Ubíquo e a mão de Lustrosa

Ubíquo era um grão-de-bico altamente filosófico e que punha em questão a cada instante o propósito e o valor da sua existência. Ubíquo tinha grande dificuldade em sentir que a vida era melhor do que a morte, em aceitar que havia actos absolutos de Bem e Mal. Foi isso que o fascinou em Ceroulas e que o levou a identificar-se tanto com ela. No entanto, rapidamente percebeu que a vida a dois com Ceroulas seria impossível. Não crendo que houvesse qualquer padrão no mundo, qualquer lei que se repetisse, qualquer constante, Ceroulas passava o tempo a ignorar toda a sua experiência passada e via sempre tudo como se fosse a primeira vez. Isso era interessante, como novidade, nos primeiros tempos da paixão. Talvez nos primeiros dois dias. Depois disso, Ubíquo começou a ter dificuldade em aceitar que ela lhe perguntasse constantemente o nome. Ele respondia sempre que o seu nome era Ubíquo.

- Ah, mas é que agora estavas debaixo de uma macieira. Podias chamar-te Ubíquo apenas quando não estavas debaixo de macieiras e queria ter a certeza -- explicou Ceroulas de uma dessas vezes.

Ceroulas era claramente uma inspiração filosófica para Ubíquo. Tanto assim era que no dia em que a conheceu criou imediatamente uma das suas músicas mais filosóficas, Universo Azul Carmim. Mas a vida prática com Ceroulas era demasiado complicada e, por isso, fugaz. Ubíquo, sempre muito genuíno e verdadeiro, explicou a Ceroulas que não conseguia mais viver assim e ela aceitou perfeitamente esse facto. Para ela, era apenas mais um acontecimento no Universo, nada do que era inesperado para os outros era inesperado para ela. Apenas a constância a surpreendia. O seu espanto era, sim, todos os dias, quando via que Ubíquo ainda estava com ela, não o facto de ele se ir embora. Não por se ter a si própria em má conta, simplesmente porque não esperava que qualquer coisa hoje ainda o fosse amanhã.

Passaram vários meses em que Ubíquo nunca encontrou qualquer inspiração para as suas músicas. Até que conheceu Lustrosa. Não chegou a falar com ela. Nem sabe se ela sequer sabe que ele existe. Apenas a contemplou a passar na rua, com o seu casaco hipnotizante. Ao fitá-la, os olhos de Ubíquo emanaram espirais de luz vermelha que ficaram reais a pairar no ar rodando à sua volta. Ficou absolutamente fascinado e quis levar Lustrosa para fora do mundo, para longe de tudo e viver paixão sem fim. No momento em que Lustrosa passou por ele, tudo ficou subitamente em câmara lenta. Lustrosa, a rua, tudo. Porém, Ubíquo sabia que as suas calças rotas, a sua filosofia existencialista e o seu desprezo completo pelo capital, pelo materialismo, nunca teriam lugar no universo de uma ervilha como Lustrosa. Ubíquo parou, virou-se e seguiu as suas curvas com o olhar à medida que ela se afastava. Viu-a ficar cada vez mais pequena, cada vez mais distante. À cadência dos passos de Lustrosa, Ubíquo sentiu um ritmo invadi-lo e ficar gradualmente mais forte. O seu sangue passou a circular nesse ritmo, preciso, o bater do coração marcando o mesmo exacto compasso. Ainda na rua, quase ao virar da esquina, sentiu uma melodia sair-lhe de dentro do peito e palavras involuntárias a sairem-lhe da boca

- A mão dela... a mão dela... -- repetia baixinho num ritmo antes nunca ouvido

e ao longo do caminho até casa, todos os tons da música que lhe chegavam não sabia bem de onde se concertavam num todo coerente, tomando aos poucos forma, consistência. Chegado a casa, gravou num só take o que viria a ser um dos seus grandes sucessos, A Mão Dela.





A MÃO DELA
Ubíquo

A mão dela é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

A mão dela é um poço e lá no fundo
Água limpa e cristalina
Que alimenta a colina,
O mundo

O barco parte, e eu
Vou navegar
No breu da noite, frio,
Vou acabar sem a mão dela

(A mão dela) é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

[Improviso em lamento]


Ubíquo remete-se ao Azul Carmim

Conheço uma ervilha. Ah, não, espera, é um grão-de-bico. Chama-se Ubíquo e, ao contrário do que o seu nome possa sugerir, não está em todo o lado. Ubíquo integra Os Granizados, um grupo a capella que, juntamente com Robirta, gravou Batongo, uma música algo peculiar. Ubíquo é um grão-de-bico existencialista e que dedica grande parte da sua vida a reflectir sobre questões filosóficas profundas. Uma das grandes questões que desde cedo o assolou foi a de não ser possível provar que os grãos-de-bico não são simplesmente um cérebro num boião cheio de líquido no qual são induzidas por impulsos eléctricos todas as percepções sensoriais que os grãos-de-bico pensam sentir no seu dia-a-dia. Toda a vida de um grão-de-bico pode ser uma mera ilusão e não é possível um grão-de-bico provar que a sua própria vida é mais do que apenas isso. Porque, para o provar, teria que sair de si próprio e isso não é possível. Há relatos de grãos-de-bico que ficaram fora de si mas pensa-se que é apenas em sentido figurado.

Recentemente, Ubíquo conheceu Ceroulas, uma ervilha com uma concepção do Universo absolutamente original. Fascinou-o a forma como Ceroulas não assume nada acerca do Universo, nem sequer que há leis físicas que o regem. Mas, acima de tudo, fascinou-o o conceito abstracto e etéreo do seu Universo Azul Carmim, um Universo de conceitos onde existem todos os conceitos que alguma vez alguém pode inventar. Fascinou-o, principalmente, porque sabe que esse Universo tem existência independentemente de o seu cérebro estar dentro de um boião ou não. Ubíquo sentiu que o Universo Azul Carmim lhe punha um sorriso de fascínio nos olhos e lhe permitia não se preocupar tanto com o facto de o seu cérebro poder viver dentro de um boião. Desse fascínio, surgiu Azul Carmim, a sua mais recente criação.





