Robirta dedica uma música de adoração a Champi

Robirta, sempre curiosa, sedenta de mundo, quis conhecer de perto a magia de Champi. Por isso, a partir de certo dia passou a ir regularmente às sumecas para partilhar com o resto das fiéis toda a alegria de ser Champista. A sua vida nunca mais foi a mesma. A descoberta da forma exacta como se tinha desenrolado a criação do Universo trouxe-lhe emoções tão fortes que escreveu Champi, uma música de adoração ao Grande Pinguim, gravada depois em conjunto com os Granizados. Os Granizados, um grupo de grãos-de-bico predominantemente a capella, haviam-se estreado com Robirta no surpreendente tema tribal, Batongo.

Não se identificando os Granizados com nenhuma das correntes pinguinísticas existentes, procuraram com as suas intervenções na música, trazer aos ouvintes a sua própria interpretação do Champismo, mas sem nunca fugir às palavras originais de Robirta. Contribuíram ainda de forma crucial para gravar as grasnadas a quatro vozes, tão típicas de pinguins imperadores cor-de-rosa fluorescentes, que se podem ouvir na conclusão do tema.

Aperceber-se de que tudo tinha agora uma explicação e, ainda para mais, logo uma tão simples, despoletou em Robirta um fascínio e um extâse simplesmente indescritíveis. Chegou mesmo a babar-se. Mas limpou-se com um lenço e ficou arrumado o assunto. Pelo menos dessa vez. Com algum receio, Robirta conjecturou que aquela baba estava relacionada com o nome do livro onde estavam escritas todas as verdades, o Baba do Mundo. Mas depois explicaram-lhe que se lia "B-A-Bá do Mundo". Ficou muito mais descansada. Espumar baba do mundo pela boca seria algo altamente desesperante. Sabia lá ela onde é que o mundo tinha andado com a boca.





CHAMPI
Robirta e os Granizados

A Grande Pinguinada é uma lição
De um grande Amor que me enche o coração
Bela e profunda dá-me a explicação
Quando não chego lá só com a razão

A Pinguinada dá-me a mão
Quando me vou abaixo e caio ao chão
Falo com Champi e vejo a solução
Mesmo que apenas mera ilusão

Com Champi já não pratico o mal
(pratico o mal)
Pois do juízo final
Talvez tortura com gelo acidental
(tortura, tortura)

Com Champi giram os carrosséis
(os carrosséis)
Cantamos, comemos pastéis
Temperados com as cinzas dos infiéis
(as cinzas dos infiéis)

Se às vezes pecar por distracção
(vou pecar, vou pecar)
Ele dá-me a redenção
Basta-me encher um balão
(vou encher um balão)

Com Champi deixo as vagens na Bacia
(há bacia, há bacia)
Ele faz a sua magia (há magia)
E o mundo pula de alegria
(há alegria)

A Grande Pinguinada é uma lição
De um grande Amor que me enche o coração
Bela e profunda dá-me a explicação
Quando não chego lá só com a razão

[Grasnadas de êxtase típicas
de pinguins imperadores
cor-de-rosa fluorescentes]

A Igreja Champista

Quase todas as ervilhas do mundo eram Champistas. Podiam discordar nalguns pormenores como, por exemplo, o processo exacto que levou à fecundação de Patchi e, por consequência, à génese do universo, mas na sua essência o mundo era unânime: o universo tinha começado por ser uma placa de gelo cheia de pinguins e, Champi, o Grande Pinguim, como pai solteiro, acabaria por ser o responsável, de uma forma ou de outra, por trazer ao mundo o resto do universo, num ovo que ele pensou ter gerado com Patchi, uma fêmea pinguim lindíssima, mas que afinal tinha sido simplesmente rejeitado por um pinguim chico-esperto. Resumidamente, era isto.

