Atlantis e a salinização dos mares

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Tem uma filha. Chama-se Xambélia. A filha, claro, porque a mãe já disse que se chamava Parêntida. Xambélia estava na idade das mil perguntas. Quase todas as suas frases acabavam com a palavra porquê. E quase nenhuma tinha mais do que uma palavra; apenas uma ou outra. Parêntida sabia como era importante responder a essas perguntas mais longas da sua filha.

Eram tenras horas da manhã e cheirava a alecrim porque algumas ervilhas tinham estado a fumar marijuana durante a noite. Como em todas as manhãs em que cheirava a alecrim, e também em todas em que não cheirava, Xambélia sentiu chegar-lhe ao seu cérebro de ervilha uma dessas suas perguntas com mais de uma palavra. Virou-se para a sua mãe, acabada de chegar ao quarto por um motivo qualquer que hoje em dia já não se sabe qual foi, e disse

- Parêntida! Por que é o mar salgado?

Xambélia tinha a particularidade de tratar a sua mãe pelo seu nome próprio em vez de usar a palavra mãe. Por um lado, tinha muita dificuldade em produzir o som nasalado necessário para pronunciar a palavra mãe correctamente. Por outro, e acima de tudo, havia razões intrínsecas profundas para o fazer. Não era para ser chique ou porque tivesse a mania. Era apenas porque, se dissesse Parêntida, a mãe reagiria mais depressa por não saber quem a estava a chamar. Qualquer filha chama a sua mãe por mãe mas Xambélia sabia que, se o fizesse, a mãe saberia exactamente quem a estava a chamar e levaria muito mais tempo a responder.

Poder-se-ia talvez supôr que Parêntida reconheceria a voz da filha e a estratégia de Xambélia não resultaria. Porém, era precisamente com o facto de a mãe conhecer tão bem a sua voz que Xambélia jogava, fazendo uma voz diferente, umas vezes esganiçada, outras simplesmente ridícula, de cada vez que queria chamar a mãe. A verdade, é que esta técnica funcionava na perfeição, já que depois de a mãe se virar instintivamente na direcção de Xambélia ao ouvir o chamar estridente de um desconhecido, tornava-se difícil fingir que não tinha dado conta. Parêntida não queria ferir os sentimentos da sua filha.

Parêntida tinha já experimentado a técnica de nunca olhar quando ouvia um chamamento ridículo do seu nome. No entanto, desistiu dessa técnica no dia em que foi atropelada por uma betoneira apesar de uma amiga ter chamado histérica o seu nome por dezasete vezes. Aliás, Xambélia estava lá e um dos seus chamamentos preferidos da mãe era precisamente uma imitação perfeita dos gritos da amiga. Xambélia teve a sorte de não ser atropelada porque atravessou primeiro sozinha já que a mãe estava distraída a ver uns sapatos numa montra e disse a Xambélia para ir atravessando:

- Toma atenção a essa betoneira, que vem lá lançada -- disse à filha num tom carinhoso.

Esse atropelamento foi um momento baixo na vida de Parêntida. A betoneira ia certamente fazer serviço importante e atrasou-se. Parêntida detestava deixar outras ervilhas à espera. E deu certamente uma trabalheira ao neuro-cirurgião de serviço nessa noite, que muito provavelmente tinha família à espera em casa. Não que ele pudesse sair antes caso não tivesse havido o acidente, já que estava de serviço, mas podia às vezes querer ver alguma coisa interessante na internet no computador lá da urgência. Ou mesmo uma que não fosse interessante.

Desta vez, porém, Parêntida estava até bastante contente por ter caído na armadilha de Xambélia. Responder a esta pergunta de Xambélia não só fazia parte dos seus importantes deveres de mãe, como era algo que lhe dava um imenso prazer. E era, aliás como quase todas as perguntas da filha, uma de resposta fácil. Na sua mente ecoou novamente a pergunta da filha:

- Por que é o mar salgado?

Parêntida ponderou um pouco sobre se deveria deixar o tacho ao lume enquanto respondia à filha. Optou por deixar. Depois, começou:

Era uma vez uma ervilha com Incontinência Perspírica Crónica (IPC). Chamava-se Atlantis e não fazia copos de cristal. Um dia, puseram essa ervilha num oceano qualquer. Era, como todos os oceanos de então, de água doce. Atlantis, com o medo de se afogar, começou a suar incontrolavelmente. Ali, nas suas imediações, toda a água salgou. As ervilhas que estavam por perto apreciaram essencialmente duas coisas: (i) era muito mais fácil boiar na água em redor de Atlantis; (ii) se a água em redor de Atlantis ficava salgada, podiam então criar algo a que chamariam, por exemplo, salinas, onde se poderia retirar o sal à água e produzir não só sal, o que daria imenso jeito para dar algum sabor às alfaces, como até mesmo água doce, que era óptima para beber. O facto de já existir água doce em abundância nos oceanos não lhes pareceu relevante.