AZUL CARMIM
Ubíquo

Ponho as minhas ceroulas
Finjo estar sempre alegre
Com as surpresas do Universo:
Azul Carmim!

Mas algures na penumbra
Subsistem as dúvidas
Crateras profundas
Quero emergir

O caminho vedado
O arame farpado
Olha-me sempre de lado

Sou só um cérebro
Alimentado por uma pilha solar?
E os corpos mera ilusão
Ficção impressa no meu olhar?

Robirta fascinada com o Batongo

Robirta passou várias semanas nas profundezas da Amazila em comunhão com uma tribo nativa. Viveu, conviveu e partilhou momentos absolutamente maravilhosos com as ervilhas de lá. Expressiva e criativa como é, sentiu tomar forma dentro dela um conjunto de sons inspirados na linguagem falada por aquela tribo, o Batongo. Tratava-se de uma linguagem essencialmente composta por sons de tambores. Cada vez que alguma das ervilhas daquela tribo queria falar, fosse com quem fosse, tinha que convidar essa ervilha para ir até aos tambores, e falar depois com ela. Robirta adorou esse peculiar sistema de comunicação. Robirta passou semanas a ouvir os tambores, ora suaves, ora exaltados, dependendo da mensagem que a ervilha que os usava queria transmitir. Robirta viu um espectro de tonalidades, de entoações, de pequenas nuances de diálogo, em todos aqueles batuques que teve o prazer de ouvir. Interessou-se em especial por um conjunto de versos da poesia tradicional local. No final, saiu uma peça fascinante feita sem qualquer instrumento, apenas vozes: a de Robirta e a dos Granizados, um grupo de grãos-de-bico que canta predominantemente a capella.



BATONGO
Robirta e os Granizados

[Cantando sons inspirados nos seguintes versos em Batongo, uma linguagem de batuques falada por algumas tribos de ervilhas nativas das profundezas da Amazlias.]

Nuances de cor
Teus traços carregados
Quero sentir o sabor
De bifinhos panados
Absorve-me a dor
O mero silêncio dos prados
E nos batuques sem fim
Ouço pedaços de mim

Robirta assalta o banco

Depois de ter sentido o cheiro da paixão e de passar apenas uma de muitas e muitas noites para esquecer a beber num bar qualquer por ter sido desprezada por aquele que pensava ser o seu grande amor, Robirta sentiu ter encontrado finalmente a sua alma gémea. A alma gémea, porém, não tinha a mesma opinião. Por isso, Robirta teve que se contentar em fazer uma musiqueta em que dizia que bem tentou, mas que nada levou. Claro que como estava farta de ser tida como lamechas por ter passado noites e noites a chorar que nem uma perdida com um copo de vodka à frente, Robirta optou por uma música mais animada e dinâmica. O resultado foi surpreendente.




NADA DE TI
Robirta


Tua casca é tão dura de roer
As tuas covas são impossíveis de ter
E no entanto eu não consigo alienar-me
Assalto ao banco e dispara o alarme

E eu desembesto, perseguição pela rua
Levo o dinheiro até ao sítio secreto
Mas nada de ti
Nada de ti!

Como é que é, pessoal?
As ervilhas a curtir?
Como é que é, malta?
Toca a abanar essa casca!
Como é que é?
Nada de ti!

Quero a tua casca, quero a tua casca
Sentir as tuas covas aqui
Quero a tua casca, quero a tua casca
Sentir as tuas covas em mim

[Solo de voz libertador]

Mas nada de ti
Nada de ti!
Nada de ti!

Porquina na espuma do arrependimento

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Porquina acreditava na teoria das Bombocas e Ranholas de Alipas. E acreditava com muita força. Mais ou menos a mesma força necessária para levantar um caixote de fruta. Mas dos pesados, não é um caixote de uvas, por exemplo. Porquina tinha a certeza de que era uma ranhola já que a sua vida corria extraordinariamente mal em todos os domínios. Por oposição, a vida de Lustrosa, principalmente desde que tinha criado a sua maravilhosa Teoria do Casaco, corria às mil maravilhas. Lustrosa era aquilo a que se podia chamar um poço de sucesso. Podia, e chamava-se. Isso incomodava muito Porquina. A mera existência de Lustrosa irritava Porquina ao ponto de espumar pela boca.

Num dia de frustração exacerbada, Porquina decidiu matar Lustrosa. Logo de seguida arrependeu-se. Mas, logo de seguida, novamente, voltou a decidir matar Lustrosa. Preferia viver o resto da vida com o sentimento de culpa do que com aquela frustração sem fim. Saíu de casa pela fresca e foi directa a uma loja de armas. Ia comprar uma pistola de 9mm. Viu-a na montra. Era novinha em folha e reluzia. Ao olhá-la, Porquina esboçou um sorriso de ternura. A funcionária explicou-lhe que, dada a natureza do produto em questão, era necessário preencher um formulário especial. Passou-lhe o formulário para a mão. Consistia numa folha quase toda em branco. Numa ínfima porção do espaço da folha podia ler-se a pergunta:
"Planeia cometer algum crime ainda hoje? (S/N)"

Porquina não precisou de pensar muito sobre a resposta. Ela queria matar Lustrosa e matar era um crime. A resposta era obviamente Sim. Escreveu a sua resposta e devolveu o formulário à funcionária. A funcionária explicou-lhe que Sim não era uma resposta permitida. Apenas podia escrever S ou N. Porquina corrigiu, já num novo formulário. A funcionária lamentou e disse-lhe que tinha que ser a tinta preta. Porquina voltou a preencher um novo formulário já com a tinta correcta e perguntou-lhe por que não a avisou logo de ambos os erros no primeiro formulário.

- Ó menina, uma coisa de cada vez. Uma coisa de cada vez. Quem tudo quer, tudo perde -- respondeu a funcionária com um ar muito profissional e imperscrutável.