Não deixava de ser impressionante que, estando a ervilhandade sempre tão condenada à discórdia em quase todos os aspectos da vida em sociedade, surgisse em uníssono em matéria de criação do universo. A realidade, é que eram inúmeros os factos que apontavam para a verdade absoluta e apodítica das crenças advogadas pela Grande Pinguinada. Para começar, havia um livro com milhares de anos, chamado Baba do Mundo (pronunciado: B-A-Bá) onde toda a história da génese do universo era descrita ao mais ínfimo detalhe. As primeiras ervilhas a lerem o livro, acharam a história engraçada no campo da faca e do alguidar. Estavam, no entanto, convictas, apesar de isso não estar escrito em parte nenhuma do livro, de que se tratava de perfeita ficção e de que qualquer semelhança com a realidade seria pura coincidência. Para elas, era óbvio que o universo tinha sido regurgitado por um bisonte num momento de maior apetite. O problema foi quando se começaram a verificar todo um conjunto de profecias que estavam escritas nesse livro.

Por exemplo, no Baba do Mundo, estava preto no branco que uma ervilha de seu nome Pérfila iria entrar num restaurante no Vale da Alface às 12h56 e que iria acabar por ser expulsa por embirrar demasiado com a formatação da ementa. E isso aconteceu. Ao ínfimo detalhe. Esta e muitas outras. Quando confrontadas com essa precisão na previsão do futuro, às ervilhas não restou mais do que aceitar o Baba do Mundo como sendo a pura e integral verdade. Algumas ervilhas queixaram-se de que essas profecias mais detalhadas estavam todas invariavelmente escritas à mão, muitas vezes razuradas, numa parte mais recôndita do livro. Outras, afoitas, tentaram fazer notar o facto de que o livro tinha muitas páginas arrancadas, onde podiam ter sido escritas profecias que nunca se realizaram. Essas ervilhas não mantiveram tais ideias durante muito tempo. Principalmente porque foram todas queimadas.

As ervilhas que faziam demasiadas perguntas acerca do Baba do Mundo, chamadas de infiéis, eram usadas num ritual extremamente interessante chamado Roda, roda, carrossel. Este delicioso passatempo era, de entre os rituais de chacina, aquele que mais animava a assistência. Neste ritual, as ervilhas Champistas faziam uma fogueira e construíam um carrossel à volta dela. Depois, começavam a andar à roda em cima de girafas e de outro tipo de animais da savana, simbolizando o Equador e desta forma o limbo entre o Bem e o Mal, enquanto entoavam canções sobre o Amor Divino de Champi. A certa altura, eram despejadas umas quantas ervilhas infiéis na fogueira deixando toda a assistência ao rubro; não só podiam andar de carrossel, como ainda contemplavam carnificina. No final, eram distribuídas dúzias e mais dúzias de pastéis de nata, previamente polvilhados com as cinzas das infiéis, com que as ervilhas Champistas se deliciavam. Nestas actividades sociais, as ervilhas interiorizavam de forma estupenda que não valia a pena pôr em questão a veracidade do Baba do Mundo. E não puseram. E, assim, surgiu a Igreja Champista.

A Igreja Champista, era a expressão institucional da crença na Grande Pinguinada e, em particular, nos factos descritos no Baba do Mundo. Foram produzidos milhares e milhares de cópias do livro, ao ponto de esse se tornar o livro com mais impressões em todo o mundo. Estava em qualquer gaveta de mesinha de cabeceira de hotel. Por toda a parte, não há aldeia que não tenha um Iglu com uma escultura de um pinguim cor-de-rosa fluorescente no topo, com um ovo de ouro maciço sobre os pés, exaltando a dor e o espírito de sacrifício vividos por Champi durante o Inverno em que se formou o universo. Nesses Iglus a temperatura foi, durante séculos, exactamente a mesma que se pensa ter sido a temperatura do Inverno em que Champi viveu: -40ºC. Hoje em dia, para não contribuir para o aquecimento global, e também porque o número de fiéis tem vindo a descer, a temperatura é mantida nos +21ºC. Simbolicamente, a diferença entre -40 e 21 é precisamente 61, que foi o número de dias necessários para Patchi pôr o ovo de onde surgiria todo o universo. Nada era deixado ao acaso na Igreja Champista. As ervilhas reuniam-se nos Iglus pelo menos uma vez por semana e, no seu interior, entoavam cânticos de acasalamento de pinguim imperador, as chamadas grasnadas, com o intuito de chamar Champi e lhe comunicar os seus anseios e preocupações. Essas cerimónias eram designadas por sumecas. Havia sempre uma representante divina da Igreja de Champi a liderar as sumecas, a chamada Pósia. Durante a sumeca, a Pósia seguia um ritual de movimentos e palavras sábias que iam desde a simulação da cópula de Champi e Patchi, à própria teatralização do instante em que Patchi pôs o seu ovo. Todos os momentos relevantes desde o aparecimento de Genitália até ao momento da eclosão do univero de dentro do ovo de Champi estavam presentes nas sumecas.

