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Porquina na espuma do arrependimento

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Porquina acreditava na teoria das Bombocas e Ranholas de Alipas. E acreditava com muita força. Mais ou menos a mesma força necessária para levantar um caixote de fruta. Mas dos pesados, não é um caixote de uvas, por exemplo. Porquina tinha a certeza de que era uma ranhola já que a sua vida corria extraordinariamente mal em todos os domínios. Por oposição, a vida de Lustrosa, principalmente desde que tinha criado a sua maravilhosa Teoria do Casaco, corria às mil maravilhas. Lustrosa era aquilo a que se podia chamar um poço de sucesso. Podia, e chamava-se. Isso incomodava muito Porquina. A mera existência de Lustrosa irritava Porquina ao ponto de espumar pela boca.

Num dia de frustração exacerbada, Porquina decidiu matar Lustrosa. Logo de seguida arrependeu-se. Mas, logo de seguida, novamente, voltou a decidir matar Lustrosa. Preferia viver o resto da vida com o sentimento de culpa do que com aquela frustração sem fim. Saíu de casa pela fresca e foi directa a uma loja de armas. Ia comprar uma pistola de 9mm. Viu-a na montra. Era novinha em folha e reluzia. Ao olhá-la, Porquina esboçou um sorriso de ternura. A funcionária explicou-lhe que, dada a natureza do produto em questão, era necessário preencher um formulário especial. Passou-lhe o formulário para a mão. Consistia numa folha quase toda em branco. Numa ínfima porção do espaço da folha podia ler-se a pergunta:
"Planeia cometer algum crime ainda hoje? (S/N)"

Porquina não precisou de pensar muito sobre a resposta. Ela queria matar Lustrosa e matar era um crime. A resposta era obviamente Sim. Escreveu a sua resposta e devolveu o formulário à funcionária. A funcionária explicou-lhe que Sim não era uma resposta permitida. Apenas podia escrever S ou N. Porquina corrigiu, já num novo formulário. A funcionária lamentou e disse-lhe que tinha que ser a tinta preta. Porquina voltou a preencher um novo formulário já com a tinta correcta e perguntou-lhe por que não a avisou logo de ambos os erros no primeiro formulário.

- Ó menina, uma coisa de cada vez. Uma coisa de cada vez. Quem tudo quer, tudo perde -- respondeu a funcionária com um ar muito profissional e imperscrutável.

Porquina aceitou o seu argumento. Realmente, não é boa política fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Podemos enganar-nos. Porém, ficou surpreendida com aquela coincidência extraordinária. Logo no dia em que ela decide matar Lustrosa, alguém lhe pergunta se ela planeia praticar um crime nesse dia. Por outro lado, ficou algo preocupada. Será que a funcionária sabia do seu plano secreto?

A funcionária recebeu o novo formulário e viu o S preto da resposta. Percebeu que Porquina ia cometer um crime naquele dia e ficou preocupada. Olhou para Porquina e fez aquela cara de quem finge não pestanejar mas pestaneja. Porquina achou estranho que ela precisasse de fingir não estar a pestanejar. Não havia mal nenhum em pestanejar. Era um gesto normal e todas as ervilhas pestanejavam. Sempre esta hipocrisia de não se assumir como se é. Porquina confirmou mais uma vez que as ervilhas do seu tempo tinham medo de ser elas próprias, se preocupavam demasiado com a opinião dos outros e evitavam todo o tipo de confrontações. Porquina abanou a cabeça interiormente.

Feita a compra, saíu da loja. Estava contente porque agora a sua vida tinha um propósito. Também estava contente por esse propósito ser eliminar uma das grandes fontes de frustração da sua vida. Ainda viu a funcionária, do outro lado da vitrine, por entre carabinas e espingardas de canos serrados, com um ar extremamente preocupado a falar ao telefone e a segui-la com o olhar. Porquina achou que talvez a funcionária estivesse a telefonar à namorada que lhe estaria a dizer que não gostava do hálito dela. Isso explicaria o ar preocupado. E a funcionária de facto não tinha grande hálito. Tudo batia certo.

Apanhou o autocarro. Lá dentro, ao pensar na missão que tinha à frente, começou a ficar nervosa. Todas as pessoas olhavam para ela com reprovação, com desprezo, com desdém. Porquina tinha a sensação de que todos em conjunto se levantavam, lhe apontavam o dedo, e em uníssono gritavam "Assassina! Assassina! Assassina!". Porquina sabia que era uma boa ervilha, que a sua missão era apenas algo que ela tinha que fazer pelo bem comum, pelo bem estar emocional de todas as Ranholas do mundo. Alguém precisava de as libertar daquele fantasma de Lustrosa sempre a pairar sobre as suas cabeças de ervilha. Quando restabelecia a confiança no propósito da missão, também as ervilhas em redor lhe pareciam mais calmas, serenas e menos incriminadoras.

