O sistema de atendimento de Kolmicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. Kolmicas é uma ervilha muito inteligente. Sabe muitas coisas e relaciona-as todas de forma exemplar. Por essa razão, as outras ervilhas passavam a vida a fazer-lhe perguntas. Ora eram sobre o caminho mais curto entre dois pontos da cidade, ora sobre efeitos secundários de cremes para peles mais verdes. Kolmicas acerta sempre em todas as perguntas. Desde que tenham uma resposta objectiva. É o seu dom. É esse e classificar informação. Até hoje nunca apareceu uma pergunta à qual não soubesse responder de imediato. As outras ervilhas estariam dispostas a pagar fortunas por aquelas respostas. Chegavam a tentar oferecer-lhe rios de vagens. Kolmicas nunca aceitava. Não o fazia por interesse materialista. Fazia-o apenas na ânsia de encontrar um dia uma pergunta difícil. Uma que lhe desse luta. Uma, quiçá, à qual não soubesse responder.

O tempo foi passando e essa pergunta desejada nunca chegava. As perguntas eram já tantas que era difícil para Kolmicas manter em dia o seu sistema de classificação de informação em caixinhas coloridas. Aos poucos, Kolmicas sentiu-se farta de ser escrava destas perguntas. Quis desistir. Falou com Lustrosa, que tinha sempre a solução perfeita para este tipo de problemas. Lustrosa analisou em detalhe todo o contexto e entregou-lhe um relatório de 400 páginas. Kolmicas leu o relatório atentamente e seguiu todas as instruções à risca.

Começou por implementar um sistema de gestão de filas de espera. Comprou um mostrador digital e um máquina de senhas numeradas. Ao chegar à porta de sua casa, as ervilhas tinham agora que escolher uma e uma só de três senhas: (i) questões envolvendo a palavra "que"; (ii) questões envolvendo a palavra "e"; (iii) outras questões. A senha tinha um número e as ervilhas podiam seguir a chamada no mostrador digital. Cada ervilha podia ler na sua própria senha uma estimativa da hora a que iria ser feito o atendimento. Para tornar o atendimento mais eficiente, antes de serem atendidas por Kolmicas, as ervilhas passavam agora por um sistema de triagem automático. O sistema fazia algumas perguntas às ervilhas para decidir qual o grau de urgência de cada pergunta e também para acelerar o tempo de resposta de Kolmicas. Quando confrontada com a pergunta, Kolmicas saberia já o tópico da pergunta e responderia ainda mais depressa.

As ervilhas adoraram o sistema. Mostrava dedicação por parte de Kolmicas e trazia todo um novo nível de organização ao atendimento. Punha fim aos conhecidos e odiados esquemas para dar o golpe na fila. Se tivessem algum assunto importante a tratar, podiam sair e voltar sem perder a sua vez. Para além disso, na sala de espera podiam fazer passatempos divertidos. Acima de tudo, demostrava o grande empenho de Kolmicas em tornar o atendimento mais eficiente. E as ervilhas gostavam quando outras ervilhas mostravam empenho nelas.

Ao fim de algum tempo algumas ervilhas começaram a ficar insatisfeitas. Umas ficaram algo confusas porque algumas perguntas usavam tanto a palavra "que" como a palavra "e" e era difícil decidir qual era a senha ideal para elas. Outras sentiam que o sistema de triagem automático fazia perguntas demasiado intrusivas, como o número de vezes que elas rebolavam nos lençóis antes de adormecer. Mesmo estando garantida pela lei a protecção dos seus dados pessoais, as ervilhas sentiram-se algo expostas. Elas confiavam em Kolmicas, mas alguma empresa mal intencionada podia encontrar forma de cruzar esses dados com a sua base de dados e se havia coisa que as ervilhas não podiam aceitar era um mundo sem privacidade. Outras ainda queixaram-se de que não havia um espaço onde pudessem deixar sugestões ou apresentar reclamações. Outras, por fim, não gostavam do tipo de passatempos na sala de espera.

