Amelínia e a origem das espécies

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Parêntida gostava muito de contar histórias à sua filha, Xambélia. Histórias célebres, como a de Atlantis ou de Esnífia. A filha parecia gostar, caso contrário não continuaria a fazer perguntas à hora de dormir. Ou, se calhar, era simplesmente forma de ajudar a mãe, que talvez precisasse daquela terapia criativa de imaginar mundos fantásticos. Seja como for, Xambélia ouvia-as sempre. Pelo menos nos primeiros quarenta segundos.

Eram quatro da manhã e Xambélia estava sobressaltada em mais um dos seus sonhos surrealistas. Desta vez fugia de uma libelinha gigante que a queria matar sussurrando-lhe mensagens misteriosas ao ouvido enquanto ela colhia hortelã. Parêntida ouviu o alarido no quarto da filha e ignorou-o por completo. Ao fim de duas horas daquilo, e de perceber que não iria também ela conseguir dormir, decidiu ir lá. Quando chegou viu a filha a rebolar-se frenética nos lençóis, com as mãos a tapar os ouvidos e a gritar

- Não estou a ouvir!! Não estou a ouvir!!

A mãe esboçou um sorriso de escárnio e apreciou por uns instantes o momento. Depois, tocou-lhe ao de leve. Xambélia percebeu que era apenas mais um sonho surrealista e acalmou. Só que depois ficou sem sono. Por estar sem sono, pôs-se a reflectir um pouco sobre a origem da vida. Olhou Parêntida com um ar profundo e perguntou

- Por que há tantos animais e vegetais diferentes e não há só ervilhas?

Parêntida sabia da importância de responder a esta pergunta metafísica. E também da importância de adormecer Xambélia rapidamente se ainda queria dormir alguma coisa antes de acordar para ir trabalhar. Parêntida era insuportável quando dormia pouco. E sabia-o. Ponderou também ela um pouco sobre a génese da vida e começou a sua explicação:

Era uma vez uma amiba chamada Amelínia. Usava o cabelo preso atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo. Amelínia era o único ser vivo no mundo. Sentia-se muito sozinha. Por isso, desenhou outra amiba em papel cavalinho. Fê-lo porque era um papel mais rijo e Amelínia não queria que o desenho se dobrasse ou amarrotasse. Quando acabou o desenho, a amiba que havia desenhado saíu do papel e tornou-se numa amiba real. Não que não tivesse já realidade física quando estava no papel. Porém, era feita apenas de celulose. Quando saíu do papel passou a ser uma célula. É daí que vem a palavra célula, de celulose. O segundo ser unicelular do universo era, portanto, nos seus primórdios, feito de celulose. O primeiro era, obviamente, Amelínia. Pode-se perguntar de onde surgiu Amelínia. Mas também se pode não perguntar, por isso, vamos escolher a segunda. Amelínia gostou tanto da sua nova amiga que decidiu chamar-lhe Cimpória. Ficaram logo muito amigas. Viam a novela sempre juntas no sofá-cama de Amelínia.

Amelínia não conseguia deixar de pensar como era surpreendente que o seu desenho se tivesse transformado num ser vivo real. Às vezes dava por ela a cogitar como seria se desenhasse outros seres vivos que lhe viessem à cabeça. Ou mesmo outros que não lhe viessem à cabeça. No entanto, era sempre incapaz de os desenhar, com medo de provocar descontinuidades irreversíveis na evolução natural das espécies. Um dia fartou-se de viver naquela ansiedade de não saber se era possível criar outros seres vivos. Foi à papelaria e comprou vários blocos A4 de papel cavalinho e um conjunto de lápis 2B. Amelínia gostava muito de lápis 2B porque eram muito macios. Começou então a desenhar vários vegetais. Desenhou uma couve roxa e uma bananeira mas não aconteceu nada. Amelínia não desistiu e, com todo o cuidado, repetiu os dois desenhos mas, desta feita, em folhas de papel separadas. Ficou deliciada quando viu a couve e a bananeira materializarem-se à sua frente, bem reais. A partir daí desenhou sempre cada ser vivo numa folha separada. Fazia, aliás, todo o sentido: um ser vivo, uma folha. Aproveitou, e comeu uma banana. Sabia mesmo aquilo que ela pensava.

Maravilhada com o sucesso da couve e da bananeira, decidiu ir mais longe. Desenhou um ornitorrinco. Ficou perfeito. Contudo, nada aconteceu. Mesmo apesar de ter sido desenhado numa folha separada. O ornitorrinco permanecia no papel. Impávido. Imóvel. Um silêncio sepulcral. Passado um pouco ouviu-se uma voz grave e calma vinda de todos os lados e de parte nenhuma:

- Este animal é ridículo. Parece um mamífero, mas ao mesmo tempo parece um pato. E esses ovos no desenho, são dele? Isto está um pouco confuso. Tenta outra vez.