As sumecas, porém, eram muito mais do que meras celebrações da criação do universo. Eram, acima de tudo, uma forma de as ervilhas se sentirem protegidas, amadas por Champi, e de terem uma luz que as guiasse na vida. As Champistas tinham razões fortes para praticar o Bem. Razões, aliás, bem mais fortes do que o mero facto de se sentirem mal por praticar maus actos e do que sentirem genuína compaixão pelas ervilhas a quem podiam fazer mal. Na realidade, as Champistas sabiam melhor do que ninguém que, no dia da sua morte, as suas almas seriam transportadas até ao Equador e, lá, Champi decidiria se elas iriam para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul. Champi era omnisciente, omnipresente e omnipotente, e iria julgar as suas acções no tão temido juízo final. Não havia maneira de lhe escapar. No Pólo Sul, aguardava-as uma vida contemplativa em que poderiam admirar Champi no seu habitat natural. Se mergulhassem um pouco nas águas em volta, poderiam encontrar as Amorosas, lulas colossais que se enrolam em torno das ervilhas, as abraçam plenas de afecto e as fazem sentir o puro Amor de Champi. Ser-lhes-ia também oferecida, como brinde, uma caneta de feltro especial com que podiam fazer desenhos no gelo. As ervilhas adoravam fazer desenhos no gelo.

Já no Pólo Norte, esperava-as o terror da tortura com gelo acidental. A tortura com gelo acidental era a pior tortura que alguma vez alguém podia ter inventado. Pior do que ouvir debates políticos, deixava a um canto os trabalhos forçados e as queimaduras com fogo por parte de homens muito fortes e vis usando ornamentos com picos. A tortura funcionava da seguinte forma. As ervilhas andavam pelo Pólo Norte a fazer a sua vida. Depois, por vezes, passavam perto delas foquinhas bebé a acartar sacos de cubos de gelo para levar a algum urso polar que queria uma bebida refrescante. (Era comum no Pólo Norte as focas bebé serem escravizadas pelos ursos polares e utilizadas nas actividades mais insignificantes.) Ora, qualquer ervilha que ali estivesse, mesmo uma ervilha que pelas suas más acções tivesse vindo parar ao Pólo Norte, iria sentir alguma compaixão pelas pobres foquinhas. Ainda para mais, elas eram extremamente fofinhas. No momento em que a compaixão estava no seu ponto máximo, uma das focas passava mais perto e deixava escorregar o saco de forma a que os cubos de gelo caíssem todos em cima da ervilha a ser torturada.

A queda do saco de gelo era totalmente propositada e tudo era feito com o único intuito de queimar com gelo a pobre ervilha. Porém, os movimentos da foquinha bebé eram tão bem forjados e feitos de forma tão subtil que nenhum observador poderia concluir objectivamente que tinha havido intenção de magoar. Nem mesmo a própria ervilha magoada. Agravava ainda a tudo isso, o facto de, assim que os cubos de gelo caíam todos, a foquinha bebé se desfazer em desculpas, fazendo a expressão típica de foquinha bebé, e começando a dizer que tudo lhe corria mal, que nunca conseguia fazer nada direito na vida, e que não era justo o patife do urso polar obrigar um animal tão indefeso a fazer trabalhos forçados. Nenhuma ervilha conseguia barafustar com a foquinha. E era isso que tornava tudo mais frustrante e revoltante nesta tortura, aquela necessidade imperiosa de explodir em todas as direcções de imediato castrada pelo medo de magoar alguém indefeso como uma foquinha bebé ternurenta. Principalmente porque a tortura se repetia vezes e vezes sem conta. Ainda assim, de cada vez que acontecia, mesmo que a milésima, era impossível ficar com a impressão de que tinha sido um acto propositado. Era esta a principal razão para não se querer ir parar ao Pólo Norte. Isso, e também, o facto de se ser esporadicamente torturada com a visão de morsas algo que, por si só, já era suficiente para afastar conscientemente qualquer pecado da vida. A somar a tudo isto, ao contrário do que se passava no Pólo Sul, não se recebia qualquer brinde; se apetecesse às ervilhas fazer um desenho no gelo, tinham que usar o próprio corpo e o gelo na pele chegava mesmo a aleijar.