Porquina aceitou o seu argumento. Realmente, não é boa política fazer muitas coisas ao mesmo tempo. Podemos enganar-nos. Porém, ficou surpreendida com aquela coincidência extraordinária. Logo no dia em que ela decide matar Lustrosa, alguém lhe pergunta se ela planeia praticar um crime nesse dia. Por outro lado, ficou algo preocupada. Será que a funcionária sabia do seu plano secreto?

A funcionária recebeu o novo formulário e viu o S preto da resposta. Percebeu que Porquina ia cometer um crime naquele dia e ficou preocupada. Olhou para Porquina e fez aquela cara de quem finge não pestanejar mas pestaneja. Porquina achou estranho que ela precisasse de fingir não estar a pestanejar. Não havia mal nenhum em pestanejar. Era um gesto normal e todas as ervilhas pestanejavam. Sempre esta hipocrisia de não se assumir como se é. Porquina confirmou mais uma vez que as ervilhas do seu tempo tinham medo de ser elas próprias, se preocupavam demasiado com a opinião dos outros e evitavam todo o tipo de confrontações. Porquina abanou a cabeça interiormente.

Feita a compra, saíu da loja. Estava contente porque agora a sua vida tinha um propósito. Também estava contente por esse propósito ser eliminar uma das grandes fontes de frustração da sua vida. Ainda viu a funcionária, do outro lado da vitrine, por entre carabinas e espingardas de canos serrados, com um ar extremamente preocupado a falar ao telefone e a segui-la com o olhar. Porquina achou que talvez a funcionária estivesse a telefonar à namorada que lhe estaria a dizer que não gostava do hálito dela. Isso explicaria o ar preocupado. E a funcionária de facto não tinha grande hálito. Tudo batia certo.

Apanhou o autocarro. Lá dentro, ao pensar na missão que tinha à frente, começou a ficar nervosa. Todas as pessoas olhavam para ela com reprovação, com desprezo, com desdém. Porquina tinha a sensação de que todos em conjunto se levantavam, lhe apontavam o dedo, e em uníssono gritavam "Assassina! Assassina! Assassina!". Porquina sabia que era uma boa ervilha, que a sua missão era apenas algo que ela tinha que fazer pelo bem comum, pelo bem estar emocional de todas as Ranholas do mundo. Alguém precisava de as libertar daquele fantasma de Lustrosa sempre a pairar sobre as suas cabeças de ervilha. Quando restabelecia a confiança no propósito da missão, também as ervilhas em redor lhe pareciam mais calmas, serenas e menos incriminadoras.

Chegada a altura certa, desceu do autocarro e seguiu na direcção da casa de Lustrosa. Morava numa zona de vivendas muito selecta. As vivendas serem tão espectaculares, e terem aqueles jardins todos tão bonitos, eram outro factor de irritação para Porquina. Olhou-as por momentos. Começou a espumar da boca. Tirou um lenço do bolso e limpou-se. Prosseguiu o seu caminho. A sua irritação avolumava-se, mas ao mesmo tempo também a sua compaixão pelo próximo sobressaía. E Lustrosa estava claramente mais próxima. Porquina chegou às traseiras da vivenda de Lustrosa. Abriu a porta do jardim e encostou-se a ela, já do lado dentro. Reflectiu sobre o que estava prestes a fazer. Hesitou. Ficou ali horas e horas a debater consigo própria o valor da vida das ervilhas, a fragilidade da vida, a razoabilidade do direito a uma ervilha tirar a vida a outra, abordou a noção de alma, se existiria ou não, se teria pintas roxas ou amarelas. Naquelas horas esclareceu várias das suas dúvidas sobre metafísica e existência, mas não esclareceu a mais importante: se iria usar a sua arma ou não naquele dia. Nisto, um barulho, era a porta da frente, Lustrosa tinha entrado em casa. Era já noite e Lustrosa acendeu a luz da sala. Porquina viu a silhueta de Lustrosa perfeita na janela. Viu-a tirar o seu lindo casaco e pendurá-lo num cabide de pé.

Porquina estava muito nervosa, o suor escorria-lhe pela testa, pela face. Com as mãos a tremer, tirou a pistola do bolso e tentou carregá-la. O carregador caíu-lhe ao chão. Começou a tremer mais. Pensou novamente no valor da vida, em como sentia que não tinha o direito a fazer mal a Lustrosa. Pelo menos, não daquela forma tão drástica. Carregou a arma. Empunhou-a. Apontou-a à janela. A silhueta de Lustrosa perfeita. Porquina podia imaginar-lhe todos os contornos absolutamente perfeitos, as linhas esbeltas, o casaco lindo agora já pendurado. Começou a espumar da boca. Tirou o lenço, limpou-se. Voltou a apontar a arma. As mãos tremiam-lhe, tremia-lhe já o corpo todo, Porquina mal se conseguia equilibrar.

Mais uma vez hesitou. Lembrou-se do dia em que Lustrosa a tinha convidado para jantar, ali naquela mesma casa, de como a tinha tratado bem, de como tinham tido um serão tão agradável, de como Lustrosa lhe tinha oferecido um tiramisu espectacular. Desta vez, ao pensar em Lustrosa, não espumou da boca. As mãos pararam de tremer. Os seus braços baixaram. Sentiu-se aliviada. Todo o peso da culpa tinha ido embora. Porquina percebeu que não conseguia nem queria matar Lustrosa. Teve vergonha de si própria por ter pensado todas aquelas coisas horríveis, por se ter deixado fazer refém da inveja. Decidiu que se queria ser mais feliz teria que lutar por tornar a sua vida melhor e contentar-se com ter tentado o seu melhor em vez de simplesmente destruir quem fosse melhor.

Porquina voltou-se, abriu a porta do jardim e saíu. Nesse preciso instante, chegaram seis viaturas da polícia que a encurralaram contra a parede das traseiras. Porquina percebeu que eram da polícia porque tinham sirenes às cores e diziam Polícia.

- Ponha a sua arma no chão! Já! -- gritou um dos agentes num tom militar, em plenos pulmões.

Porquina obedeceu. Três agentes correram na sua direcção, saltaram-lhe para cima e deitaram-na ao chão. À custa de farta violência física, mesmo sem que houvesse qualquer resistência por parte de Porquina, algemaram-na e meteram-na dentro de uma das viaturas. Foi julgada pelos seus actos e foi condenada a prisão perpétua por homícidio. Morreu na prisão. Foi de gripe do grão-de-bico. Logo ela que nem gostava de grão-de-bico.