Para fazer face a todos esses problemas Kolmicas criou um número de telefone gratuito de Apoio à Ervilha Consumidora (AEC) onde as ervilhas podiam, não só esclarecer todas as suas dúvidas, como deixar os seus comentários e sugestões. O atendimento telefónico era completamente automático através de um sistema de menus. Era algo que as ervilhas adoravam. Não corriam o risco de falar com alguma ervilha menos simpática. Bastava carregar nos dígitos do seu telefone para escolher as opções de cada menu de atendimento. Se não estivessem contentes com algum menu, podiam carregar na tecla asterisco (*) e personalizar a ordem das opções no menu e até mesmo o conteúdo de cada opção. Em qualquer altura, podiam também pedir para falar com um operador que ouvia todas as suas críticas e dizia numa voz grave e sensual expressões reconfortantes como "compreendo perfeitamente", "já tivémos outras queixas nesse sentido e estamos a trabalhar arduamente para resolver precisamente esse problema". No final o operador dizia sempre "mais alguma coisa em que possa ser útil?" e só depois -- e independentemente da resposta das ervilhas -- desligava. Se estivessem descontentes com o AEC, podiam carregar cardinal (#) a qualquer instante e deixar gravada a sua queixa.

Algumas ervilhas gostaram tanto do sistema que passavam horas e horas a personalizar os menus do AEC. Alteravam a ordem das opções, mudavam a voz do atendimento automático, deixavam sugestões de melhoramento. Sentiam-se bem por todas as suas preferências ficarem guardadas. Era realmente um atendimento personalizado e isso fazia-as sentirem-se importantes. Outras usavam-no como um sistema de terapia pós-laboral, carregando descontroladamente na tecla cardinal e deixando gravações aos berros de tudo o que lhes tinha corrido mal durante o dia.

A utilização do AEC passou a representar praticamente 100% de toda a operação do serviço de perguntas e respostas de Kolmicas. Na realidade apenas uma ervilha por mês chegava efectivamente a fazer uma pergunta. Essa ervilha era trazida até ao escritório de Kolmicas onde um holograma indistinguível de Kolmicas lhe dizia: "Essa é uma questão profunda. Terei que pensar e responder depois. O sistema tem os seus detalhes pessoais. Mando-lhe a resposta para a morada de casa ou por telefone". Invariavelmente a resposta perdia-se depois no intrincado sistema organizacional. Felizmente a ervilha podia telefonar para o número de AEC e requerer o seu reenvio. Na maior parte dos casos, entre alterações de menus e mudanças da voz de atendimento, a ervilha acabava por se esquecer da queixa que ia fazer. E mesmo quando as ervilhas eram perseverantes, acabava por passar tanto tempo que a resposta já não era necessária. Como tudo era automático, Kolmicas podia dedicar-se por inteiro à classificação da informação, a sua verdadeira paixão. Acima de tudo, sentia-se bem consigo mesma por poder disponibilizar um serviço útil e eficiente à comunidade.

Lustrosa e o seu lindo casaco

Conheço uma ervilha. Chama-se Lustrosa. Lustrosa é muito limpinha. Quando era pequena andava sempre com uma manta. Levava-a para todo o lado. Era verde. A manta. Lustrosa tem um casaco. É muito leve. O casaco. Nem todas as ervilhas acham o seu casaco bonito, mas Lustrosa esforça-se por que o casaco que usa seja, a cada momento, considerado bonito pelo maior número de ervilhas possível. Por isso, muda frequentemente de casaco e faz estudos de opinião. Não só porque a moda é efémera, mas também para experimentar novos conceitos de estética.

As outras ervilhas não se apercebem das mudanças pensadas de casaco. Se se apercebessem iriam pensar que Lustrosa era demasiado preocupada com a opinião das outras ervilhas. Não poderia haver outra razão para dar tanta importância à cor e ao feitio do seu casaco. Porém, Lustrosa nunca se preocupou com a opinião das outras ervilhas. Não no sentido habitual, de ser insegura e precisar da aprovação do mundo. Lustrosa sabia que a opinião das outras ervilhas sobre o seu casaco era crucial para conseguir o que queria noutros campos da vida. Era essa a sua motivação.

Lustrosa guiava-se pelo moto: "Dá água a uma ervilha e matarás a sua sede; ensina-a a drenar canais e perderás o teu ganha-pão." Era por isso que Lustrosa não partilhava as suas Teorias do Casaco com ninguém. Preferia esperar que lhe pedissem ajuda com algum problema específico e apresentar a sua solução sem nunca explicar as suas escolhas. Algumas ervilhas achavam que ela era uma egoísta. Outras percebiam que o segredo era a alma do negócio. Outras ainda, não tinham opinião formada no assunto. Eram as mesmas que se abstinham em todas as eleições legislativas. Exactamente as mesmas que Lustrosa, quando ao serviço de Rogilas, tanto se esforçava por convencer a desenhar uma letra X num pedaço de papel. Elas, burras de todo, nem isso conseguiam fazer. Era por isso que Lustrosa tanto se esforçava por lhes ensinar o alfabeto. Felizmente elas nunca o aprendiam. Só assim Lustrosa era novamente contratada por Rogilas. Ano após ano. Ano após ano.

