolutamente convicta de que a sua irmã era uma ranhola nata. Sempre que a irmã saía com o carro até ao centro da cidade, apanhava uma multa de estacionamento. Era certo. Podia não ser sempre, mas era muitas vezes. Certamente muitas mais do que acontecia a uma ervilha normal. E isto não era mera percepção ou memória selectiva. Alipas era muito científica e fazia um registo completo das suas evidências experimentais sobre as quais fazia depois um tratamento estatístico rigososo. Durante dois anos, registou todas as saídas de carro da irmã e da mãe até ao centro. A mãe serviu de ervilha de controlo, já que Alipas não acreditava que a mãe fosse uma ranhola ou uma bomboca. Uma ervilha de azar não teria ganho duas vezes o primeiro prémio da "Melhor Sopa de Feijão Verde do Vale", mas uma ervilha de sorte não podia ter casado com alguém que, não só a abandonou ao fim de dois anos de casamento, ainda grávida da segunda filha, como lhe batia todos os dias pares do mês e a sua cor preferida era lilás.

Os dados recolhidos não deixavam quaisquer dúvidas. A sua irmã tinha tido 45 multas de estacionamento durante o período de dois anos enquanto que a mãe não tinha tido qualquer uma. A irmã de Alipas era claramente uma ranhola. Os factos não deixavam margem para grandes divagações. E contra factos não havia argumentos. A menos que fossem argumentos estúpidos como os de Xamilas. Alipas achava que Xamilas conseguia ser muito picuinhas. E chata. Isso tornava-se manifestamente claro pela forma como Xamilas mexia o dedo indicador esticado no ar e ficava com uma voz muito mais nasalada e irritante enquanto falava. Mas isto apenas quando estava a ser picuinhas. No resto do tempo Xamilas era, não só uma ervilha normal, como até mesmo muito adorável. Nesta discussão concreta, porém, prendia-se com detalhes técnicos da análise estatística. Isso irritava profundamente Alipas que sentia que não se estavam a discutir as questões de fundo, mas apenas pormenores matemáticos irrelevantes que apenas serviam para ofuscar a verdade absoluta de que a irmã de Alipas era uma verdadeira ranhola. É que bastava olhar para ela, para saber isso. Andava sempre despenteada e cheirava mal da boca.

Xamilas argumentava que a comparação não era justa porque a irmã tinha ido 432 vezes à baixa enquanto a mãe apenas tinha ido 8. Isso não fazia qualquer sentido para Alipas. Que interessava se uma delas gostava mais de ir à baixa do que a outra? "Teve mais multas não teve?" Xamilas perguntou se a mãe de Alipas, que parecia uma ervilha tão calma em comparação com a despassarada da irmã, não seria mais cuidadosa a estacionar. Alipas disse imediatamente que sim, que não só a mãe era mais cuidadosa a conduzir -- tanto era que nunca iria estacionar num sítio proibido -- como a irmã era uma revoltada e nunca na vida iria pôr dinheiro num parquímetro. Quando Xamilas tentou sugerir que as 45 multas podiam não ser um azar intrínseco da irmã mas sim uma consequência do seu mau comportamento consistente, Alipas usou um argumento difícil de contornar: "Oh, lá estás tu com as tuas coisas". Xamilas também achou estranho que o registo da mãe não tivesse qualquer multa mas estivesse rasurado. Perguntou a Alipas o que eram aqueles riscos. Ela explicou que em rigor a mãe tinha levado uma multa, mas que tinha sido apenas porque a mãe estava muito irritada naquele dia e acabou por deixar o carro de qualquer maneira. Em circunstâncias normais nunca o faria. Por isso aquele dado não contava. E não contou.

Xamilas sentia-se impotente para mudar as crenças de Alipas. Era como tentar explicar a certos vegetais, como as alfaces, que um par de cada uma das espécies de seres vivos não podiam caber todos numa arca e que, se coubessem, iam lá estar lesmas, tarântulas e um monte de variedades diferentes de vermes e minhocas nojentas e não apenas pandas e coalas fofinhos. O que mais irritava Xamilas era que Alipas tinha o descaramento de lhe dizer que, se ela não acreditava em bombocas e ranholas, era porque era demasiado fechada a novas ideias. Que tudo o que Alipas estava a fazer era a manter o espírito aberto, não negando a sua existência. Que a Ervilhandade só não avançava mais depressa por haver tanta ervilha com visões redutoras como a de Xamilas. Nessa altura Xamilas normalmente bebia um copinho de água para se refrescar e pensava em campos de papoilas.