Amelínia rapidamente percebeu que tinha que suplementar os seus desenhos com algumas instruções sobre o comportamento do animal que queria criar. Fazia sentido. Era difícil criar um animal inteiro apenas a partir de uma imagem. Ficava muita ambiguidade por resolver. De facto, a aparência exterior do ornitorrinco por si só não dizia o suficiente sobre ele. Para o criar, era preciso facultar informação adicional. Por isso, Amelínia passou a escrever anotações na parte de trás do desenho. No caso do ornitorrinco, escreveu que ele punha ovos mas que amamentava as suas crias. Podia também dizer coisas sobre a personalidade do animal que queria criar. Neste caso, escreveu brincalhão. Era interessante como não era importante a linguagem em que essas anotações eram escritas. De facto, Amelínia podia mesmo escrever numa linguagem acabada de inventar só para aquele desenho, porque havia uma entidade algures que saberia exactamente o que ela queria dizer e criava o animal de acordo com as características descritas no verso da folha de papel. Amelínia não deixava de ficar fascinada com a fidelidade dos animais criados à sua ideia original. Eram exactamente como ela os queria ter criado, mesmo que por vezes a sua descrição no verso fosse um pouco vaga.

Durante anos, Amelínia dedicou-se a criar animais e vegetais dos mais variados que conseguia imaginar. Adorava aquilo. Tinha encontrado uma forma deliciosa de exprimir a sua criatividade. E ela tinha uma imaginação por demais fértil. Só assim se explicava que tivesse criado o peixe-bolha, o aye-aye ou mesmo o axolote. A situação começou a complicar quando Amelínia decidiu criar um animal especificando no verso que esse animal deveria ser capaz de criar outros animais através de desenhos. A partir daí, tudo descambou. Surgiu uma série de animais mal intencionados, que criavam animais ridículos por puro prazer. Eram maldosos. Começaram a ser criados animais de todas as formas e feitios, sem qualquer tipo de restrição. Havia um que era um balão de borracha que se enchia sozinho e que depois se esvaziava a uma velocidade alucinante em zig-zags pelo ar e se espetava contra o animal que estivesse mais perto. Depois, ria-se que nem um perdido, como uma hiena. Muito irritante. Mas não era apenas pura maldade. Eram interesseiros. Criaram um animal que era um tapete persa e que servia apenas de meio de transporte a quem lhe desse um passou-bem. Ao fim do dia, ficava deitado no chão da sala. Quando se fartavam dele, vendiam-no num mercado qualquer a preços alucinantes.

Apareciam animais tão estapafúrdios que era óbvio não poderem ser o resultado de qualquer evolução. Isso preocupou Amelínia que sabia que a única teoria que explicava decentemente a origem das espécies era a que dizia que eles tinham evoluído. Então Amelínia decidiu criar um animal novo a que chamou Papadão. Era muito parecido com um papa-formigas, mas tinha a particularidade de aspirar, ao invés de formigas, apenas animais que nitidamente não pudessem ter surgido por evolução natural. Esses, e também todos os animais mal intencionados ou interesseiros que criassem ou pudessem algum dia criar, através de desenhos, outros seres vivos que não pudessem ter surgido por evolução natural. Tinha a particularidade adicional de, assim que tivesse eliminado todos esses animais, se aspiraria a ele próprio. Amelínia criou milhares de exemplares desse tal Papadão. Eram muito castiços. Tinham um sentido de humor muito particular. E apreciavam o jogo da sueca. Tudo isso tinha sido especificado por Amelínia no verso do desenho. Excepto o interesse pela sueca. Amelínia não apreciava jogos de cartas.

Todos os Papadões executaram diligentemente a tarefa que lhes tinha sido atribuída e no final aspiraram-se a si próprios. Isso deixou Amelínia radiante. O seu plano tinha funcionado na perfeição. Actualmente existe toda uma variedade de espécies animais e vegetais essencialmente devido ao engenho e à criatividade de Amelínia. É muito fácil então perceber de onde vem tanta variedade. Para além disso, felizmente, devido à cultura científica e à luta e preserverança de Amelínia, a teoria da evolução das espécies mantém-se, hoje em dia, como a teoria mais simples que explica a existência de toda a actual variedade genética. Graças a Amelínia, o mundo permaneceu coerente.

No fim da resposta de Parêntida, Xambélia dormia já profundamente. Ou talvez estivesse a fingir. Mas Parêntida achou que ela estava a dormir e por isso foi-se embora. Encostou a porta do quarto e foi ver televisão. Ouviu um barulho vindo do quarto da filha e tirou imediatamente o som à televisão. Pareceu-lhe claramente ouvir o distinto barulho de um lápis 2B a passar sobre papel cavalinho e depois um ladrar normal seguido de um meio abafado. Seria provavelmente do sono. Era já muito tarde. Decidiu apagar a televisão e ir dormir. Na cama estava um leão marinho a roçar-se nos lençóis. Desentalou a sua metade da cama e deitou-se com cuidado para não o acordar. Depois, adormeceu.

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