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Amelínia e a origem das espécies

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Parêntida gostava muito de contar histórias à sua filha, Xambélia. Histórias célebres, como a de Atlantis ou de Esnífia. A filha parecia gostar, caso contrário não continuaria a fazer perguntas à hora de dormir. Ou, se calhar, era simplesmente forma de ajudar a mãe, que talvez precisasse daquela terapia criativa de imaginar mundos fantásticos. Seja como for, Xambélia ouvia-as sempre. Pelo menos nos primeiros quarenta segundos.

Eram quatro da manhã e Xambélia estava sobressaltada em mais um dos seus sonhos surrealistas. Desta vez fugia de uma libelinha gigante que a queria matar sussurrando-lhe mensagens misteriosas ao ouvido enquanto ela colhia hortelã. Parêntida ouviu o alarido no quarto da filha e ignorou-o por completo. Ao fim de duas horas daquilo, e de perceber que não iria também ela conseguir dormir, decidiu ir lá. Quando chegou viu a filha a rebolar-se frenética nos lençóis, com as mãos a tapar os ouvidos e a gritar

- Não estou a ouvir!! Não estou a ouvir!!

A mãe esboçou um sorriso de escárnio e apreciou por uns instantes o momento. Depois, tocou-lhe ao de leve. Xambélia percebeu que era apenas mais um sonho surrealista e acalmou. Só que depois ficou sem sono. Por estar sem sono, pôs-se a reflectir um pouco sobre a origem da vida. Olhou Parêntida com um ar profundo e perguntou

- Por que há tantos animais e vegetais diferentes e não há só ervilhas?

Parêntida sabia da importância de responder a esta pergunta metafísica. E também da importância de adormecer Xambélia rapidamente se ainda queria dormir alguma coisa antes de acordar para ir trabalhar. Parêntida era insuportável quando dormia pouco. E sabia-o. Ponderou também ela um pouco sobre a génese da vida e começou a sua explicação:

Era uma vez uma amiba chamada Amelínia. Usava o cabelo preso atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo. Amelínia era o único ser vivo no mundo. Sentia-se muito sozinha. Por isso, desenhou outra amiba em papel cavalinho. Fê-lo porque era um papel mais rijo e Amelínia não queria que o desenho se dobrasse ou amarrotasse. Quando acabou o desenho, a amiba que havia desenhado saíu do papel e tornou-se numa amiba real. Não que não tivesse já realidade física quando estava no papel. Porém, era feita apenas de celulose. Quando saíu do papel passou a ser uma célula. É daí que vem a palavra célula, de celulose. O segundo ser unicelular do universo era, portanto, nos seus primórdios, feito de celulose. O primeiro era, obviamente, Amelínia. Pode-se perguntar de onde surgiu Amelínia. Mas também se pode não perguntar, por isso, vamos escolher a segunda. Amelínia gostou tanto da sua nova amiga que decidiu chamar-lhe Cimpória. Ficaram logo muito amigas. Viam a novela sempre juntas no sofá-cama de Amelínia.

Amelínia não conseguia deixar de pensar como era surpreendente que o seu desenho se tivesse transformado num ser vivo real. Às vezes dava por ela a cogitar como seria se desenhasse outros seres vivos que lhe viessem à cabeça. Ou mesmo outros que não lhe viessem à cabeça. No entanto, era sempre incapaz de os desenhar, com medo de provocar descontinuidades irreversíveis na evolução natural das espécies. Um dia fartou-se de viver naquela ansiedade de não saber se era possível criar outros seres vivos. Foi à papelaria e comprou vários blocos A4 de papel cavalinho e um conjunto de lápis 2B. Amelínia gostava muito de lápis 2B porque eram muito macios. Começou então a desenhar vários vegetais. Desenhou uma couve roxa e uma bananeira mas não aconteceu nada. Amelínia não desistiu e, com todo o cuidado, repetiu os dois desenhos mas, desta feita, em folhas de papel separadas. Ficou deliciada quando viu a couve e a bananeira materializarem-se à sua frente, bem reais. A partir daí desenhou sempre cada ser vivo numa folha separada. Fazia, aliás, todo o sentido: um ser vivo, uma folha. Aproveitou, e comeu uma banana. Sabia mesmo aquilo que ela pensava.