A viagem de Robirta ao Universo Bicolor

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Um dia Robirta ia a passear pela rua à procura de inspiração para mais uma música quando viu uma casa a arder. Pensou que alguém podia estar em apuros, por isso aproximou-se. Não porque fosse ajudar. Ela não era de actos heróicos. Queria apenas perceber se encontraria ali material para a sua nova canção. Ficou a olhar, a olhar, em buscar de algo etéreo e profundo. Entretanto chegaram vários carros de bombeiros. Em dois minutos, os soldados da paz apagaram o fogo e controlaram a situação. Robirta perguntou a um deles o que se tinha passado. Ele respondeu-lhe que uma ervilha tinha deixado demasiada lixarada debaixo da cama e que um curto-circuito tinha pegado fogo aquilo tudo. Também lhe disse que a curiosidade tinha matado o gato, mas Robirta não percebeu onde é que um gato era chamado para a história. Talvez a tal ervilha tivesse um.

Entretanto, saíu uma ervilha com uma caneca de chá verde na mão, ainda a fumegar, e embrulhada num cobertor com um ar bastante abalado. Chamava-se Kolmicas. Robirta ficou horas a conversar com ela. Queria saber o que se tinha passado e inspirar-se naquela ervilha traumatizada para escrever a sua música e dar largas à sua criatividade. Kolmicas explicou-lhe a grande saga da sua vida em estruturar a informação e em atribuir-lhe uma caixinha vermelha ou uma azul. Robirta ficou absolutamente fascinada. Era impressionante como ela encontrava a cada canto, a cada virar de esquina, alguém com uma história de vida tão fascinante. Escreveu Universo Bicolor, um dos seus maiores sucessos discográficos de todos os tempos.





UNIVERSO BICOLOR
Robirta


Agarro o jornal matutino
São tantas as notícias novas
Toda a informação me olha e implora
Sistemática estruturação

Ao fim do dia, refresco a meu lado
Decido o que é irrelevante
Recortes precisos, a magia no ar
Começo aquilo que me faz vibrar

Catalogar, compartimentar
Eu nunca nesta vida vou parar
Caixinhas azuis, caixinhas vermelhas
Para mais tarde me deliciar

Talvez esse dia nunca chegue
Talvez a luta impossível
Um dia vou contemplar o universo bicolor
Quero acreditar

Quando abro a janela
Esvoaçam lá fora alegres os colibris
As penas incendeiam-se de cores
Que os meus olhos não sabem abarcar

Toda a entropia que me apoquenta a alma
É por demais espampanante
Procuro refúgio bem no fundo de mim
Nem que sucumba eu vou até ao fim

Robirta descobre a magia do Pónei Azul

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Um dia Robirta viu uma ervilha a andar com um sapato raso e outro de salto alto e, intrigada, foi ter com ela. Perguntou-lhe por que razão andava com um sapato de cada feitio e advertiu para os problemas de coluna que essa prática podia trazer. Mal sabia Robirta o que a simples decisão de fazer aquela pergunta lhe reservaria. A ervilha dos sapatos diferentes era Xamilas, famosa por ter criado o Método da Escolha dos Sapatos. Nas duas horas seguintes, Robirta aprendeu tudo e mais alguma coisa sobre o Princípio da Ordem Natural e converteu-se irreversivelmente à filosofia teológica da Ordem Natural. Ficou tão fascinada com a nova visão do mundo recém adquirida que, criativa como era, trouxe ao mundo uma linda canção. Chamou-lhe Pónei Azul. No início do refrão pode-se constatar a genuína imersão de Robirta neste tema quando, no auge da evocação ao Pónei Azul, a voz lhe falha de emoção de uma forma totalmente improvável e inesperada.




PÓNEI AZUL
Robirta

Pela manhã calço os meus sapatos
Não sei de que cor vão ser
E se iguais nos meus pés chatos
Rodopio de prazer

Marcado encontro algures na margem
Onde e quando, vou esconder
Se do bosque a tua imagem
A alegria de te ver

Pónei azul [falha de voz emocional], faz-me voar
Leva a minha casca até à beira do mar
Pónei azul, não peço demais
Só um mundo de escolhas, de momentos especiais
Pónei azul, arco-irís sem fim
Dos escombros, perfeita, a harmonia improvável em mim
Ponéi azul, fazes-me tão feliz
Às vezes por um triz (pónei azul)
Às vezes por um triz (pónei azul)

Amelínia e a origem das espécies

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Parêntida gostava muito de contar histórias à sua filha, Xambélia. Histórias célebres, como a de Atlantis ou de Esnífia. A filha parecia gostar, caso contrário não continuaria a fazer perguntas à hora de dormir. Ou, se calhar, era simplesmente forma de ajudar a mãe, que talvez precisasse daquela terapia criativa de imaginar mundos fantásticos. Seja como for, Xambélia ouvia-as sempre. Pelo menos nos primeiros quarenta segundos.

Eram quatro da manhã e Xambélia estava sobressaltada em mais um dos seus sonhos surrealistas. Desta vez fugia de uma libelinha gigante que a queria matar sussurrando-lhe mensagens misteriosas ao ouvido enquanto ela colhia hortelã. Parêntida ouviu o alarido no quarto da filha e ignorou-o por completo. Ao fim de duas horas daquilo, e de perceber que não iria também ela conseguir dormir, decidiu ir lá. Quando chegou viu a filha a rebolar-se frenética nos lençóis, com as mãos a tapar os ouvidos e a gritar

- Não estou a ouvir!! Não estou a ouvir!!

A mãe esboçou um sorriso de escárnio e apreciou por uns instantes o momento. Depois, tocou-lhe ao de leve. Xambélia percebeu que era apenas mais um sonho surrealista e acalmou. Só que depois ficou sem sono. Por estar sem sono, pôs-se a reflectir um pouco sobre a origem da vida. Olhou Parêntida com um ar profundo e perguntou

- Por que há tantos animais e vegetais diferentes e não há só ervilhas?

