Pérfila e o Bisonte Alado

Conheço uma ervilha. Chama-se Pérfila. Tem um cabelo absolutamente ridículo, mas esse tema não é agora oportuno. Tem também uma toupeira-nariz-de-estrela chamada Crispi que leva consigo para todo o lado. Gosta da sua companhia. São muito amigas. Discutem temas diversos, incluindo o aquecimento global. De entre todas as características invulgares que existem, Pérfila tem uma muito particular. Sempre que olha para qualquer coisa, consegue imediatamente seleccionar apenas aquilo que é importante. A maior parte das ervilhas, quando confrontadas com demasiada informação, sentem-se incapazes de raciocinar. Isso não acontece com Pérfila. Pode haver milhares de factos, todo um cenário inabarcável a analisar, que Pérfila consegue sempre isolar as duas ou três coisas realmente relevantes para ela e focar-se nelas. E pode depois ficar ali horas e horas a focar-se nessas coisas importantes. Importantes, para ela. Para ela e, quase sempre, para mais ninguém. De entre todas as características invulgares que existem Pérfila tem, de facto, uma muito particular. Na melhor das hipóteses, a pior de todas.

Pérfila era frequentemente convidada a sair de estabelecimentos públicos. Uma vez, num restaurante, ao fim de hora e meia sentada, ainda não tinha pedido qualquer prato porque continuava a tentar convencer o empregado que o tipo de letra do menu não só não era apelativo como havia duas ocorrências da letra A na palavra "Omaleta" que pareciam não ter exactamente o mesmo tamanho. Numa outra ocasião, ficou com a casca toda negra depois de ter esgotado a paciência a uma ervilha gorílica* por ter passado o tempo a dizer à sua namorada, bem mais pequenina e vistosa, e que tinha uma mini-saia que era quase um cinto: "Parece-me que o teu bronzeado não está exactamente uniforme na tua perna direita. Podes virar-te para te ver por trás?". As relações sociais eram também muito difíceis. Uma amiga de Pérfila cortou relações com ela depois de ela ter passado a maior parte do velório da sua mãe a dissertar sobre a natureza não optimal dos trajectos individuais de cada caruncho na madeira do caixão. Chegou a usar um cronómetro.

Durante muitos anos, Pérfila nem sequer percebia o que se passava. Achava que as outras ervilhas eram simplesmente más ervilhas, já que só isso explicava que a tratassem tão mal. Um dia conheceu uma ervilha brutálica** que lhe explicou tudo preto no branco. Pérfila ficou ciente desta sua característica e de como isso prejudicava a sua vida pessoal. Aceitou a dura realidade e decidiu fazer alguma coisa para a mudar. Tentou todos os tipos de terapia. Nenhuma teve qualquer sucesso. A grande frustração de Pérfila era que, mesmo quando ela dava conta de que a sua característica se estava a manifestar, era impossível alterar o seu próprio comportamento. Era como se uma força exterior tomasse conta dela. Aquela característica era intrínseca e incontornável. Por vezes Pérfila ficava tão irritada com o facto de ser assim que chegava a ver, bem real, essa sua característica pendurada mesmo por cima dela, a cerca de um metro da sua cabeça, e com a forma de um bisonte alado cor-de-laranja. Tudo isso era aceitável para Pérfila. O que a incomodava era uma pequena mancha na pata anterior esquerda do bisonte. Aquela mancha era por demais irritante. Era minúscula, quase invisível, mas parecia sujo ou, se não parecia, podia parecer.

Tipicamente, volvidos alguns meses, Pérfila era forçada a afastar-se do grupo de amigos e do bairro em que se inseria e a mudar de terra. Tornou-se numa ervilha nómada, passava a vida a rolar. Pérfila chegou a viver alguns anos em Urdiche, mas praticamente só comeu areia. Tinham-lhe dito que talvez ali ela se adaptasse melhor, dado o carácter muito focado e observador das ervilhas nativas. Aprendeu a língua num ápice e deliciou-se por nunca se ter identificado de forma tão profunda com um idioma. Porém, ao fim de meros quatro dias de vida em sociedade, foi marginalizada e obrigada a viver numa parte deserta da ilha, sem contacto com outras ervilhas, e onde não havia coisas sobre as quais se queixar. Até porque não havia mesmo nada. Era um deserto. Ao fim de três anos de isolamento, quando a foram buscar para a pôr numa jangada feita em conjunto por toda a população de Urdiche, e que a poria premeditadamente e para sempre à deriva no Oceano Pacilis, Pérfila limitou-se a dizer: "Os grãos de areia deste deserto têm dimensões não standard. E não apreciei o tom de castanho. Isto é que é a jangada? Por que usaram dois tipos de madeira?".

Enquanto a jangada se afastava, à distância, ainda se pôde ouvir Pérfila dizer "Meu Deus, são três tipos de madeira!". E aos poucos a jangada afastava-se com Pérfila cada vez mais distante, cada vez mais pequena. Os esboços de sorriso nos acenos esticavam-se na proporção inversa do tamanho aparente de Pérfila que se aproximava do horizonte. Uma gaivota voava na direcção da jangada quando ecoou à superfície do mar: "Estas tábuas nem sequer estão paralelas...". A gaivota desviou a rota, assustada. Por se ter distraído, acabou por voar numa direcção completamente errada, por se perder e morrer de cansaço. Chamava-se Germésia. A gaivota. Que nome mais pateta.

* As ervilhas gorílicas são ervilhas fisicamente muito desenvolvidas, tanto em altura, como em volume, como em tudo, e que se caracterizam por praticamente só comunicar através de linguagem gestual que na grande maioria das vezes se resume à violência física. Tinham a particularidade de apenas atacar ervilhas que tivessem no máximo metade do seu volume.

** As ervilhas brutálicas são ervilhas despojadas do conceito de eufemismo ou da hipocrisia típica da vida em algumas sociedades geradores de frases como "Sim, a tua filha já chumbou 17 vezes no 8º ano mas isso não quer dizer que não seja capaz; as pessoas devem lutar por aquilo que querem e nunca desistir do seu sonho.".