A Igreja Champista

Quase todas as ervilhas do mundo eram Champistas. Podiam discordar nalguns pormenores como, por exemplo, o processo exacto que levou à fecundação de Patchi e, por consequência, à génese do universo, mas na sua essência o mundo era unânime: o universo tinha começado por ser uma placa de gelo cheia de pinguins e, Champi, o Grande Pinguim, como pai solteiro, acabaria por ser o responsável, de uma forma ou de outra, por trazer ao mundo o resto do universo, num ovo que ele pensou ter gerado com Patchi, uma fêmea pinguim lindíssima, mas que afinal tinha sido simplesmente rejeitado por um pinguim chico-esperto. Resumidamente, era isto.

Não deixava de ser impressionante que, estando a ervilhandade sempre tão condenada à discórdia em quase todos os aspectos da vida em sociedade, surgisse em uníssono em matéria de criação do universo. A realidade, é que eram inúmeros os factos que apontavam para a verdade absoluta e apodítica das crenças advogadas pela Grande Pinguinada. Para começar, havia um livro com milhares de anos, chamado Baba do Mundo (pronunciado: B-A-Bá) onde toda a história da génese do universo era descrita ao mais ínfimo detalhe. As primeiras ervilhas a lerem o livro, acharam a história engraçada no campo da faca e do alguidar. Estavam, no entanto, convictas, apesar de isso não estar escrito em parte nenhuma do livro, de que se tratava de perfeita ficção e de que qualquer semelhança com a realidade seria pura coincidência. Para elas, era óbvio que o universo tinha sido regurgitado por um bisonte num momento de maior apetite. O problema foi quando se começaram a verificar todo um conjunto de profecias que estavam escritas nesse livro.

Por exemplo, no Baba do Mundo, estava preto no branco que uma ervilha de seu nome Pérfila iria entrar num restaurante no Vale da Alface às 12h56 e que iria acabar por ser expulsa por embirrar demasiado com a formatação da ementa. E isso aconteceu. Ao ínfimo detalhe. Esta e muitas outras. Quando confrontadas com essa precisão na previsão do futuro, às ervilhas não restou mais do que aceitar o Baba do Mundo como sendo a pura e integral verdade. Algumas ervilhas queixaram-se de que essas profecias mais detalhadas estavam todas invariavelmente escritas à mão, muitas vezes razuradas, numa parte mais recôndita do livro. Outras, afoitas, tentaram fazer notar o facto de que o livro tinha muitas páginas arrancadas, onde podiam ter sido escritas profecias que nunca se realizaram. Essas ervilhas não mantiveram tais ideias durante muito tempo. Principalmente porque foram todas queimadas.

As ervilhas que faziam demasiadas perguntas acerca do Baba do Mundo, chamadas de infiéis, eram usadas num ritual extremamente interessante chamado Roda, roda, carrossel. Este delicioso passatempo era, de entre os rituais de chacina, aquele que mais animava a assistência. Neste ritual, as ervilhas Champistas faziam uma fogueira e construíam um carrossel à volta dela. Depois, começavam a andar à roda em cima de girafas e de outro tipo de animais da savana, simbolizando o Equador e desta forma o limbo entre o Bem e o Mal, enquanto entoavam canções sobre o Amor Divino de Champi. A certa altura, eram despejadas umas quantas ervilhas infiéis na fogueira deixando toda a assistência ao rubro; não só podiam andar de carrossel, como ainda contemplavam carnificina. No final, eram distribuídas dúzias e mais dúzias de pastéis de nata, previamente polvilhados com as cinzas das infiéis, com que as ervilhas Champistas se deliciavam. Nestas actividades sociais, as ervilhas interiorizavam de forma estupenda que não valia a pena pôr em questão a veracidade do Baba do Mundo. E não puseram. E, assim, surgiu a Igreja Champista.