Xamilas achava muito difícil de entender que, a existirem de facto bombocas e a terem sempre tanta sorte, não passassem o tempo a jogar no totoloto para ficar ricas. Alipas explicou que a verdadeira bomboca não tem a percepção de ter essa sorte e por isso não a consegue usar assim directamente em seu proveito. Xamilas achava que isso era um mecanismo de auto-sustentação, mas preferiu ficar a observar uma núvem púrpura que estava mesmo por cima delas e que tinha a forma de pescadinha de rabo na boca. Alipas acreditava verdadeiramente que certas ervilhas tinham mais probabilidade de ganhar o totoloto do que outras. Mais ainda, conseguia dizê-lo em voz alta. Xamilas, chocada, perguntou se as bolas que andavam na roda do totoloto tinham efectivamente noção disso e abriam espaço para as bolas com os números que uma bomboca tivesse posto num papel três dias antes numa aldeola qualquer. Alipas disse-lhe que as bolas eram seres inanimados, que não tinham consciência e que isso era estúpido. Xamilas decidiu que não valia a pena tentar dizer mais nada. Mas como era muito amiga de Alipas, achou que não deviam ficar zangadas com aquilo e convidou-a para ir beber um refresco para o café da praia. Ficaram ali as duas juntas a aproveitar o calor de Verão e a contemplar a ténue separação entre o mar e o céu. No silêncio, apenas os piscares de olhos das duas amigas. Passou um barquinho à vela ao longe que desapareceu na linha do horizonte. Isso, ou afundou-se. Nunca saberemos.

O método da escolha dos sapatos de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas tem oito pares de sapatos. São oito esquerdos e oito direitos. Para escolher os que vai usar, Xamilas usa um método que algumas ervilhas apelidam de peculiar. O procedimento é muito simples. Xamilas tem os seus sapatos todos no mesmo quarto, num monte, dispostos aleatoriamente. Com as luzes apagadas, chega lá e escolhe dois sapatos completamente ao acaso. Se forem dois sapatos esquerdos ou dois direitos, Xamilas repõe o segundo sapato e volta a escolher um novo do monte até que saia um sapato do lado que deve ser. Os dois sapatos que obtém desta forma são os sapatos que vai usar nesse dia. Xamilas chama a este processo o Método da Escolha dos Sapatos. Foi a própria Xamilas que inventou, algo que a deixa muito orgulhosa. Ainda hoje, passados vinte anos sobre o dia em que inventou este método, a melhor forma de abordar Xamilas pela primeira vez é perguntar-lhe se ela é *a* Xamilas que inventou o método da escolha dos sapatos. Os seus olhos iluminam-se por dentro quando lhe fazem essa pergunta. E sente borboletas a esvoaçar na barriga. Daquelas com várias cores.

Usando este método, torna-se bastante difícil usar dois sapatos do mesmo par. Na maior parte dos dias, Xamilas anda com sapatos diferentes. Mas isso não a incomoda minimamente porque sabe que, se um dia usar dois sapatos do mesmo par, será um dia especial. E no entanto, todas as ervilhas olharão para Xamilas como se nada fosse, já que apenas verão um normal par de sapatos. Xamilas acreditava que o facto de ter deliberadamente diminuído a probabilidade de algo acontecer, tornava esse acontecimento muito mais especial. Aquele gesto simples do dia-a-dia, e que nunca lhe retirava mais de cinco minutos por dia e apenas a tinha feito perder o comboio duas vezes, encerrava em si a mais profunda essência do Princípio da Ordem Natural.

A Ordem Natural é uma filosofia teológica que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Ordem Natural (PON). O PON é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. No caso de Xamilas, andar com dois sapatos que fizessem par seria uma dessas coincidências não fortuitas. A partir do PON deduz-se directamente todo um conjunto de directivas basilares que devem reger o modo de vida das ervilhas que crêem nesse princípio. O moto da Ordem Natural é "Há coincidências. E são absolutamente fascinantes." A Ordem Natural vai mais longe e incita os seus crentes a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais. Daí o Método da Escolha dos Sapatos de Xamilas.

Xamilas é uma ferverosa crente no PON. Por isso, deixa que a própria Ordem Natural proceda, não só à selecção do seu calçado, como também que faça parte da sua vida em todo um outro conjunto de coisas. Basicamente, em tudo. Por exemplo, depois de se converter à Ordem Natural, Xamilas nunca mais combinou encontros convencionais com outras ervilhas. Deixou de marcar hora e locais específicos e passou a combinar detalhes muito mais vagos. E quanto mais vagos melhor. Ainda noutro dia, para se encontrar com Lustrosa, mandou-lhe uma mensagem a dizer: "Temos assuntos para falar. Encontramo-nos perto da hora de almoço na zona da Baixa. O teu casaco é absolutamente lindo." Xamilas sentia que, dados os detalhes vagos para o encontro, se elas se conseguissem de facto encontrar, seria algo tão especial que valia a pena correr o risco de não se chegarem a ver. Era algo por que valia a pena sofrer. Já Lustrosa, que não só não era fã do PON como regia a sua vida pelo Princípio da Optimização Extrema*, respondeu-lhe apenas "OK. 12h30 à porta do Minitreço. Aliás, na caixa 34. Aquilo tem várias portas e era uma confusão." Xamilas ficou desapontada. Lustrosa tinha conseguido tornar um encontro que podia ser um supremo fascínio em algo sem qualquer espécie de significado.