A Igreja Champista sabia, no entanto, como era inato o pecado nas ervilhas. Por isso, tinha previsto mecanismos de absolvição. No final de cada sumeca, as ervilhas tinham sessões individuais com a Pósia do seu Iglu onde dissertavam sobre aquilo que elas pensavam ser os seus pecados da semana. A Pósia ouvia atentamente deliciada todas as atrocidades cometidas e, no final, passava-lhes a receita de absolvição, que não era mais do que um papel cujo único conteúdo era um número a tinta azul num tipo de letra muito apelativo. Quanto pior o pecado, maior o número na receita; o tipo de letra não era influenciado pela gravidade do pecado. Aquele número devia depois traduzir-se em igual número de actos de redenção. Um acto de redenção, também chamado trabalho de sopro, consistia em encher um balão e pendurá-lo à entrada do Iglu. Dizia-se que se o balão caísse, a ervilha não merecia absolvição; se o balão ficasse suspenso no ar, havia forte probabilidade de absolvição. Mas apenas se as ervilhas estivessem verdadeiramente arrependidas dos seus actos.

As primeiras ervilhas a praticarem os actos de redenção, compraram balões ao desbarato num supermercado e encheram-nos à boca. Verificaram envergonhadas que todos os balões que encheram, caíram. Foi então que descobriram que, se comprassem os seus balões, já cheios, numa banca de balões à porta do Iglu, eles ficavam, como que por magia, suspensos. Por isso, todas as ervilhas passaram a comprar os seus balões ali mesmo à saída da sumeca, a uma ervilha que parecia mesmo a Pósia com uma barba postiça e que utilizava um sistema especial de enchimento que envolvia uma bilha de Hélio. Tecnologia celestial e, por isso, cara. Cada balão custava cerca de 5 vagens, o preço de 10 cafés, e, por exemplo, o pecado de ter tido maus pensamentos envolvendo a vizinha do quinto esquerdo acarretava uma receita de absolvição de 10 balões, num total de 50 vagens. O pecado, literalmente, não compensava.

Era estranho que, se as ervilhas sabiam que iriam ter que pagar aqueles valores pelos pecados, os confessassem nas sessões individuais. Era muito mais fácil para elas, simplesmente não falar no assunto e poupar dinheiro para alimentar a sua família. Ainda para mais porque, para além do dinheiro gasto com os balões, as Champistas ofereciam também mensalmente 10% do seu salário à Igreja Champista para manter Champi feliz*. Porém, a Igreja Champista avisava que as ervilhas não deviam mentir acerca dos seus pecados, porque Champi estava em todo o lado e sabia exactamente o que elas andavam a fazer. Se elas não fossem absolvidas, iam para o Pólo Norte para o resto da vida. Aparentemente, isto era suficiente para manter uma sociedade inteira na linha. E manteve. Pelo menos, foi o que me disse uma amiga minha. E ela não é de mentir. Mentir é feio e faz crescer pelos na língua.

* A oferenda mensal das Champistas era dada sob a forma de vagens, deixadas na Bacia Cupular, uma bacia com uma grande cúpula à entrada do Iglu onde estava a Água Primordial, símbolo da fonte de vida. Não era seguramente coincidência que a água fosse simultaneamente a primeira substância a surgir do Vácuo Primordial, sob a forma de uma placa de gelo, e fosse ao mesmo tempo a fonte de todos os nutrientes necessários às ervilhas no seu dia-a-dia. Era tido como certo que era necessário fazer oferendas regulares na Bacia Cupular, caso contrário, Champi iria ficar irado e causaria cataclismos da pior espécie. E mesmo de outras espécies que, embora pudessem não ser a pior, fossem suficientemente más para meter medo.

A Grande Pinguinada


Há muitas teorias sobre o começo do universo. Esta é uma delas. Mas não é uma qualquer. É aquela em que quase todas as ervilhas do mundo acreditam. E, se tantas ervilhas acreditam nela e se já o fazem há vários milhares de anos, só pode ser mesmo verdade.