Parêntida sabia da importância de responder a esta pergunta metafísica. E também da importância de adormecer Xambélia rapidamente se ainda queria dormir alguma coisa antes de acordar para ir trabalhar. Parêntida era insuportável quando dormia pouco. E sabia-o. Ponderou também ela um pouco sobre a génese da vida e começou a sua explicação:

Era uma vez uma amiba chamada Amelínia. Usava o cabelo preso atrás da cabeça, em rabo-de-cavalo. Amelínia era o único ser vivo no mundo. Sentia-se muito sozinha. Por isso, desenhou outra amiba em papel cavalinho. Fê-lo porque era um papel mais rijo e Amelínia não queria que o desenho se dobrasse ou amarrotasse. Quando acabou o desenho, a amiba que havia desenhado saíu do papel e tornou-se numa amiba real. Não que não tivesse já realidade física quando estava no papel. Porém, era feita apenas de celulose. Quando saíu do papel passou a ser uma célula. É daí que vem a palavra célula, de celulose. O segundo ser unicelular do universo era, portanto, nos seus primórdios, feito de celulose. O primeiro era, obviamente, Amelínia. Pode-se perguntar de onde surgiu Amelínia. Mas também se pode não perguntar, por isso, vamos escolher a segunda. Amelínia gostou tanto da sua nova amiga que decidiu chamar-lhe Cimpória. Ficaram logo muito amigas. Viam a novela sempre juntas no sofá-cama de Amelínia.

Amelínia não conseguia deixar de pensar como era surpreendente que o seu desenho se tivesse transformado num ser vivo real. Às vezes dava por ela a cogitar como seria se desenhasse outros seres vivos que lhe viessem à cabeça. Ou mesmo outros que não lhe viessem à cabeça. No entanto, era sempre incapaz de os desenhar, com medo de provocar descontinuidades irreversíveis na evolução natural das espécies. Um dia fartou-se de viver naquela ansiedade de não saber se era possível criar outros seres vivos. Foi à papelaria e comprou vários blocos A4 de papel cavalinho e um conjunto de lápis 2B. Amelínia gostava muito de lápis 2B porque eram muito macios. Começou então a desenhar vários vegetais. Desenhou uma couve roxa e uma bananeira mas não aconteceu nada. Amelínia não desistiu e, com todo o cuidado, repetiu os dois desenhos mas, desta feita, em folhas de papel separadas. Ficou deliciada quando viu a couve e a bananeira materializarem-se à sua frente, bem reais. A partir daí desenhou sempre cada ser vivo numa folha separada. Fazia, aliás, todo o sentido: um ser vivo, uma folha. Aproveitou, e comeu uma banana. Sabia mesmo aquilo que ela pensava.

Maravilhada com o sucesso da couve e da bananeira, decidiu ir mais longe. Desenhou um ornitorrinco. Ficou perfeito. Contudo, nada aconteceu. Mesmo apesar de ter sido desenhado numa folha separada. O ornitorrinco permanecia no papel. Impávido. Imóvel. Um silêncio sepulcral. Passado um pouco ouviu-se uma voz grave e calma vinda de todos os lados e de parte nenhuma:

- Este animal é ridículo. Parece um mamífero, mas ao mesmo tempo parece um pato. E esses ovos no desenho, são dele? Isto está um pouco confuso. Tenta outra vez.

Amelínia rapidamente percebeu que tinha que suplementar os seus desenhos com algumas instruções sobre o comportamento do animal que queria criar. Fazia sentido. Era difícil criar um animal inteiro apenas a partir de uma imagem. Ficava muita ambiguidade por resolver. De facto, a aparência exterior do ornitorrinco por si só não dizia o suficiente sobre ele. Para o criar, era preciso facultar informação adicional. Por isso, Amelínia passou a escrever anotações na parte de trás do desenho. No caso do ornitorrinco, escreveu que ele punha ovos mas que amamentava as suas crias. Podia também dizer coisas sobre a personalidade do animal que queria criar. Neste caso, escreveu brincalhão. Era interessante como não era importante a linguagem em que essas anotações eram escritas. De facto, Amelínia podia mesmo escrever numa linguagem acabada de inventar só para aquele desenho, porque havia uma entidade algures que saberia exactamente o que ela queria dizer e criava o animal de acordo com as características descritas no verso da folha de papel. Amelínia não deixava de ficar fascinada com a fidelidade dos animais criados à sua ideia original. Eram exactamente como ela os queria ter criado, mesmo que por vezes a sua descrição no verso fosse um pouco vaga.

Durante anos, Amelínia dedicou-se a criar animais e vegetais dos mais variados que conseguia imaginar. Adorava aquilo. Tinha encontrado uma forma deliciosa de exprimir a sua criatividade. E ela tinha uma imaginação por demais fértil. Só assim se explicava que tivesse criado o peixe-bolha, o aye-aye ou mesmo o axolote. A situação começou a complicar quando Amelínia decidiu criar um animal especificando no verso que esse animal deveria ser capaz de criar outros animais através de desenhos. A partir daí, tudo descambou. Surgiu uma série de animais mal intencionados, que criavam animais ridículos por puro prazer. Eram maldosos. Começaram a ser criados animais de todas as formas e feitios, sem qualquer tipo de restrição. Havia um que era um balão de borracha que se enchia sozinho e que depois se esvaziava a uma velocidade alucinante em zig-zags pelo ar e se espetava contra o animal que estivesse mais perto. Depois, ria-se que nem um perdido, como uma hiena. Muito irritante. Mas não era apenas pura maldade. Eram interesseiros. Criaram um animal que era um tapete persa e que servia apenas de meio de transporte a quem lhe desse um passou-bem. Ao fim do dia, ficava deitado no chão da sala. Quando se fartavam dele, vendiam-no num mercado qualquer a preços alucinantes.

