Kolmicas e o fascinante idioma de Urdiche

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. Kolmicas era uma ervilha muito especial. Tinha umas calças de ganga azuis. Tinha também a particularidade de ter características quase impossíveis de descrever por palavras. Excepto, talvez, dizendo que elas eram quase impossíveis de descrever por palavras. Algumas delas podia ser facilmente descritas em Batongo, um código de tambores da floresta Amazila, ou em Ploc-ploc, uma sofisticada linguagem de estalidos de boca de Urdiche, uma ilha quase deserta no meio do oceano Pacilis. Mas dificilmente por palavras. Era precisamente esta aparente e intrigante discrepância entre a expressividade das linguagens que entretinham Kolmicas dia e noite. Era a sua ocupação a tempo inteiro. O seu sustento material e espiritual.

Algumas características de Kolmicas eram mesmo muito difícieis de descrever por palavras. E, mesmo quando descritas por palavras, a descrição nunca era suficientemente precisa. Aliás, aquela sua característica peculiar de, em certos momentos objectivamente definidos que envolviam uma combinação de factores relacionados com o programa de televisão, o nível de pluviosidade, a soma dos dígitos do dia do mês, entre outros, virar a cabeça para o lado, ligeiramente inclinada para cima, olhos semi-cerrados, mas mais abertos do que fechados, fitando o céu ou o tecto ou o que quer que fosse que a sua cabeça focava quando se inclinava para cima e para o lado daquela forma específica, sentir um fluxo de ar subir pelo esófago para se perder a meio do caminho entre sonoros roncares involuntários, e ponderar por alguns instantes o profundo significado metafísico da existência de certas entidades semânticas serem tão difíceis de expressar em certas linguagens e tão sucintas noutras, caía precisamente nessa classe de características.

Essa sua característica, nos termos exactos acima descritos, era facilmente expressável em Ploc-ploc, a sofisticada linguagem de Urdiche. Bastavam dois estalidos. E se não tivesse lugar qualquer tipo de fluxo de ar no esófago, bastava um estalido. Era, obviamente, uma linguagem bastante sucinta e prática. Claro que não há rosas sem espinhos, a menos que os cortemos claro, e esta facilidade de expressão vinha a um preço. Por um lado, havia alguma ambiguidade na linguagem. Por exemplo, esses mesmos dois estalidos, no mesmo exacto tom e ritmo, podiam também significar "Opá, sai da frente e deixa ver o jogo. Já me estou a passar. É que já te levantaste para aí umas 19 vezes. Mais uma dessas e apanhas pancada à séria. À séria ou a sério? Olha, apanhas das boas!". Curiosamente, os mesmos exactos estalidos podiam ser também usados para dizer, nestes precisos termos, "Caramba! Parece impossível. Uma ervilha acabada de casar e vai assim falecer sem dar cavaco a ninguém. É verdade que já tinha 82 anos e que era a sua oitava esposa mas, mesmo assim, não é razoável falecer-se nestas circunstâncias. Era muito boa ervilha. Se ainda fosse o caso de ter roubado alguma coisa lá do café do Sr Vitor, algum pacote de amendoins. Mas assim parece-me mesmo uma coisa sem jeito".



Claro que este problema da ambiguidade era de fácil resolução. Bastava utilizar o contexto. Quase nunca falhava. O problema era quando havia o que as ervilhas de Urdiche chamavam Coincidências Não Fortuitas. Por exemplo, se estivéssemos a ver um jogo com uma ervilha amiga que tivesse acabado de inclinar a cabeça para o lado e para cima e de fazer uns barulhos esquisitos com a barriga e, como é tão típico nos dias de hoje, tivesse falecido uma ervilha de 82 anos acabado de casar pela oitava vez, seria difícil não gerar a confusão quando tentássemos oferecer pancada à ervilha irrequieta que à nossa frente se tivesse levantado e não nos estivesse a deixar ver o jogo. Esses momentos eram muito raros e eram descritos nos livros sagrados de Urdiche como prenúncios do fim do mundo como Urdiche o conhecia. Dizia-se que todas as ervilhas que assistissem a um desses momentos eram transformadas instantaneamente em puré.

Outro problema aparente é que, por exemplo, a palavra "sim" requeria cerca de 87 estalidos. E eram num tom e com um ritmo tão específicos que a maior parte dos habitantes de Urdiche não chegava a conseguir usar essa palavra. E os poucos que a conseguiam efectivamente aprender não podiam fazer grande coisa com esse novo conhecimento dado. Praticamente ninguém ia perceber o que eles queriam dizer porque não sabiam dizer "sim". E mesmo que dissessem a alguém que soubesse exactamente a sequência de 87 estalidos, era sempre muito arriscado fazê-lo. A verdade é que os primeiros 86 estalidos da palavra "sim" queriam também dizer "Hoje de manhã dormi com a tua mulher; ela sabe-la toda!" e o 87º estalido deve ser dito apenas 7 segundos depois dos primeiros 86. Ora aquele curto iato entre os dois últimos estalidos parece sempre uma eternidade em que se vê toda a vida a passar diante dos olhos e rezamos para ir para o Céu das Ervilhas e não há muita ervilha com tomates para passar por isso.



Enquanto a palavra "sim" estava envolta em todo este conjunto fascinante de complicações, já à palavra "não" bastava um estalido e meio. Embora possa parecer problemático, na realidade não se tratava de um problema efectivo desta população. Era antes, como em todas as linguagens, um reflexo da personalidade daquele povo como um todo. A verdade é que as ervilhas de Urdiche eram muito atentas aos pormenores. Como aliás se percebe facilmente analisando não só as frases que se conseguem dizer com dois estalidos, como também a especificidade das nuances de tons e ritmos que se podem dar a cada estalido. Como ervilhas muito atentas aos pormenores que eram, era difícil estarem de completo acordo sobre o que quer que fosse. Eram aquilo que alguns designariam por picuinhas. Elas não gostavam desta designação. Diziam-se, antes, ervilhas muito focadas. Sendo ervilhas assim tão focadas, os 87 estalidos da palavra "sim" não eram qualquer obstáculo ao seu dia-a-dia. Elas raramente a usavam. Tinham outras expressões como "Pois, é possível, mas não creio muito." que se diziam em meros três ou quatro estalidos. Kolmicas gostava de contemplar este tipo de coisas fascinantes. Ficava absorta num mundo só dela e perdia a noção do tempo. Mas, por acaso, desta vez, não. Eram três da tarde e ela tinha um sítio importante onde estar. Por isso, saíu de casa.

No comments:

Post a Comment