No início, não existia nada. Nem mesmo o verbo. Era um vazio, o chamado Vácuo Primordial. O Vácuo Primordial tinha a característica espantosa de não ter rigorosamente nada. A única coisa que tinha, por assim dizer, era existência. Só que a sua existência primava, ironicamente, pela não existência de mais nada. Podia-se dizer que o Vácuo Primordial era o expoente máximo do egoísmo. Mas como o universo nessa altura ainda era um lugar justo, os egoístas não podiam levar a melhor durante muito tempo. Assim, volvidos três minutos, apareceu uma placa de gelo que ficou ali assim a pairar no vazio. Logo a seguir, começaram a cair pinguins do céu. Céu é uma forma de expressão; vinham de cima. Quando caíam no gelo, ficavam a rebolar como se fossem ervilhas a fazer exercício no prado. Àquele conjunto da placa de gelo e dos pinguins, chamou-se mais tarde Genitália, pela razão óbvia de ter estado na génese do universo. Não se sabe exactamente como surgiu Genitália. Nem exactamente, nem mais ou menos. Não se sabe. Porém, não se fala disso porque isso não é importante. Afinal de contas, são apenas três minutos que não se compreendem.

Genitália era essencialmente feita de gelo e de pinguins. Todos pretos e brancos, como qualquer pinguim. Excepto um, que era cor-de-rosa fluorescente. Chamava-se Champi e era um pinguim imperador. Para além da cor pouco comum, Champi tinha ainda a particularidade de piscar como se fosse o cursor de um ecrã de computador. Ficava visível durante meio segundo, para depois não se ver durante outro meio segundo. Fazia um efeito engraçado quando andava porque parecia que desaparecia num sítio e aparecia noutro. Parecia e era exactamente isso que acontecia. Tirando o facto de ser cor-de-rosa fluorescente e de piscar, Champi era um pinguim em tudo igual aos outros. Era muito afável e comunicativo.

Como quase todos os pinguins imperadores, Champi queria acasalar e fazer pinguins. Quase todos porque havia também pinguins que queriam de facto copular mas que não estavam interessados em relações duradouras, muito menos em criar pinguins. Depois havia ainda outros que queriam criar pinguins, mas preferiam acasalar com pinguins do mesmo sexo e daí não era fácil surgirem novos pinguins. Mas como eles não sabiam, continuavam a tentar. Champi não sabia explicar a
razão para querer acasalar e fazer pinguins, mas era algo inato. Por isso, chegada a altura própria, passou longos dias a cortejar uma fêmea lindíssima chamada Patchi. Patchi não se interessava minimamente por ele. Por isso, um dia, Champi apanhou-a de surpresa durante o sono e resolveu o assunto. Passados 61 dias, Patchi pôs um ovo e, como todas as fêmeas imperador, passou-o ao progenitor macho, Champi, que teve que o guardar numa parte quentinha, por cima das suas patas. Entretanto criou-se um pedaço de mar alto, com peixes e orcas, à volta de Genitália. Patchi, que estava esfaimada e exausta, foi para lá encher-se de petiscos. Champi ficou ali a tomar conta do ovo. Passaram muitos meses e, de Patchi, nem sombra. Até porque não havia ainda sol. Naquele Inverno, o frio assolou Genitália como nunca tinha assolado antes. Principalmente porque nos Invernos anteriores ainda não havia Genitália. Champi resistiu corajoso ao frio polar durante vários meses. A vontade de trazer um pinguim ao mundo era tão forte que ele sabia que seria capaz de vencer qualquer cataclismo.

Certo dia, ainda Patchi passeava algures no mar alto, o ovo começou a tremer. Tremeu, tremeu, e rachou de um dos lados. Champi ficou ansioso. O seu filhote estava prestes a nascer. Champi não se conseguia conter de emoção. A casca quebrou completamente e Champi pode ver finalmente o resultado de todo o seu esforço. Para seu espanto, porém, ao invés de um pinguim bebé, lá dentro estava, sim, um universo. Champi ficou altamente decepcionado. Tinha andado todos aqueles meses, diligente, com o ovo para trás e para a frente, pensando que talvez até lhe saísse um pinguim a quem pudesse ensinar a jogar à bola, tinha superado grandes provas de coragem, de dedicação, e vai-lhe sair um universo? Era preciso azar. Champi esperava algo de fascinante e maravilhoso, não era um universo. E porquê logo a ele? Ele nem sabia o que podia fazer com aquilo.

