O legado de Porquina

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Tem umas meias amarelas. Porquina acordou cheia de dores no corpo. Tinha uma gripe. Ao segundo dia de mal estar sentiu-se tão mal que foi ao médico. O médico disse-lhe que era gripe e que ela não devia abusar do sistema nacional de saúde com mariquices. Porquina voltou para casa. Ao fim de dois dias estava a sentir-se tão mal que voltou ao médico. Era o mesmo médico. Disse-lhe que era um vírus de gripe muito raro. A gripe do grão-de-bico. Disse-lhe que ela devia ter ido lá mais cedo porque aquele tipo de gripe é melhor tratar-se aquando dos primeiros sintomas. No dia seguinte Porquina morreu.

Ao fim de alguns dias, uma outra ervilha ficou com febre. Foi ao médico. Chamava-se Inácia. A ervilha. O médico disse que precisava de lhe fazer um monte de testes. Disse-lhe que fez muito bem em vir no início da doença porque podia-se atacar o problema desde cedo. Inácia ficou internada para o dia seguinte. Meteram-lhe tubos em tudo o que é sítio. Era uma boa constipação. Foi para casa igual ao que vinha. Talvez com mais dores. As camas eram duras. Pelo menos a dela.

Duas semanas exactas depois da morte de Porquina, morreram mais 31 ervilhas. Foi nesse dia que surgiu a expressão "está aqui um 31". Ainda é usada nos nossos dias. A autópsia das 31 ervilhas revelou que 29 deles tinham morrido de gripe do grão-de-bico. Das outras duas, uma tinha sido por falta de água e a segunda por lesões sofridas durante a própria autópsia. Juntamente com Porquina, o total de mortes por gripe do grão-de-bico ia já em 30. A Organização Mundial da Saúde das Ervilhas (OMSE) elevou o grau de alerta a nível mundial para 5. Ninguém sabia o que isso significava exactamente. Mas era mau.

Ao fim de algumas semanas, todas as ervilhas do mundo usavam uma máscara. Grande parte delas já não viajava para fora do seu país e restringia as suas deslocações a um mínimo. A OMSE forçou as pessoas a não saírem de casa durante vários dias. As escolas fecharam, as empresas pararam. Apenas os serviços básicos ficaram em funcionamento. As ervilhas começaram a ficar entediadas. Nem televisão podiam ver, já que as pessoas que fazem a televisão funcionar também ficavam em casa. A internet fechou. Os níveis de tédio começaram a roçar limites inimagináveis. De repente, e ao mesmo tempo em todas as casas, as ervilhas adormeceram. Durante dois anos. Quando acordaram o mundo era perfeito.

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