Maravilhada com o sucesso da couve e da bananeira, decidiu ir mais longe. Desenhou um ornitorrinco. Ficou perfeito. Contudo, nada aconteceu. Mesmo apesar de ter sido desenhado numa folha separada. O ornitorrinco permanecia no papel. Impávido. Imóvel. Um silêncio sepulcral. Passado um pouco ouviu-se uma voz grave e calma vinda de todos os lados e de parte nenhuma:

- Este animal é ridículo. Parece um mamífero, mas ao mesmo tempo parece um pato. E esses ovos no desenho, são dele? Isto está um pouco confuso. Tenta outra vez.

Amelínia rapidamente percebeu que tinha que suplementar os seus desenhos com algumas instruções sobre o comportamento do animal que queria criar. Fazia sentido. Era difícil criar um animal inteiro apenas a partir de uma imagem. Ficava muita ambiguidade por resolver. De facto, a aparência exterior do ornitorrinco por si só não dizia o suficiente sobre ele. Para o criar, era preciso facultar informação adicional. Por isso, Amelínia passou a escrever anotações na parte de trás do desenho. No caso do ornitorrinco, escreveu que ele punha ovos mas que amamentava as suas crias. Podia também dizer coisas sobre a personalidade do animal que queria criar. Neste caso, escreveu brincalhão. Era interessante como não era importante a linguagem em que essas anotações eram escritas. De facto, Amelínia podia mesmo escrever numa linguagem acabada de inventar só para aquele desenho, porque havia uma entidade algures que saberia exactamente o que ela queria dizer e criava o animal de acordo com as características descritas no verso da folha de papel. Amelínia não deixava de ficar fascinada com a fidelidade dos animais criados à sua ideia original. Eram exactamente como ela os queria ter criado, mesmo que por vezes a sua descrição no verso fosse um pouco vaga.

Durante anos, Amelínia dedicou-se a criar animais e vegetais dos mais variados que conseguia imaginar. Adorava aquilo. Tinha encontrado uma forma deliciosa de exprimir a sua criatividade. E ela tinha uma imaginação por demais fértil. Só assim se explicava que tivesse criado o peixe-bolha, o aye-aye ou mesmo o axolote. A situação começou a complicar quando Amelínia decidiu criar um animal especificando no verso que esse animal deveria ser capaz de criar outros animais através de desenhos. A partir daí, tudo descambou. Surgiu uma série de animais mal intencionados, que criavam animais ridículos por puro prazer. Eram maldosos. Começaram a ser criados animais de todas as formas e feitios, sem qualquer tipo de restrição. Havia um que era um balão de borracha que se enchia sozinho e que depois se esvaziava a uma velocidade alucinante em zig-zags pelo ar e se espetava contra o animal que estivesse mais perto. Depois, ria-se que nem um perdido, como uma hiena. Muito irritante. Mas não era apenas pura maldade. Eram interesseiros. Criaram um animal que era um tapete persa e que servia apenas de meio de transporte a quem lhe desse um passou-bem. Ao fim do dia, ficava deitado no chão da sala. Quando se fartavam dele, vendiam-no num mercado qualquer a preços alucinantes.

Apareciam animais tão estapafúrdios que era óbvio não poderem ser o resultado de qualquer evolução. Isso preocupou Amelínia que sabia que a única teoria que explicava decentemente a origem das espécies era a que dizia que eles tinham evoluído. Então Amelínia decidiu criar um animal novo a que chamou Papadão. Era muito parecido com um papa-formigas, mas tinha a particularidade de aspirar, ao invés de formigas, apenas animais que nitidamente não pudessem ter surgido por evolução natural. Esses, e também todos os animais mal intencionados ou interesseiros que criassem ou pudessem algum dia criar, através de desenhos, outros seres vivos que não pudessem ter surgido por evolução natural. Tinha a particularidade adicional de, assim que tivesse eliminado todos esses animais, se aspiraria a ele próprio. Amelínia criou milhares de exemplares desse tal Papadão. Eram muito castiços. Tinham um sentido de humor muito particular. E apreciavam o jogo da sueca. Tudo isso tinha sido especificado por Amelínia no verso do desenho. Excepto o interesse pela sueca. Amelínia não apreciava jogos de cartas.