Champi passou dois dias em rejeição. Dizia que o filho não era dele, que tinha sido algum pinguim que por pirraça lhe tinha trocado o ovo durante a noite. Ainda por cima, Patchi andava lá entretida no mar alto a enfardar peixe e não estava ali para ajudar nas decisões familiares importantes. Passado algum tempo, Champi concluiu que, qualquer interpretação que ele desse àquele estranho acontecimento, a realidade era incontornável: adoptado ou não, aquele universo era o seu filho e ele não podia rejeitar um filho. Champi decidiu chamar-lhe Afilósio. Não sabia bem quais eram os nomes típicos de universo, mas Afilósio pareceu-lhe fazer muito sentido. E começava pela letra A, o que alfabeticamente vinha antes de Ana, por isso ficaria nas carteiras da frente na escola e estaria sempre com muita atenção. Champi queria que Afilósio tivesse todo o sucesso do mundo. Até mesmo, todo o sucesso do universo, pensou com um sorriso de confiança.

Os primeiros dias de Afilósio foram terríveis. Chorava que se fartava. Era uma barulheira insuportável. Ao ponto de um dos pinguins na vizinhança comentar:

- Ainda bem que me safei da pestinha a tempo. Eu vi logo que um ovo que dizia Frágil e que trazia um lacinho de embrulho não podia ser boa coisa.

Champi não ouviu, e ainda bem. Champi foi um pai extremoso, sempre muito atento a cada preocupação do seu filho. Passado mais alguns dias chegou finalmente Patchi que, através de chamamentos muito peculiares, correspondidos de forma precisa por Champi, conseguiu logo encontrá-los. Quando viu o que tinha saído do seu lindo ovo, Patchi não quis acreditar na sua malfadada sorte. De imediato, disse que não iria aceitar aquela situação. Também disse que, independemente disso, tinha usado o tempo no mar alto para reflectir e que achava que a relação deles não tinha futuro e que passavam o tempo a discutir. Champi disse que eles não discutiam certamente, já que mal falavam por ela passar o tempo todo no mar alto a comer peixe. Patchi virou costas e desapareceu para sempre.

- Todos iguais... todos iguais... -- repetia volta e meia Patchi pelo caminho, cada vez mais distante, abanando a cabeça.

Champi estava então na difícil situação de pai solteiro. Ainda por cima, tinha a seu cargo um universo. Champi sabia que ia conseguir criar o seu rebento e que lhe ia dar todo o amor e carinho que um pai sabe dar a um filho. E foi precisamente isso que aconteceu. Ou algo parecido.

Nota: A Grande Pinguinada não é taxativa sobre a forma como se deu a concepção, existindo várias correntes. A mais proeminente, o Champismo Divino, diz que Champi se limitou a olhar para Patchi de forma tão ternurenta e tão pejada de Amor puro que Patchi foi fecundada por graça divina, de forma imaculada e que, apesar de sempre apregoar o contrário, tudo aquilo que Patchi sempre desejara era criar o seu próprio filho, e ainda mais se, em vez de um pinguim, por um acaso inesperado se tratasse de um universo. Segundo essa corrente, Patchi não abandonou Champi por falta de paciência para a vida familiar mas, pelo contrário, foi atacada por uma orca enquanto procurava alimento para o seu filho; essa orca malvada estraçalhou-a de forma brutal, apesar de ela ter lutado heroicamente pela vida.

A segunda corrente mais proeminente, o Champismo Terra-a-Terra, diz que Champi se limitou a violar Patchi durante a noite, que apesar de Patchi lhe estar sempre a fugir era exactamente isso que ela queria e que até fingiu estar a dormir para poder levar a melhor sem ter que dar o braço a torcer. Segundo esta segunda corrente, Patchi era uma promíscua sem vergonha que usava o seu corpo para seduzir pinguins macho e que depois os deixava pais solteiros. Também dizia que, depois de passar o ovo resultante deste esquema ao macho, Patchi roubava-o durante a noite para vender ao desbarato a orcas desconhecidas. Isso explicava que deixasse, em sua substituição, ovos com universos lá dentro. O efeito surpresa de sair um universo do ovo, deixava sempre os machos em grande azáfama e eles distraíam-se do problema principal que era terem-lhes roubado o seu filho.