Apareciam animais tão estapafúrdios que era óbvio não poderem ser o resultado de qualquer evolução. Isso preocupou Amelínia que sabia que a única teoria que explicava decentemente a origem das espécies era a que dizia que eles tinham evoluído. Então Amelínia decidiu criar um animal novo a que chamou Papadão. Era muito parecido com um papa-formigas, mas tinha a particularidade de aspirar, ao invés de formigas, apenas animais que nitidamente não pudessem ter surgido por evolução natural. Esses, e também todos os animais mal intencionados ou interesseiros que criassem ou pudessem algum dia criar, através de desenhos, outros seres vivos que não pudessem ter surgido por evolução natural. Tinha a particularidade adicional de, assim que tivesse eliminado todos esses animais, se aspiraria a ele próprio. Amelínia criou milhares de exemplares desse tal Papadão. Eram muito castiços. Tinham um sentido de humor muito particular. E apreciavam o jogo da sueca. Tudo isso tinha sido especificado por Amelínia no verso do desenho. Excepto o interesse pela sueca. Amelínia não apreciava jogos de cartas.

Todos os Papadões executaram diligentemente a tarefa que lhes tinha sido atribuída e no final aspiraram-se a si próprios. Isso deixou Amelínia radiante. O seu plano tinha funcionado na perfeição. Actualmente existe toda uma variedade de espécies animais e vegetais essencialmente devido ao engenho e à criatividade de Amelínia. É muito fácil então perceber de onde vem tanta variedade. Para além disso, felizmente, devido à cultura científica e à luta e preserverança de Amelínia, a teoria da evolução das espécies mantém-se, hoje em dia, como a teoria mais simples que explica a existência de toda a actual variedade genética. Graças a Amelínia, o mundo permaneceu coerente.

No fim da resposta de Parêntida, Xambélia dormia já profundamente. Ou talvez estivesse a fingir. Mas Parêntida achou que ela estava a dormir e por isso foi-se embora. Encostou a porta do quarto e foi ver televisão. Ouviu um barulho vindo do quarto da filha e tirou imediatamente o som à televisão. Pareceu-lhe claramente ouvir o distinto barulho de um lápis 2B a passar sobre papel cavalinho e depois um ladrar normal seguido de um meio abafado. Seria provavelmente do sono. Era já muito tarde. Decidiu apagar a televisão e ir dormir. Na cama estava um leão marinho a roçar-se nos lençóis. Desentalou a sua metade da cama e deitou-se com cuidado para não o acordar. Depois, adormeceu.

Esnífia e a natureza do espirro

Conheço uma ervilha. Chama-se Xambélia. Como todas as ervilhas, Xambélia tinha uma mãe. Chamava-se Parêntida. A mãe. Xambélia tinha sempre muitas perguntas sobre o mundo. Parêntida tinha uma forma pedagógica de as abordar, contando-lhe histórias fantásticas, como a de Atlantis e a Salinização dos Mares. Acima de tudo, eram histórias verdadeiras. A verdade sempre foi uma conceito muito subjectivo.

Era hora de dormir e, como sempre, Xambélia não tinha sono. Rebolou-se algumas vezes na sua cama, mas nada.

- Parêntida!... -- chamou, como sempre, num tom completamente inesperado.

A mãe entrou esbafurida pelo quarto adentro e só sossegou quando percebeu que era apenas a filha a chamar. Acalmou. Mas agora já não se podia ir embora porque a filha tinha dado conta que ela tinha entrado.

- Por que espirram as pessoas? -- perguntou Xambélia como se tivesse muito interesse na resposta, algo que ambas sabiam não ser minimamente verdade.

A mãe olhou durante um bocado para o fundo de si à procura da resposta e, quando a encontrou, começou:

Era uma vez uma ervilha chamada Esnífia que gostava muito de alfazema. Andava sempre com um raminho atrás. Um dia decidiu, de livre vontade, espetar dois ou três caules da alfazema nas narinas com toda a força que tinha. Imediatamente fez aquilo que hoje em dia se designa por espirrar. Ficou surpreendida com o estrépido do fenómeno e repetiu-o mais algumas vezes. Como aquilo era algo a que achava muita piada, volta e meia enfiava os caules da alfazema no nariz e espirrava como se não houvesse amanhã. Ao fim de algum tempo a usar desta prática, desenvolveu uma alergia tão crónica que, mesmo sem enfiar qualquer alfazema no nariz, só o pensamento na alfazema gerava uma sequência considerável de espirros. Ao fim de mais algum tempo, já nem precisava de pensar na alfazema para espirrar. Era um processo involuntário e incontrolável. Espirrava de cinco em cinco segundos.

Como era a única ervilha do mundo que espirrava, tornou-se famosa e criou uma moda muito própria. Espirrar tornou-se tão in que muitas ervilhas tinham já aprendido a técnica de fingir os espirros para conseguir atrair a atenção de outras ervilhas. O espirro tornou-se numa forma de demonstração de estatuto social. Apenas as ervilhas capazes de demonstrar tal capacidade de forma exímia podiam ascender socialmente e, no fundo, sobreviver na sociedade. As ervilhas que nunca espirravam eram segregadas e discriminadas, eram-lhes sempre rejeitados os melhores empregos, faziam pouco delas um pouco por todo o lado. O extremo da humilhação era quando uma ervilha que espirrava lhes fazia cócegas com um raminho de alfazema na parte de baixo da casca à frente de todas as ervilhas em redor.

Como sempre, a selecção natural tratou de dar preferência às ervilhas que, através de alguma mutação pontual e depois por cruzamentos entre ervilhas, nasciam já com a capacidade de espirrar involuntariamente. Eram essas de facto as ervilhas com mais probabilidade de sobreviver e de se reproduzir. Tudo isto resultou numa disseminação genética generalizada da propensão para espirrar. Volvidas muitas gerações, foram ficando apenas as ervilhas que volta e meia espirravam. Hoje em dia, não há ervilha que não espirre de vez em quando. Algumas fazem até um ar altamente snob prendendo o espirro, algo que é tido como um comportamento típico das classes mais elavadas. Espirrando agora todas as ervilhas era natural que surgisse algo que pudesse fazer a distinção social entre as ervilhas.