Chegada a altura certa, desceu do autocarro e seguiu na direcção da casa de Lustrosa. Morava numa zona de vivendas muito selecta. As vivendas serem tão espectaculares, e terem aqueles jardins todos tão bonitos, eram outro factor de irritação para Porquina. Olhou-as por momentos. Começou a espumar da boca. Tirou um lenço do bolso e limpou-se. Prosseguiu o seu caminho. A sua irritação avolumava-se, mas ao mesmo tempo também a sua compaixão pelo próximo sobressaía. E Lustrosa estava claramente mais próxima. Porquina chegou às traseiras da vivenda de Lustrosa. Abriu a porta do jardim e encostou-se a ela, já do lado dentro. Reflectiu sobre o que estava prestes a fazer. Hesitou. Ficou ali horas e horas a debater consigo própria o valor da vida das ervilhas, a fragilidade da vida, a razoabilidade do direito a uma ervilha tirar a vida a outra, abordou a noção de alma, se existiria ou não, se teria pintas roxas ou amarelas. Naquelas horas esclareceu várias das suas dúvidas sobre metafísica e existência, mas não esclareceu a mais importante: se iria usar a sua arma ou não naquele dia. Nisto, um barulho, era a porta da frente, Lustrosa tinha entrado em casa. Era já noite e Lustrosa acendeu a luz da sala. Porquina viu a silhueta de Lustrosa perfeita na janela. Viu-a tirar o seu lindo casaco e pendurá-lo num cabide de pé.

Porquina estava muito nervosa, o suor escorria-lhe pela testa, pela face. Com as mãos a tremer, tirou a pistola do bolso e tentou carregá-la. O carregador caíu-lhe ao chão. Começou a tremer mais. Pensou novamente no valor da vida, em como sentia que não tinha o direito a fazer mal a Lustrosa. Pelo menos, não daquela forma tão drástica. Carregou a arma. Empunhou-a. Apontou-a à janela. A silhueta de Lustrosa perfeita. Porquina podia imaginar-lhe todos os contornos absolutamente perfeitos, as linhas esbeltas, o casaco lindo agora já pendurado. Começou a espumar da boca. Tirou o lenço, limpou-se. Voltou a apontar a arma. As mãos tremiam-lhe, tremia-lhe já o corpo todo, Porquina mal se conseguia equilibrar.

Mais uma vez hesitou. Lembrou-se do dia em que Lustrosa a tinha convidado para jantar, ali naquela mesma casa, de como a tinha tratado bem, de como tinham tido um serão tão agradável, de como Lustrosa lhe tinha oferecido um tiramisu espectacular. Desta vez, ao pensar em Lustrosa, não espumou da boca. As mãos pararam de tremer. Os seus braços baixaram. Sentiu-se aliviada. Todo o peso da culpa tinha ido embora. Porquina percebeu que não conseguia nem queria matar Lustrosa. Teve vergonha de si própria por ter pensado todas aquelas coisas horríveis, por se ter deixado fazer refém da inveja. Decidiu que se queria ser mais feliz teria que lutar por tornar a sua vida melhor e contentar-se com ter tentado o seu melhor em vez de simplesmente destruir quem fosse melhor.

Porquina voltou-se, abriu a porta do jardim e saíu. Nesse preciso instante, chegaram seis viaturas da polícia que a encurralaram contra a parede das traseiras. Porquina percebeu que eram da polícia porque tinham sirenes às cores e diziam Polícia.

- Ponha a sua arma no chão! Já! -- gritou um dos agentes num tom militar, em plenos pulmões.

Porquina obedeceu. Três agentes correram na sua direcção, saltaram-lhe para cima e deitaram-na ao chão. À custa de farta violência física, mesmo sem que houvesse qualquer resistência por parte de Porquina, algemaram-na e meteram-na dentro de uma das viaturas. Foi julgada pelos seus actos e foi condenada a prisão perpétua por homícidio. Morreu na prisão. Foi de gripe do grão-de-bico. Logo ela que nem gostava de grão-de-bico.

Porquina e o Índice de Covas Corporais

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Aliás, chamava-se. Já morreu. Foi vítima da gripe do grão-de-bico. Porquina teve sempre uma vida complicada. Como todas as outras ervilhas, aos seis anos entrou para a escola. Já era uma menina grande. Pelo menos, foi o que a mãe lhe disse quando a deixou sozinha e em lágrimas à porta da escola.