Ubíquo e a mão de Lustrosa

Ubíquo era um grão-de-bico altamente filosófico e que punha em questão a cada instante o propósito e o valor da sua existência. Ubíquo tinha grande dificuldade em sentir que a vida era melhor do que a morte, em aceitar que havia actos absolutos de Bem e Mal. Foi isso que o fascinou em Ceroulas e que o levou a identificar-se tanto com ela. No entanto, rapidamente percebeu que a vida a dois com Ceroulas seria impossível. Não crendo que houvesse qualquer padrão no mundo, qualquer lei que se repetisse, qualquer constante, Ceroulas passava o tempo a ignorar toda a sua experiência passada e via sempre tudo como se fosse a primeira vez. Isso era interessante, como novidade, nos primeiros tempos da paixão. Talvez nos primeiros dois dias. Depois disso, Ubíquo começou a ter dificuldade em aceitar que ela lhe perguntasse constantemente o nome. Ele respondia sempre que o seu nome era Ubíquo.

- Ah, mas é que agora estavas debaixo de uma macieira. Podias chamar-te Ubíquo apenas quando não estavas debaixo de macieiras e queria ter a certeza -- explicou Ceroulas de uma dessas vezes.

Ceroulas era claramente uma inspiração filosófica para Ubíquo. Tanto assim era que no dia em que a conheceu criou imediatamente uma das suas músicas mais filosóficas, Universo Azul Carmim. Mas a vida prática com Ceroulas era demasiado complicada e, por isso, fugaz. Ubíquo, sempre muito genuíno e verdadeiro, explicou a Ceroulas que não conseguia mais viver assim e ela aceitou perfeitamente esse facto. Para ela, era apenas mais um acontecimento no Universo, nada do que era inesperado para os outros era inesperado para ela. Apenas a constância a surpreendia. O seu espanto era, sim, todos os dias, quando via que Ubíquo ainda estava com ela, não o facto de ele se ir embora. Não por se ter a si própria em má conta, simplesmente porque não esperava que qualquer coisa hoje ainda o fosse amanhã.

Passaram vários meses em que Ubíquo nunca encontrou qualquer inspiração para as suas músicas. Até que conheceu Lustrosa. Não chegou a falar com ela. Nem sabe se ela sequer sabe que ele existe. Apenas a contemplou a passar na rua, com o seu casaco hipnotizante. Ao fitá-la, os olhos de Ubíquo emanaram espirais de luz vermelha que ficaram reais a pairar no ar rodando à sua volta. Ficou absolutamente fascinado e quis levar Lustrosa para fora do mundo, para longe de tudo e viver paixão sem fim. No momento em que Lustrosa passou por ele, tudo ficou subitamente em câmara lenta. Lustrosa, a rua, tudo. Porém, Ubíquo sabia que as suas calças rotas, a sua filosofia existencialista e o seu desprezo completo pelo capital, pelo materialismo, nunca teriam lugar no universo de uma ervilha como Lustrosa. Ubíquo parou, virou-se e seguiu as suas curvas com o olhar à medida que ela se afastava. Viu-a ficar cada vez mais pequena, cada vez mais distante. À cadência dos passos de Lustrosa, Ubíquo sentiu um ritmo invadi-lo e ficar gradualmente mais forte. O seu sangue passou a circular nesse ritmo, preciso, o bater do coração marcando o mesmo exacto compasso. Ainda na rua, quase ao virar da esquina, sentiu uma melodia sair-lhe de dentro do peito e palavras involuntárias a sairem-lhe da boca

- A mão dela... a mão dela... -- repetia baixinho num ritmo antes nunca ouvido

e ao longo do caminho até casa, todos os tons da música que lhe chegavam não sabia bem de onde se concertavam num todo coerente, tomando aos poucos forma, consistência. Chegado a casa, gravou num só take o que viria a ser um dos seus grandes sucessos, A Mão Dela.





A MÃO DELA
Ubíquo

A mão dela é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

A mão dela é um poço e lá no fundo
Água limpa e cristalina
Que alimenta a colina,
O mundo

O barco parte, e eu
Vou navegar
No breu da noite, frio,
Vou acabar sem a mão dela

(A mão dela) é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

[Improviso em lamento]