A Igreja Champista, era a expressão institucional da crença na Grande Pinguinada e, em particular, nos factos descritos no Baba do Mundo. Foram produzidos milhares e milhares de cópias do livro, ao ponto de esse se tornar o livro com mais impressões em todo o mundo. Estava em qualquer gaveta de mesinha de cabeceira de hotel. Por toda a parte, não há aldeia que não tenha um Iglu com uma escultura de um pinguim cor-de-rosa fluorescente no topo, com um ovo de ouro maciço sobre os pés, exaltando a dor e o espírito de sacrifício vividos por Champi durante o Inverno em que se formou o universo. Nesses Iglus a temperatura foi, durante séculos, exactamente a mesma que se pensa ter sido a temperatura do Inverno em que Champi viveu: -40ºC. Hoje em dia, para não contribuir para o aquecimento global, e também porque o número de fiéis tem vindo a descer, a temperatura é mantida nos +21ºC. Simbolicamente, a diferença entre -40 e 21 é precisamente 61, que foi o número de dias necessários para Patchi pôr o ovo de onde surgiria todo o universo. Nada era deixado ao acaso na Igreja Champista. As ervilhas reuniam-se nos Iglus pelo menos uma vez por semana e, no seu interior, entoavam cânticos de acasalamento de pinguim imperador, as chamadas grasnadas, com o intuito de chamar Champi e lhe comunicar os seus anseios e preocupações. Essas cerimónias eram designadas por sumecas. Havia sempre uma representante divina da Igreja de Champi a liderar as sumecas, a chamada Pósia. Durante a sumeca, a Pósia seguia um ritual de movimentos e palavras sábias que iam desde a simulação da cópula de Champi e Patchi, à própria teatralização do instante em que Patchi pôs o seu ovo. Todos os momentos relevantes desde o aparecimento de Genitália até ao momento da eclosão do univero de dentro do ovo de Champi estavam presentes nas sumecas.

As sumecas, porém, eram muito mais do que meras celebrações da criação do universo. Eram, acima de tudo, uma forma de as ervilhas se sentirem protegidas, amadas por Champi, e de terem uma luz que as guiasse na vida. As Champistas tinham razões fortes para praticar o Bem. Razões, aliás, bem mais fortes do que o mero facto de se sentirem mal por praticar maus actos e do que sentirem genuína compaixão pelas ervilhas a quem podiam fazer mal. Na realidade, as Champistas sabiam melhor do que ninguém que, no dia da sua morte, as suas almas seriam transportadas até ao Equador e, lá, Champi decidiria se elas iriam para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul. Champi era omnisciente, omnipresente e omnipotente, e iria julgar as suas acções no tão temido juízo final. Não havia maneira de lhe escapar. No Pólo Sul, aguardava-as uma vida contemplativa em que poderiam admirar Champi no seu habitat natural. Se mergulhassem um pouco nas águas em volta, poderiam encontrar as Amorosas, lulas colossais que se enrolam em torno das ervilhas, as abraçam plenas de afecto e as fazem sentir o puro Amor de Champi. Ser-lhes-ia também oferecida, como brinde, uma caneta de feltro especial com que podiam fazer desenhos no gelo. As ervilhas adoravam fazer desenhos no gelo.

Já no Pólo Norte, esperava-as o terror da tortura com gelo acidental. A tortura com gelo acidental era a pior tortura que alguma vez alguém podia ter inventado. Pior do que ouvir debates políticos, deixava a um canto os trabalhos forçados e as queimaduras com fogo por parte de homens muito fortes e vis usando ornamentos com picos. A tortura funcionava da seguinte forma. As ervilhas andavam pelo Pólo Norte a fazer a sua vida. Depois, por vezes, passavam perto delas foquinhas bebé a acartar sacos de cubos de gelo para levar a algum urso polar que queria uma bebida refrescante. (Era comum no Pólo Norte as focas bebé serem escravizadas pelos ursos polares e utilizadas nas actividades mais insignificantes.) Ora, qualquer ervilha que ali estivesse, mesmo uma ervilha que pelas suas más acções tivesse vindo parar ao Pólo Norte, iria sentir alguma compaixão pelas pobres foquinhas. Ainda para mais, elas eram extremamente fofinhas. No momento em que a compaixão estava no seu ponto máximo, uma das focas passava mais perto e deixava escorregar o saco de forma a que os cubos de gelo caíssem todos em cima da ervilha a ser torturada.