Todos os Papadões executaram diligentemente a tarefa que lhes tinha sido atribuída e no final aspiraram-se a si próprios. Isso deixou Amelínia radiante. O seu plano tinha funcionado na perfeição. Actualmente existe toda uma variedade de espécies animais e vegetais essencialmente devido ao engenho e à criatividade de Amelínia. É muito fácil então perceber de onde vem tanta variedade. Para além disso, felizmente, devido à cultura científica e à luta e preserverança de Amelínia, a teoria da evolução das espécies mantém-se, hoje em dia, como a teoria mais simples que explica a existência de toda a actual variedade genética. Graças a Amelínia, o mundo permaneceu coerente.

No fim da resposta de Parêntida, Xambélia dormia já profundamente. Ou talvez estivesse a fingir. Mas Parêntida achou que ela estava a dormir e por isso foi-se embora. Encostou a porta do quarto e foi ver televisão. Ouviu um barulho vindo do quarto da filha e tirou imediatamente o som à televisão. Pareceu-lhe claramente ouvir o distinto barulho de um lápis 2B a passar sobre papel cavalinho e depois um ladrar normal seguido de um meio abafado. Seria provavelmente do sono. Era já muito tarde. Decidiu apagar a televisão e ir dormir. Na cama estava um leão marinho a roçar-se nos lençóis. Desentalou a sua metade da cama e deitou-se com cuidado para não o acordar. Depois, adormeceu.

Esnífia e a natureza do espirro

Conheço uma ervilha. Chama-se Xambélia. Como todas as ervilhas, Xambélia tinha uma mãe. Chamava-se Parêntida. A mãe. Xambélia tinha sempre muitas perguntas sobre o mundo. Parêntida tinha uma forma pedagógica de as abordar, contando-lhe histórias fantásticas, como a de Atlantis e a Salinização dos Mares. Acima de tudo, eram histórias verdadeiras. A verdade sempre foi uma conceito muito subjectivo.

Era hora de dormir e, como sempre, Xambélia não tinha sono. Rebolou-se algumas vezes na sua cama, mas nada.

- Parêntida!... -- chamou, como sempre, num tom completamente inesperado.

A mãe entrou esbafurida pelo quarto adentro e só sossegou quando percebeu que era apenas a filha a chamar. Acalmou. Mas agora já não se podia ir embora porque a filha tinha dado conta que ela tinha entrado.

- Por que espirram as pessoas? -- perguntou Xambélia como se tivesse muito interesse na resposta, algo que ambas sabiam não ser minimamente verdade.

A mãe olhou durante um bocado para o fundo de si à procura da resposta e, quando a encontrou, começou:

Era uma vez uma ervilha chamada Esnífia que gostava muito de alfazema. Andava sempre com um raminho atrás. Um dia decidiu, de livre vontade, espetar dois ou três caules da alfazema nas narinas com toda a força que tinha. Imediatamente fez aquilo que hoje em dia se designa por espirrar. Ficou surpreendida com o estrépido do fenómeno e repetiu-o mais algumas vezes. Como aquilo era algo a que achava muita piada, volta e meia enfiava os caules da alfazema no nariz e espirrava como se não houvesse amanhã. Ao fim de algum tempo a usar desta prática, desenvolveu uma alergia tão crónica que, mesmo sem enfiar qualquer alfazema no nariz, só o pensamento na alfazema gerava uma sequência considerável de espirros. Ao fim de mais algum tempo, já nem precisava de pensar na alfazema para espirrar. Era um processo involuntário e incontrolável. Espirrava de cinco em cinco segundos.

Como era a única ervilha do mundo que espirrava, tornou-se famosa e criou uma moda muito própria. Espirrar tornou-se tão in que muitas ervilhas tinham já aprendido a técnica de fingir os espirros para conseguir atrair a atenção de outras ervilhas. O espirro tornou-se numa forma de demonstração de estatuto social. Apenas as ervilhas capazes de demonstrar tal capacidade de forma exímia podiam ascender socialmente e, no fundo, sobreviver na sociedade. As ervilhas que nunca espirravam eram segregadas e discriminadas, eram-lhes sempre rejeitados os melhores empregos, faziam pouco delas um pouco por todo o lado. O extremo da humilhação era quando uma ervilha que espirrava lhes fazia cócegas com um raminho de alfazema na parte de baixo da casca à frente de todas as ervilhas em redor.