Dado esse conjunto fascinante de vantagens, um grupo de ervilhas auto-denominadas As Verdes, que se preocupava em tornar o mundo um lugar melhor para todos os vegetais, decidiu fazer uma petição na internet com o intuito de se proceder à salinização de toda a água dos mares. Conseguiram milhares de assinaturas, mas não foi uma luta fácil. Primeiro, porque as petições na internet não têm qualquer valor jurídico mas, principalmente, porque a água doce não só era potável como servia para a cultura de vegetais e era difícil convencer o parlamento da República Inomesa a autorizar uma medida que poderia trazer tantas alterações à vida das ervilhas. A líder d'As Verdes, Rebaldas, sabia que tinha uma tarefa desafiante pela frente. Tentou convencer o parlamento de que, se se salinizassem todas as águas, seria altamente benéfica para a economia do país a criação da nova indústria de dessalinização absolutamente necessária para a existência de água potável. Iria ser criado um sem número de novos postos de trabalho. Mas Rebaldas guardou o aliciante mais poderoso para o final: passaria a ser muito mais fácil boiar quando se tomasse banho na praia. O parlamento que estava indeciso, ficou imediatamente convencido. O mundo ficaria um sítio muito mais seguro para as suas crianças nas férias de veraneio. A ideia passou e foi posto em marcha o megalómano Plano Mundial de Salinização (PMS) que tinha por único e nada modesto objectivo a salinização de todas as grandes massas de água.

Todos os dias levavam Atlantis para um local diferente do mundo e diziam-lhe que vinha lá o tubarão. Atlantis, que era daquelas ervilhas que jogava invariavelmente pelo seguro, acreditava sempre que vinha lá de facto o dito tubarão e a adrenalina libertada despoletava a sua incontrolável necessidade de suar aos litros. Salgado aquele lugar, passavam para outro. Quase sempre aquele que estivesse mais longe. As Verdes adoravam viagens de barco. Eram pagas com o dinheiro dos contribuintes. A actividade de Atlantis tornou-se tão importante que chegaram a dar o seu nome a um oceano, em sua homenagem. Toda esta azáfama era óptima, claro, para Atlantis que ficava a conhecer todos os cantos do mundo. E, quando a tentavam afogar para salgar as partes mais profundas do oceano, via uns quantos corais raros lá no fundo. Ao fim de algumas décadas praticamente todas as águas do mundo estavam salgadas. Todas, com excepção dos rios. O que se passava com os rios era que, como as águas estavam sempre a correr, o sal acabava por ser todo levado até ao mar mais próximo e os rios ficavam sempre de água doce. As Verdes eram um grupo de ervilhas muito perseverantes no que tocava a proteger o ambiente. Por isso não iriam desistir facilmente de salgar todos os rios também.

Já depois de todos os mares e oceanos salgados, dedicaram várias décadas a fazer experiências usando Atlantis para salgar um rio em particular, o Xaniledes. Porém, o sal, teimoso, descia sempre para o mar. Experimentaram variar sistematicamente quase todas as variáveis da experiência -- Atlantis de cabeça para baixo, Atlantis com uma touquinha cor-de-rosa ridícula, Atlantis sem dentes, Atlantis empanturrada de Pastéis de Tentúgal a dizer a palavra farfalhudo -- mas nada parecia resultar. Ao fim de 40 anos desistiram. Nessa altura deram conta que todos os peixes do mar onde desaguava o Xaniledes tinham morrido. Decidiram chamar-lhe Mar Morto. Depois passaram os 20 anos seguintes a tentar culpabilizar uma indústria de calçado da região pelo desastre ecológico. Sem sucesso. As indústrias poderosas têm sempre os melhores advogados. Alegaram que não era usado sal no seu fabrico de sapatos tradicionais.

O Mar Morto tornou-se numa atracção mundial e o fluxo turístico de ervilhas, que vinham de terras longínquas para ver de perto um mar onde não havia qualquer tipo de vida, fez florescer a indústria de sapatos da região. Mais do que sapatos para uso corrente, a indústria produz agora sapatos decorativos, comprados como recordação da região pelos turistas. Os famosos sapatos, os chamados Chaliques, têm pintados peixes virados de barriga para cima, a boiar, lembrando o triste evento numa exortação ao princípio fundamental de que nos devemos preocupar com a natureza e, em particular, com os peixes.

Parêntida terminou a história com um sorriso embevecido nos lábios.

- Percebes agora, Xambélia, por que é salgado o mar? -- perguntou à filha.

De Xambélia apenas um respirar mais forte. Nas horas tenras da manhã, Parêntida ajeitou-lhe os cobertores, apagou a luz e encostou a porta do quarto da filha. Sentiu que Xambélia tinha muita sorte em ter uma mãe tão conhecedora do mundo. "É quando elas dormem que compreendemos verdadeiramente como as crianças são uma benção", pensou. Depois, foi finalmente começar o cigarro que tinha enrolado havia uma hora atrás. Enebriada pelo fumo da marijuana, acabou por se esquecer do tacho ao lume. Tinha apenas água, o tacho. Era para cozer massa mais tarde. A água foi evaporando e o tacho acabou por ficar vazio ao lume. Ficou assim duas horas e meia. Quando Parêntida acordou, já de manhã, teve que colocar novamente água no tacho para cozer a massa. Parêntida detestava quando tinha que repetir a mesma coisa duas vezes. Mas teve que o fazer. Era isso ou não comer a massa. E aquela massa era uma perdição.

1 comment:

  1. Tens uma piadas muito giras!!! Até que ponto Parêntida fuma sózinha?? lol

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