Ao chegar, viu um grupo de ervilhas da idade dela. Pareciam simpáticas e Porquina, educada, disse-lhes olá. Precisava mesmo de encontrar bons amigos para ultrapassar aquele trauma de entrar para a escola. Uma delas apontou-lhe o dedo e começou a gritar "Esburacada! Esburacada!". Porquina sabia que o seu Índice de Covas Corporais* (ICC) estava acima do limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde das Ervilhas (OMSE). E não convivia particularmente bem com esse facto. Mas era escusado apontarem-lhe assim o dedo. Ela sabia que isso se chamava discriminação e que isso era algo proibido por lei. Virou-se para a ervilha que lhe apontou o dedo e disse que se ele não gostava, havia quem gostasse. Depois disso todas as outras 11 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Esburacada! Esburacada!".

Porquina afastou-se do grupo e foi ter com um outro grupo de ervilhas. Todas elas pareciam ter um ICC muito superior ao seu. Mas isso não a incomodava. Fazia sentir-se bem consigo mesma, até. Mesmo sabendo que uma ervilha não se media pelo seu número de covas. Algumas raízes de conversa depois apareceu uma outra ervilha que disse olá. Era muito clarinha. De um verde celestial. Uma delas apontou-lhe o dedo e gritou "Branquelas! Branquelas!". Ela respondeu que era branquelas e que tinha muito orgulho em sê-lo. Que ser branquelas não era defeito nenhum e que, mesmo de diferentes variedades, por dentro, as ervilhas eram todas iguais. Depois disso todas as outras 5 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Branquelas! Branquelas!". A ervilha foi-se embora com ar corajoso. Mais ao longe, desatou a chorar.

Porquina deixou de se sentir bem naquele grupo. Saíu do grupo e foi ter com a ervilha que estava a chorar. Sentaram-se ao lado uma da outra num banco da escola. Era frio o banco. Ficaram a olhar o infinito por minutos a partilhar o silêncio cúmplice. Ainda de olhos molhados, a amiga olhou Porquina.

- A tua roupa é ridícula -- disse a amiga antes de se levantar e se afastar.

Porquina viu-a ir-se embora e voltou a olhar o infinito. A sineta da escola tocou. Levantou-se e foi para a sua primeira aula.


* O Índice de Covas Corporais de uma ervilha é a razão entre o número de covas e a superfície total da ervilha ao quadrado. É utlizado clinicamente para medir quão proporcional é uma ervilha. Quando muito acima dos valores médios, algumas ervilhas pagam fortunas por intervenções cirúrgicas designadas por covosucções em que grande parte das covas lhes é retirada.

O legado de Porquina

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Tem umas meias amarelas. Porquina acordou cheia de dores no corpo. Tinha uma gripe. Ao segundo dia de mal estar sentiu-se tão mal que foi ao médico. O médico disse-lhe que era gripe e que ela não devia abusar do sistema nacional de saúde com mariquices. Porquina voltou para casa. Ao fim de dois dias estava a sentir-se tão mal que voltou ao médico. Era o mesmo médico. Disse-lhe que era um vírus de gripe muito raro. A gripe do grão-de-bico. Disse-lhe que ela devia ter ido lá mais cedo porque aquele tipo de gripe é melhor tratar-se aquando dos primeiros sintomas. No dia seguinte Porquina morreu.

Ao fim de alguns dias, uma outra ervilha ficou com febre. Foi ao médico. Chamava-se Inácia. A ervilha. O médico disse que precisava de lhe fazer um monte de testes. Disse-lhe que fez muito bem em vir no início da doença porque podia-se atacar o problema desde cedo. Inácia ficou internada para o dia seguinte. Meteram-lhe tubos em tudo o que é sítio. Era uma boa constipação. Foi para casa igual ao que vinha. Talvez com mais dores. As camas eram duras. Pelo menos a dela.

Duas semanas exactas depois da morte de Porquina, morreram mais 31 ervilhas. Foi nesse dia que surgiu a expressão "está aqui um 31". Ainda é usada nos nossos dias. A autópsia das 31 ervilhas revelou que 29 deles tinham morrido de gripe do grão-de-bico. Das outras duas, uma tinha sido por falta de água e a segunda por lesões sofridas durante a própria autópsia. Juntamente com Porquina, o total de mortes por gripe do grão-de-bico ia já em 30. A Organização Mundial da Saúde das Ervilhas (OMSE) elevou o grau de alerta a nível mundial para 5. Ninguém sabia o que isso significava exactamente. Mas era mau.

Ao fim de algumas semanas, todas as ervilhas do mundo usavam uma máscara. Grande parte delas já não viajava para fora do seu país e restringia as suas deslocações a um mínimo. A OMSE forçou as pessoas a não saírem de casa durante vários dias. As escolas fecharam, as empresas pararam. Apenas os serviços básicos ficaram em funcionamento. As ervilhas começaram a ficar entediadas. Nem televisão podiam ver, já que as pessoas que fazem a televisão funcionar também ficavam em casa. A internet fechou. Os níveis de tédio começaram a roçar limites inimagináveis. De repente, e ao mesmo tempo em todas as casas, as ervilhas adormeceram. Durante dois anos. Quando acordaram o mundo era perfeito.