Kolmicas e as caixinhas coloridas

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. É obcecada por colibris de penas tufadas. Por colibris de penas tufadas e por informação. Assina duas revistas semanais de ciência, uma de economia e três de generalidades, dois semanários e um diário, e ainda uma revista de geografia que lhe explica, por exemplo, os rituais de acasalamento dos urubus. Toda esta informação aliciante totaliza cerca de 1200 páginas todas as semanas.

Tendo em conta que em cada dia Kolmicas trabalha oito horas e dorme outras oito, mesmo que não fizesse mais nada, teria que ler cerca de duas páginas e meia por minuto para absorver toda aquela informação, o que é impossível. Felizmente, na realidade, Kolmicas não precisa de ler todas as 1200 páginas e o tempo que tem seria exactamente o necessário para ler tudo o que é relevante.

Porém, Kolmicas não se contenta apenas com ler toda aquela informação de forma linear e criou todo um sistema inovador. Para facilitar a absorção de informação, Kolmicas gosta de começar por estruturar aquele conjunto caótico de informação. Então, Kolmicas utiliza o tempo, não a ler todas aquelas fontes de informação, mas sim a folheá-las para seleccionar o que é interessante e o que é irrelevante. As coisas interessantes coloca-as numa caixinha azul com um mocho amarelo desenhado, para ler com atenção mais tarde. As irrelevantes coloca-as numa caixinha vermelha com um veículo de triturar lixo desenhado, para ler apenas se lhe sobrar tempo depois de ler as coisas da caixinha azul.

Infelizmente, quando acaba de organizar todos os seus recortes e vai efectivamente começar a ler o primeiro recorte, a semana está praticamente a acabar. Mas isso não é muito grave, porque nessa altura ela junta as sete caixinhas azuis com mochos amarelos e armazena-as numa divisão da casa dedicada apenas a guardar as coisas interessantes. As sete caixinhas vermelhas com veículos de triturar lixo são colocadas na arrecadação. Com o tempo adicional de pôr as etiquetas correctas em cada caixinha e o tempo de ir comprar novas catorze caixinhas, não lhe sobra tempo para mais nada. Claro que isso não a incomoda porque Kolmicas sabe que quando tiver tempo irá pegar naqueles recortes e ler os mais importantes. E mesmo que não o faça, pode haver alguma altura em que lhe apeteça ler informação interessante e bastará abrir uma qualquer das caixinhas azuis escolhida ao acaso.

Em semanas mais atarefadas, Kolmicas por vezes atrasa-se no processo de catalogação da informação e tornam-se necessárias medidas de emergência. Kolmicas detesta essas medidas de emergência, mas há alturas em que se tornam imprescindíveis. Uma coisa que ela não aceitaria, seria deitar fora jornais ou revistas que tinham custado tanto dinheiro. Numa dessas situações extremas, Kolmicas chegou a acumular quase metade das revistas e jornais de duas semanas sem serem analisados. Teve que comprar uma caixa preta, na qual desenhou uma borboleta cor-de-rosa com um ponto de interrogação em cada asa, e onde colocou em monte todos os jornais que não tinham sido catalogados em azul ou vermelho. Depois pôs essa caixa por baixo da sua cama, porque não queria sequer ver essa parte negra da sua vida.

Todo este processo de estruturação de informação requer muito tempo. Por essa razão Kolmicas não tem qualquer vida social. Sempre que é convidada para algum evento, Kolmicas declina. Sente-se de facto muito tentada a ir, mas invade-a imediatamente uma tensão enorme. Só de pensar na quantidade de caixas pretas que daí adviriam e em como isso poderia levantar a sua cama num dos lados e pô-la a dormir inclinada, fica com calafrios. Kolmicas detesta dormir inclinada. Fá-la ter sonhos em que parece que está sempre a cair mas nunca chega realmente a cair, e o descanso não é o mesmo.