A queda do saco de gelo era totalmente propositada e tudo era feito com o único intuito de queimar com gelo a pobre ervilha. Porém, os movimentos da foquinha bebé eram tão bem forjados e feitos de forma tão subtil que nenhum observador poderia concluir objectivamente que tinha havido intenção de magoar. Nem mesmo a própria ervilha magoada. Agravava ainda a tudo isso, o facto de, assim que os cubos de gelo caíam todos, a foquinha bebé se desfazer em desculpas, fazendo a expressão típica de foquinha bebé, e começando a dizer que tudo lhe corria mal, que nunca conseguia fazer nada direito na vida, e que não era justo o patife do urso polar obrigar um animal tão indefeso a fazer trabalhos forçados. Nenhuma ervilha conseguia barafustar com a foquinha. E era isso que tornava tudo mais frustrante e revoltante nesta tortura, aquela necessidade imperiosa de explodir em todas as direcções de imediato castrada pelo medo de magoar alguém indefeso como uma foquinha bebé ternurenta. Principalmente porque a tortura se repetia vezes e vezes sem conta. Ainda assim, de cada vez que acontecia, mesmo que a milésima, era impossível ficar com a impressão de que tinha sido um acto propositado. Era esta a principal razão para não se querer ir parar ao Pólo Norte. Isso, e também, o facto de se ser esporadicamente torturada com a visão de morsas algo que, por si só, já era suficiente para afastar conscientemente qualquer pecado da vida. A somar a tudo isto, ao contrário do que se passava no Pólo Sul, não se recebia qualquer brinde; se apetecesse às ervilhas fazer um desenho no gelo, tinham que usar o próprio corpo e o gelo na pele chegava mesmo a aleijar.

A Igreja Champista sabia, no entanto, como era inato o pecado nas ervilhas. Por isso, tinha previsto mecanismos de absolvição. No final de cada sumeca, as ervilhas tinham sessões individuais com a Pósia do seu Iglu onde dissertavam sobre aquilo que elas pensavam ser os seus pecados da semana. A Pósia ouvia atentamente deliciada todas as atrocidades cometidas e, no final, passava-lhes a receita de absolvição, que não era mais do que um papel cujo único conteúdo era um número a tinta azul num tipo de letra muito apelativo. Quanto pior o pecado, maior o número na receita; o tipo de letra não era influenciado pela gravidade do pecado. Aquele número devia depois traduzir-se em igual número de actos de redenção. Um acto de redenção, também chamado trabalho de sopro, consistia em encher um balão e pendurá-lo à entrada do Iglu. Dizia-se que se o balão caísse, a ervilha não merecia absolvição; se o balão ficasse suspenso no ar, havia forte probabilidade de absolvição. Mas apenas se as ervilhas estivessem verdadeiramente arrependidas dos seus actos.

As primeiras ervilhas a praticarem os actos de redenção, compraram balões ao desbarato num supermercado e encheram-nos à boca. Verificaram envergonhadas que todos os balões que encheram, caíram. Foi então que descobriram que, se comprassem os seus balões, já cheios, numa banca de balões à porta do Iglu, eles ficavam, como que por magia, suspensos. Por isso, todas as ervilhas passaram a comprar os seus balões ali mesmo à saída da sumeca, a uma ervilha que parecia mesmo a Pósia com uma barba postiça e que utilizava um sistema especial de enchimento que envolvia uma bilha de Hélio. Tecnologia celestial e, por isso, cara. Cada balão custava cerca de 5 vagens, o preço de 10 cafés, e, por exemplo, o pecado de ter tido maus pensamentos envolvendo a vizinha do quinto esquerdo acarretava uma receita de absolvição de 10 balões, num total de 50 vagens. O pecado, literalmente, não compensava.

Era estranho que, se as ervilhas sabiam que iriam ter que pagar aqueles valores pelos pecados, os confessassem nas sessões individuais. Era muito mais fácil para elas, simplesmente não falar no assunto e poupar dinheiro para alimentar a sua família. Ainda para mais porque, para além do dinheiro gasto com os balões, as Champistas ofereciam também mensalmente 10% do seu salário à Igreja Champista para manter Champi feliz*. Porém, a Igreja Champista avisava que as ervilhas não deviam mentir acerca dos seus pecados, porque Champi estava em todo o lado e sabia exactamente o que elas andavam a fazer. Se elas não fossem absolvidas, iam para o Pólo Norte para o resto da vida. Aparentemente, isto era suficiente para manter uma sociedade inteira na linha. E manteve. Pelo menos, foi o que me disse uma amiga minha. E ela não é de mentir. Mentir é feio e faz crescer pelos na língua.

* A oferenda mensal das Champistas era dada sob a forma de vagens, deixadas na Bacia Cupular, uma bacia com uma grande cúpula à entrada do Iglu onde estava a Água Primordial, símbolo da fonte de vida. Não era seguramente coincidência que a água fosse simultaneamente a primeira substância a surgir do Vácuo Primordial, sob a forma de uma placa de gelo, e fosse ao mesmo tempo a fonte de todos os nutrientes necessários às ervilhas no seu dia-a-dia. Era tido como certo que era necessário fazer oferendas regulares na Bacia Cupular, caso contrário, Champi iria ficar irado e causaria cataclismos da pior espécie. E mesmo de outras espécies que, embora pudessem não ser a pior, fossem suficientemente más para meter medo.

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