Como sempre, a selecção natural tratou de dar preferência às ervilhas que, através de alguma mutação pontual e depois por cruzamentos entre ervilhas, nasciam já com a capacidade de espirrar involuntariamente. Eram essas de facto as ervilhas com mais probabilidade de sobreviver e de se reproduzir. Tudo isto resultou numa disseminação genética generalizada da propensão para espirrar. Volvidas muitas gerações, foram ficando apenas as ervilhas que volta e meia espirravam. Hoje em dia, não há ervilha que não espirre de vez em quando. Algumas fazem até um ar altamente snob prendendo o espirro, algo que é tido como um comportamento típico das classes mais elavadas. Espirrando agora todas as ervilhas era natural que surgisse algo que pudesse fazer a distinção social entre as ervilhas.

Depois do estrelato, Esnífia entrou numa fase mais depressiva da vida, principalmente quando o espirro se banalizou e praticamente todas as ervilhas espirravam involuntariamente várias vezes ao dia. Esnífia deixou de aparecer na televisão ou de ser convidada para as festas cor-de-rosa. Como resposta, isolou-se nas montanhas onde se dedicou à cultura de vários tipos de ervas aromáticas. Passava o dia a enfiar caules diversos no nariz, à procura de novos fenómenos interessantes. Ao longo do resto da sua vida descobriu ainda dois ou três fenómenos fascinantes. Fenómenos, aliás, tão fascinantes que deixavam o espirro a um canto. Porém, por estar de costas voltadas para o mundo, nunca deu a conhecer a ninguém tão maravilhosas descobertas. Um dia, quando cortava um raminho de hortelã, apareceu-lhe uma libelinha gigante que lhe segredou uma mensagem ao ouvido. Nunca ninguém soube o que foi, até porque não estava mais ninguém lá para ouvir e a libelinha optou também ela por se remeter eternamente ao silêncio nesta matéria, mas foi uma mensagem tão forte que Esnífia morreu de medo. Ficou de barriga para cima. E com os olhos abertos. Esbugalhados.

Finda a resposta, Parêntida olhou a filha ternamente, apenas para confirmar o que já previra. Xambélia dormia profundamente. Desta vez Parêntida não aconchegou os cobertores à filha. Pensou que, se ela tivesse frio durante a noite, talvez sonhasse com a Primavera para aquecer, e se lembrasse da alfazema com força suficiente para dar uns espirros valentes. Parêntida queria acreditar que um dia Xambélia iria ser alguém na vida. E os pais querem sempre o melhor para os filhos. Embuída desse espírito, Parêntida foi-se deitar. Desta vez não se esqueceu de verificar se tinha deixado alguma coisa ao lume. Não tinha.

Atlantis e a salinização dos mares

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Tem uma filha. Chama-se Xambélia. A filha, claro, porque a mãe já disse que se chamava Parêntida. Xambélia estava na idade das mil perguntas. Quase todas as suas frases acabavam com a palavra porquê. E quase nenhuma tinha mais do que uma palavra; apenas uma ou outra. Parêntida sabia como era importante responder a essas perguntas mais longas da sua filha.

Eram tenras horas da manhã e cheirava a alecrim porque algumas ervilhas tinham estado a fumar marijuana durante a noite. Como em todas as manhãs em que cheirava a alecrim, e também em todas em que não cheirava, Xambélia sentiu chegar-lhe ao seu cérebro de ervilha uma dessas suas perguntas com mais de uma palavra. Virou-se para a sua mãe, acabada de chegar ao quarto por um motivo qualquer que hoje em dia já não se sabe qual foi, e disse

- Parêntida! Por que é o mar salgado?

Xambélia tinha a particularidade de tratar a sua mãe pelo seu nome próprio em vez de usar a palavra mãe. Por um lado, tinha muita dificuldade em produzir o som nasalado necessário para pronunciar a palavra mãe correctamente. Por outro, e acima de tudo, havia razões intrínsecas profundas para o fazer. Não era para ser chique ou porque tivesse a mania. Era apenas porque, se dissesse Parêntida, a mãe reagiria mais depressa por não saber quem a estava a chamar. Qualquer filha chama a sua mãe por mãe mas Xambélia sabia que, se o fizesse, a mãe saberia exactamente quem a estava a chamar e levaria muito mais tempo a responder.