Depois do estrelato, Esnífia entrou numa fase mais depressiva da vida, principalmente quando o espirro se banalizou e praticamente todas as ervilhas espirravam involuntariamente várias vezes ao dia. Esnífia deixou de aparecer na televisão ou de ser convidada para as festas cor-de-rosa. Como resposta, isolou-se nas montanhas onde se dedicou à cultura de vários tipos de ervas aromáticas. Passava o dia a enfiar caules diversos no nariz, à procura de novos fenómenos interessantes. Ao longo do resto da sua vida descobriu ainda dois ou três fenómenos fascinantes. Fenómenos, aliás, tão fascinantes que deixavam o espirro a um canto. Porém, por estar de costas voltadas para o mundo, nunca deu a conhecer a ninguém tão maravilhosas descobertas. Um dia, quando cortava um raminho de hortelã, apareceu-lhe uma libelinha gigante que lhe segredou uma mensagem ao ouvido. Nunca ninguém soube o que foi, até porque não estava mais ninguém lá para ouvir e a libelinha optou também ela por se remeter eternamente ao silêncio nesta matéria, mas foi uma mensagem tão forte que Esnífia morreu de medo. Ficou de barriga para cima. E com os olhos abertos. Esbugalhados.

Finda a resposta, Parêntida olhou a filha ternamente, apenas para confirmar o que já previra. Xambélia dormia profundamente. Desta vez Parêntida não aconchegou os cobertores à filha. Pensou que, se ela tivesse frio durante a noite, talvez sonhasse com a Primavera para aquecer, e se lembrasse da alfazema com força suficiente para dar uns espirros valentes. Parêntida queria acreditar que um dia Xambélia iria ser alguém na vida. E os pais querem sempre o melhor para os filhos. Embuída desse espírito, Parêntida foi-se deitar. Desta vez não se esqueceu de verificar se tinha deixado alguma coisa ao lume. Não tinha.

Atlantis e a salinização dos mares

Conheço uma ervilha. Chama-se Parêntida. Tem uma filha. Chama-se Xambélia. A filha, claro, porque a mãe já disse que se chamava Parêntida. Xambélia estava na idade das mil perguntas. Quase todas as suas frases acabavam com a palavra porquê. E quase nenhuma tinha mais do que uma palavra; apenas uma ou outra. Parêntida sabia como era importante responder a essas perguntas mais longas da sua filha.

Eram tenras horas da manhã e cheirava a alecrim porque algumas ervilhas tinham estado a fumar marijuana durante a noite. Como em todas as manhãs em que cheirava a alecrim, e também em todas em que não cheirava, Xambélia sentiu chegar-lhe ao seu cérebro de ervilha uma dessas suas perguntas com mais de uma palavra. Virou-se para a sua mãe, acabada de chegar ao quarto por um motivo qualquer que hoje em dia já não se sabe qual foi, e disse

- Parêntida! Por que é o mar salgado?

Xambélia tinha a particularidade de tratar a sua mãe pelo seu nome próprio em vez de usar a palavra mãe. Por um lado, tinha muita dificuldade em produzir o som nasalado necessário para pronunciar a palavra mãe correctamente. Por outro, e acima de tudo, havia razões intrínsecas profundas para o fazer. Não era para ser chique ou porque tivesse a mania. Era apenas porque, se dissesse Parêntida, a mãe reagiria mais depressa por não saber quem a estava a chamar. Qualquer filha chama a sua mãe por mãe mas Xambélia sabia que, se o fizesse, a mãe saberia exactamente quem a estava a chamar e levaria muito mais tempo a responder.

Poder-se-ia talvez supôr que Parêntida reconheceria a voz da filha e a estratégia de Xambélia não resultaria. Porém, era precisamente com o facto de a mãe conhecer tão bem a sua voz que Xambélia jogava, fazendo uma voz diferente, umas vezes esganiçada, outras simplesmente ridícula, de cada vez que queria chamar a mãe. A verdade, é que esta técnica funcionava na perfeição, já que depois de a mãe se virar instintivamente na direcção de Xambélia ao ouvir o chamar estridente de um desconhecido, tornava-se difícil fingir que não tinha dado conta. Parêntida não queria ferir os sentimentos da sua filha.

Parêntida tinha já experimentado a técnica de nunca olhar quando ouvia um chamamento ridículo do seu nome. No entanto, desistiu dessa técnica no dia em que foi atropelada por uma betoneira apesar de uma amiga ter chamado histérica o seu nome por dezasete vezes. Aliás, Xambélia estava lá e um dos seus chamamentos preferidos da mãe era precisamente uma imitação perfeita dos gritos da amiga. Xambélia teve a sorte de não ser atropelada porque atravessou primeiro sozinha já que a mãe estava distraída a ver uns sapatos numa montra e disse a Xambélia para ir atravessando:

- Toma atenção a essa betoneira, que vem lá lançada -- disse à filha num tom carinhoso.

Esse atropelamento foi um momento baixo na vida de Parêntida. A betoneira ia certamente fazer serviço importante e atrasou-se. Parêntida detestava deixar outras ervilhas à espera. E deu certamente uma trabalheira ao neuro-cirurgião de serviço nessa noite, que muito provavelmente tinha família à espera em casa. Não que ele pudesse sair antes caso não tivesse havido o acidente, já que estava de serviço, mas podia às vezes querer ver alguma coisa interessante na internet no computador lá da urgência. Ou mesmo uma que não fosse interessante.

Desta vez, porém, Parêntida estava até bastante contente por ter caído na armadilha de Xambélia. Responder a esta pergunta de Xambélia não só fazia parte dos seus importantes deveres de mãe, como era algo que lhe dava um imenso prazer. E era, aliás como quase todas as perguntas da filha, uma de resposta fácil. Na sua mente ecoou novamente a pergunta da filha:

- Por que é o mar salgado?