Xamilas acredita que há algo de mágico, de etéreo, naquele princípio. Algo que a faz ter arrepios na espinha só de pensar nele. Às vezes quando se concentra muito a pensar no PON chega a sentir uma espécie de incisões cutâneas muito precisas, embora não dolorosas, na zona do abdómen. Xamilas lembra-se bem de um desses momentos, até porque foi quando foi operada ao apêndice, que é algo que dificilmente se esquece. Disse-lhe o médico que aquilo tinha sido tudo causado por ela comer as graínhas das uvas. Ela não ligou. De cada vez que tentava safar-se das graínhas acabava por trincá-las. E as graínhas têm um sabor demasiado amargo na opinião de Xamilas.

Xamilas aprecia o PON acima de tudo porque abomina a ideia de que o universo seja determinístico. Abomina bastante, até. Aliás, abomina tanto que quase morreu de dores no peito quando percebeu que num universo determinístico não poderia congratular-se por conquistar alguma coisa, nem mesmo o seu lindo descapotável. E uma vez também ficou um bocado picada por ter que comer bolachas de chocolate quando o seu cérebro quase colapsou por ser obrigada a escolher entre pão de trigo e pão de centeio. Não que ela desgostasse das bolachas, muito pelo contrário. Mas o facto de não ter sido sua a escolha, irritava-a particularmente. Sentia-se abusada. E o abuso é mau. Muito mau. Quando se sentia abusada, Xamilas focava a sua energia no PON e ficava muito mais calma. O símbolo do PON é um pequeno pónei azul com a crina em arco-íris. Por isso Xamilas, gosta de fechar os olhos e imaginar um pónei a saltitar pela floresta a comer bagos de uvas com graínhas. O símbolo do PON ser um pónei é uma grande coincidência, principalmente porque nalguns dialectos de ervilhas pónei escreve-se foneticamente como "pon". Como por exemplo na frase "Olha ali aquele pon tão bonito". Algumas ervilhas diriam "Não há coincidências". Mas Xamilas dirá antes "Há sim senhora. E são absolutamente fascinantes".

* O Princípio da Optimização Extrema diz que o tempo de vida deve ser utilizado de forma óptima para maximizar o número de coisas que conseguimos fazer. Diz o princípio que quanto melhor optimizarmos o tempo, mais poderemos desfrutar do tempo de vida. Embora pareça uma contradição, nas suas formas mais fundamentalistas, este princípio chega a sugerir que, mesmo que o tempo que se perca a optimizar seja superior ao que se ganha ao pôr a optimização em prática, o esforço por pôr em prática este princípio é suficiente para tornar toda a existência mais especial.

Xamilas e as bolachas de chocolate

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas saíu de casa para comprar pão. Chegada à padaria olhou o pão quentinho. Ficou indecisa entre o pão de trigo e o de centeio. Ambos pareciam deliciosos. Apenas podia escolher um deles portanto concluiu que era razoável que tivesse que tomar uma decisão.

Lembrou-se então que podia sempre não tomar qualquer decisão acerca dos pães. Mas nesse caso estaria sempre a decidir entre (1) tomar uma decisão sobre que pão comprar e (2) não tomar qualquer decisão. A menos que também decidisse não tomar nenhuma decisão relativamente a estas duas opções. Mas não tomar essa decisão seria por si só já uma opção entre (A) não tomar nenhuma decisão sobre escolha entre 1 e 2 e (B) escolher entre 1 e 2.

Nessa altura, Xamilas apercebeu-se que este processo se podia repetir indefinidamente. Se ali ficasse a enumerar as decisões que podia obter desta maneira, dado que elas são infinitas, ficaria ali tempo infinito. Se ficasse ali tempo infinito, acabaria por tomar involuntariamente a decisão de não tomar qualquer decisão sobre nenhuma das possíveis decisões. E isto por si só era já uma decisão. Em resumo, se ela se desse ao trabalho de conhecer todas as possibiilidades de escolha que tinha, o mundo decidiria por ela.

Xamilas concluiu que se tivesse informação completa sobre o mundo, não podia agir sobre ele. Ficou demasiado perturbada e voltou para casa sem pão. Comeu bolachas de chocolate. Estavam tão boas.

O descapotável de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Tem um descapotável amarelo com dois retrovisores laterais. Quando acordou hoje de manhã viu uma ervilha azul a pairar sobre o ar. Era idêntica a qualquer outra ervilha com a excepção de simultaneamente ter filhos e ser virgem. E ser azul.

Disse-lhe a virgem que o mundo era determinístico. Dado que ela era azul, Xamilas acreditou. Ainda para mais, virgem. De repente, invadiu-a uma imensa tristeza. O descapotável amarelo não seria então mérito seu. Apenas o resultado de ela ser aquele conjunto de átomos que no seu conjunto se designavam por Xamilas e estar definido algures que ela o ia comprar.

Chorou, chorou e voltou a chorar. Depois chorou ainda mais, porque percebeu que aquele choro não era uma consequência da sua nova percepção do mundo, mas apenas o resultado de ele ser determinístico. Sentiu-se presa. O aperto no peito foi tão grande que morreu. Se não foi, pareceu mesmo.