Poder-se-ia talvez supôr que Parêntida reconheceria a voz da filha e a estratégia de Xambélia não resultaria. Porém, era precisamente com o facto de a mãe conhecer tão bem a sua voz que Xambélia jogava, fazendo uma voz diferente, umas vezes esganiçada, outras simplesmente ridícula, de cada vez que queria chamar a mãe. A verdade, é que esta técnica funcionava na perfeição, já que depois de a mãe se virar instintivamente na direcção de Xambélia ao ouvir o chamar estridente de um desconhecido, tornava-se difícil fingir que não tinha dado conta. Parêntida não queria ferir os sentimentos da sua filha.

Parêntida tinha já experimentado a técnica de nunca olhar quando ouvia um chamamento ridículo do seu nome. No entanto, desistiu dessa técnica no dia em que foi atropelada por uma betoneira apesar de uma amiga ter chamado histérica o seu nome por dezasete vezes. Aliás, Xambélia estava lá e um dos seus chamamentos preferidos da mãe era precisamente uma imitação perfeita dos gritos da amiga. Xambélia teve a sorte de não ser atropelada porque atravessou primeiro sozinha já que a mãe estava distraída a ver uns sapatos numa montra e disse a Xambélia para ir atravessando:

- Toma atenção a essa betoneira, que vem lá lançada -- disse à filha num tom carinhoso.

Esse atropelamento foi um momento baixo na vida de Parêntida. A betoneira ia certamente fazer serviço importante e atrasou-se. Parêntida detestava deixar outras ervilhas à espera. E deu certamente uma trabalheira ao neuro-cirurgião de serviço nessa noite, que muito provavelmente tinha família à espera em casa. Não que ele pudesse sair antes caso não tivesse havido o acidente, já que estava de serviço, mas podia às vezes querer ver alguma coisa interessante na internet no computador lá da urgência. Ou mesmo uma que não fosse interessante.

Desta vez, porém, Parêntida estava até bastante contente por ter caído na armadilha de Xambélia. Responder a esta pergunta de Xambélia não só fazia parte dos seus importantes deveres de mãe, como era algo que lhe dava um imenso prazer. E era, aliás como quase todas as perguntas da filha, uma de resposta fácil. Na sua mente ecoou novamente a pergunta da filha:

- Por que é o mar salgado?

Parêntida ponderou um pouco sobre se deveria deixar o tacho ao lume enquanto respondia à filha. Optou por deixar. Depois, começou:

Era uma vez uma ervilha com Incontinência Perspírica Crónica (IPC). Chamava-se Atlantis e não fazia copos de cristal. Um dia, puseram essa ervilha num oceano qualquer. Era, como todos os oceanos de então, de água doce. Atlantis, com o medo de se afogar, começou a suar incontrolavelmente. Ali, nas suas imediações, toda a água salgou. As ervilhas que estavam por perto apreciaram essencialmente duas coisas: (i) era muito mais fácil boiar na água em redor de Atlantis; (ii) se a água em redor de Atlantis ficava salgada, podiam então criar algo a que chamariam, por exemplo, salinas, onde se poderia retirar o sal à água e produzir não só sal, o que daria imenso jeito para dar algum sabor às alfaces, como até mesmo água doce, que era óptima para beber. O facto de já existir água doce em abundância nos oceanos não lhes pareceu relevante.

Dado esse conjunto fascinante de vantagens, um grupo de ervilhas auto-denominadas As Verdes, que se preocupava em tornar o mundo um lugar melhor para todos os vegetais, decidiu fazer uma petição na internet com o intuito de se proceder à salinização de toda a água dos mares. Conseguiram milhares de assinaturas, mas não foi uma luta fácil. Primeiro, porque as petições na internet não têm qualquer valor jurídico mas, principalmente, porque a água doce não só era potável como servia para a cultura de vegetais e era difícil convencer o parlamento da República Inomesa a autorizar uma medida que poderia trazer tantas alterações à vida das ervilhas. A líder d'As Verdes, Rebaldas, sabia que tinha uma tarefa desafiante pela frente. Tentou convencer o parlamento de que, se se salinizassem todas as águas, seria altamente benéfica para a economia do país a criação da nova indústria de dessalinização absolutamente necessária para a existência de água potável. Iria ser criado um sem número de novos postos de trabalho. Mas Rebaldas guardou o aliciante mais poderoso para o final: passaria a ser muito mais fácil boiar quando se tomasse banho na praia. O parlamento que estava indeciso, ficou imediatamente convencido. O mundo ficaria um sítio muito mais seguro para as suas crianças nas férias de veraneio. A ideia passou e foi posto em marcha o megalómano Plano Mundial de Salinização (PMS) que tinha por único e nada modesto objectivo a salinização de todas as grandes massas de água.