Parêntida ponderou um pouco sobre se deveria deixar o tacho ao lume enquanto respondia à filha. Optou por deixar. Depois, começou:

Era uma vez uma ervilha com Incontinência Perspírica Crónica (IPC). Chamava-se Atlantis e não fazia copos de cristal. Um dia, puseram essa ervilha num oceano qualquer. Era, como todos os oceanos de então, de água doce. Atlantis, com o medo de se afogar, começou a suar incontrolavelmente. Ali, nas suas imediações, toda a água salgou. As ervilhas que estavam por perto apreciaram essencialmente duas coisas: (i) era muito mais fácil boiar na água em redor de Atlantis; (ii) se a água em redor de Atlantis ficava salgada, podiam então criar algo a que chamariam, por exemplo, salinas, onde se poderia retirar o sal à água e produzir não só sal, o que daria imenso jeito para dar algum sabor às alfaces, como até mesmo água doce, que era óptima para beber. O facto de já existir água doce em abundância nos oceanos não lhes pareceu relevante.

Dado esse conjunto fascinante de vantagens, um grupo de ervilhas auto-denominadas As Verdes, que se preocupava em tornar o mundo um lugar melhor para todos os vegetais, decidiu fazer uma petição na internet com o intuito de se proceder à salinização de toda a água dos mares. Conseguiram milhares de assinaturas, mas não foi uma luta fácil. Primeiro, porque as petições na internet não têm qualquer valor jurídico mas, principalmente, porque a água doce não só era potável como servia para a cultura de vegetais e era difícil convencer o parlamento da República Inomesa a autorizar uma medida que poderia trazer tantas alterações à vida das ervilhas. A líder d'As Verdes, Rebaldas, sabia que tinha uma tarefa desafiante pela frente. Tentou convencer o parlamento de que, se se salinizassem todas as águas, seria altamente benéfica para a economia do país a criação da nova indústria de dessalinização absolutamente necessária para a existência de água potável. Iria ser criado um sem número de novos postos de trabalho. Mas Rebaldas guardou o aliciante mais poderoso para o final: passaria a ser muito mais fácil boiar quando se tomasse banho na praia. O parlamento que estava indeciso, ficou imediatamente convencido. O mundo ficaria um sítio muito mais seguro para as suas crianças nas férias de veraneio. A ideia passou e foi posto em marcha o megalómano Plano Mundial de Salinização (PMS) que tinha por único e nada modesto objectivo a salinização de todas as grandes massas de água.

Todos os dias levavam Atlantis para um local diferente do mundo e diziam-lhe que vinha lá o tubarão. Atlantis, que era daquelas ervilhas que jogava invariavelmente pelo seguro, acreditava sempre que vinha lá de facto o dito tubarão e a adrenalina libertada despoletava a sua incontrolável necessidade de suar aos litros. Salgado aquele lugar, passavam para outro. Quase sempre aquele que estivesse mais longe. As Verdes adoravam viagens de barco. Eram pagas com o dinheiro dos contribuintes. A actividade de Atlantis tornou-se tão importante que chegaram a dar o seu nome a um oceano, em sua homenagem. Toda esta azáfama era óptima, claro, para Atlantis que ficava a conhecer todos os cantos do mundo. E, quando a tentavam afogar para salgar as partes mais profundas do oceano, via uns quantos corais raros lá no fundo. Ao fim de algumas décadas praticamente todas as águas do mundo estavam salgadas. Todas, com excepção dos rios. O que se passava com os rios era que, como as águas estavam sempre a correr, o sal acabava por ser todo levado até ao mar mais próximo e os rios ficavam sempre de água doce. As Verdes eram um grupo de ervilhas muito perseverantes no que tocava a proteger o ambiente. Por isso não iriam desistir facilmente de salgar todos os rios também.

Já depois de todos os mares e oceanos salgados, dedicaram várias décadas a fazer experiências usando Atlantis para salgar um rio em particular, o Xaniledes. Porém, o sal, teimoso, descia sempre para o mar. Experimentaram variar sistematicamente quase todas as variáveis da experiência -- Atlantis de cabeça para baixo, Atlantis com uma touquinha cor-de-rosa ridícula, Atlantis sem dentes, Atlantis empanturrada de Pastéis de Tentúgal a dizer a palavra farfalhudo -- mas nada parecia resultar. Ao fim de 40 anos desistiram. Nessa altura deram conta que todos os peixes do mar onde desaguava o Xaniledes tinham morrido. Decidiram chamar-lhe Mar Morto. Depois passaram os 20 anos seguintes a tentar culpabilizar uma indústria de calçado da região pelo desastre ecológico. Sem sucesso. As indústrias poderosas têm sempre os melhores advogados. Alegaram que não era usado sal no seu fabrico de sapatos tradicionais.

O Mar Morto tornou-se numa atracção mundial e o fluxo turístico de ervilhas, que vinham de terras longínquas para ver de perto um mar onde não havia qualquer tipo de vida, fez florescer a indústria de sapatos da região. Mais do que sapatos para uso corrente, a indústria produz agora sapatos decorativos, comprados como recordação da região pelos turistas. Os famosos sapatos, os chamados Chaliques, têm pintados peixes virados de barriga para cima, a boiar, lembrando o triste evento numa exortação ao princípio fundamental de que nos devemos preocupar com a natureza e, em particular, com os peixes.

Parêntida terminou a história com um sorriso embevecido nos lábios.

- Percebes agora, Xambélia, por que é salgado o mar? -- perguntou à filha.

De Xambélia apenas um respirar mais forte. Nas horas tenras da manhã, Parêntida ajeitou-lhe os cobertores, apagou a luz e encostou a porta do quarto da filha. Sentiu que Xambélia tinha muita sorte em ter uma mãe tão conhecedora do mundo. "É quando elas dormem que compreendemos verdadeiramente como as crianças são uma benção", pensou. Depois, foi finalmente começar o cigarro que tinha enrolado havia uma hora atrás. Enebriada pelo fumo da marijuana, acabou por se esquecer do tacho ao lume. Tinha apenas água, o tacho. Era para cozer massa mais tarde. A água foi evaporando e o tacho acabou por ficar vazio ao lume. Ficou assim duas horas e meia. Quando Parêntida acordou, já de manhã, teve que colocar novamente água no tacho para cozer a massa. Parêntida detestava quando tinha que repetir a mesma coisa duas vezes. Mas teve que o fazer. Era isso ou não comer a massa. E aquela massa era uma perdição.