Todos os dias levavam Atlantis para um local diferente do mundo e diziam-lhe que vinha lá o tubarão. Atlantis, que era daquelas ervilhas que jogava invariavelmente pelo seguro, acreditava sempre que vinha lá de facto o dito tubarão e a adrenalina libertada despoletava a sua incontrolável necessidade de suar aos litros. Salgado aquele lugar, passavam para outro. Quase sempre aquele que estivesse mais longe. As Verdes adoravam viagens de barco. Eram pagas com o dinheiro dos contribuintes. A actividade de Atlantis tornou-se tão importante que chegaram a dar o seu nome a um oceano, em sua homenagem. Toda esta azáfama era óptima, claro, para Atlantis que ficava a conhecer todos os cantos do mundo. E, quando a tentavam afogar para salgar as partes mais profundas do oceano, via uns quantos corais raros lá no fundo. Ao fim de algumas décadas praticamente todas as águas do mundo estavam salgadas. Todas, com excepção dos rios. O que se passava com os rios era que, como as águas estavam sempre a correr, o sal acabava por ser todo levado até ao mar mais próximo e os rios ficavam sempre de água doce. As Verdes eram um grupo de ervilhas muito perseverantes no que tocava a proteger o ambiente. Por isso não iriam desistir facilmente de salgar todos os rios também.

Já depois de todos os mares e oceanos salgados, dedicaram várias décadas a fazer experiências usando Atlantis para salgar um rio em particular, o Xaniledes. Porém, o sal, teimoso, descia sempre para o mar. Experimentaram variar sistematicamente quase todas as variáveis da experiência -- Atlantis de cabeça para baixo, Atlantis com uma touquinha cor-de-rosa ridícula, Atlantis sem dentes, Atlantis empanturrada de Pastéis de Tentúgal a dizer a palavra farfalhudo -- mas nada parecia resultar. Ao fim de 40 anos desistiram. Nessa altura deram conta que todos os peixes do mar onde desaguava o Xaniledes tinham morrido. Decidiram chamar-lhe Mar Morto. Depois passaram os 20 anos seguintes a tentar culpabilizar uma indústria de calçado da região pelo desastre ecológico. Sem sucesso. As indústrias poderosas têm sempre os melhores advogados. Alegaram que não era usado sal no seu fabrico de sapatos tradicionais.

O Mar Morto tornou-se numa atracção mundial e o fluxo turístico de ervilhas, que vinham de terras longínquas para ver de perto um mar onde não havia qualquer tipo de vida, fez florescer a indústria de sapatos da região. Mais do que sapatos para uso corrente, a indústria produz agora sapatos decorativos, comprados como recordação da região pelos turistas. Os famosos sapatos, os chamados Chaliques, têm pintados peixes virados de barriga para cima, a boiar, lembrando o triste evento numa exortação ao princípio fundamental de que nos devemos preocupar com a natureza e, em particular, com os peixes.

Parêntida terminou a história com um sorriso embevecido nos lábios.

- Percebes agora, Xambélia, por que é salgado o mar? -- perguntou à filha.

De Xambélia apenas um respirar mais forte. Nas horas tenras da manhã, Parêntida ajeitou-lhe os cobertores, apagou a luz e encostou a porta do quarto da filha. Sentiu que Xambélia tinha muita sorte em ter uma mãe tão conhecedora do mundo. "É quando elas dormem que compreendemos verdadeiramente como as crianças são uma benção", pensou. Depois, foi finalmente começar o cigarro que tinha enrolado havia uma hora atrás. Enebriada pelo fumo da marijuana, acabou por se esquecer do tacho ao lume. Tinha apenas água, o tacho. Era para cozer massa mais tarde. A água foi evaporando e o tacho acabou por ficar vazio ao lume. Ficou assim duas horas e meia. Quando Parêntida acordou, já de manhã, teve que colocar novamente água no tacho para cozer a massa. Parêntida detestava quando tinha que repetir a mesma coisa duas vezes. Mas teve que o fazer. Era isso ou não comer a massa. E aquela massa era uma perdição.