Um dia, quando Kolmicas estava no trabalho, a sua casa ardeu. Não se safou nada. Excepto a arrecadação, que é na cave do prédio. Os peritos pirotécnicos concluíram que devia ter sido um curto-circuito numa das tomadas do quarto de dormir. Disseram que se não fosse todo aquele papel acumulado debaixo da cama, provavelmente nada disso teria acontecido. Kolmicas culpou-se para o resto da vida. Sabia que se tivesse sido diligente e estruturado todas as fontes de informação atempadamente, nada daquilo teria acontecido. Ficou triste. Porém, aprendeu uma lição: não se deve procrastinar coisas importantes. Prometeu a si própria que, mesmo que isso implicasse às vezes não jantar ou até falar menos tempo ao telefone com a melhor amiga, não ia deixar um recorte que fosse por catalogar. A sua diligência foi aparentemente recompesada. Até à data, nunca mais houve incêndio algum na sua casa.

Porquina e o Índice de Covas Corporais

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Aliás, chamava-se. Já morreu. Foi vítima da gripe do grão-de-bico. Porquina teve sempre uma vida complicada. Como todas as outras ervilhas, aos seis anos entrou para a escola. Já era uma menina grande. Pelo menos, foi o que a mãe lhe disse quando a deixou sozinha e em lágrimas à porta da escola.

Ao chegar, viu um grupo de ervilhas da idade dela. Pareciam simpáticas e Porquina, educada, disse-lhes olá. Precisava mesmo de encontrar bons amigos para ultrapassar aquele trauma de entrar para a escola. Uma delas apontou-lhe o dedo e começou a gritar "Esburacada! Esburacada!". Porquina sabia que o seu Índice de Covas Corporais* (ICC) estava acima do limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde das Ervilhas (OMSE). E não convivia particularmente bem com esse facto. Mas era escusado apontarem-lhe assim o dedo. Ela sabia que isso se chamava discriminação e que isso era algo proibido por lei. Virou-se para a ervilha que lhe apontou o dedo e disse que se ele não gostava, havia quem gostasse. Depois disso todas as outras 11 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Esburacada! Esburacada!".

Porquina afastou-se do grupo e foi ter com um outro grupo de ervilhas. Todas elas pareciam ter um ICC muito superior ao seu. Mas isso não a incomodava. Fazia sentir-se bem consigo mesma, até. Mesmo sabendo que uma ervilha não se media pelo seu número de covas. Algumas raízes de conversa depois apareceu uma outra ervilha que disse olá. Era muito clarinha. De um verde celestial. Uma delas apontou-lhe o dedo e gritou "Branquelas! Branquelas!". Ela respondeu que era branquelas e que tinha muito orgulho em sê-lo. Que ser branquelas não era defeito nenhum e que, mesmo de diferentes variedades, por dentro, as ervilhas eram todas iguais. Depois disso todas as outras 5 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Branquelas! Branquelas!". A ervilha foi-se embora com ar corajoso. Mais ao longe, desatou a chorar.

Porquina deixou de se sentir bem naquele grupo. Saíu do grupo e foi ter com a ervilha que estava a chorar. Sentaram-se ao lado uma da outra num banco da escola. Era frio o banco. Ficaram a olhar o infinito por minutos a partilhar o silêncio cúmplice. Ainda de olhos molhados, a amiga olhou Porquina.

- A tua roupa é ridícula -- disse a amiga antes de se levantar e se afastar.

Porquina viu-a ir-se embora e voltou a olhar o infinito. A sineta da escola tocou. Levantou-se e foi para a sua primeira aula.


* O Índice de Covas Corporais de uma ervilha é a razão entre o número de covas e a superfície total da ervilha ao quadrado. É utlizado clinicamente para medir quão proporcional é uma ervilha. Quando muito acima dos valores médios, algumas ervilhas pagam fortunas por intervenções cirúrgicas designadas por covosucções em que grande parte das covas lhes é retirada.

Robirta e o cheiro da paixão

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Dispensa apresentações. Robirta apaixonou-se. Sentiu-se a pairar sobre qualquer coisa linda e mágica e escreveu. Escreveu uma música onde disserta sobre aquilo a que decidiu chamar O Cheiro da Paixão.



O CHEIRO DA PAIXÃO
Robirta

Só quero ser feliz
Procuro emoção
Trazes ao meu nariz
O cheiro da paixão

Na tua pele tão verde
Um doce travo a DDT
De ti eu tenho sede
Beija-me e logo se vê

Deixas o meu corpo a voar
A pairar sobre os campos fertilizados

Só queres ser feliz
Procuras emoção
E eu levo ao teu nariz
O cheiro da paixão

Na minha pele mais clara
Uma covinha que te prende
Tua atracção dispara
Agarras-me e partimos sem mente

Deixas o meu corpo a voar
A pairar sobre os campos fertilizados

O legado de Porquina

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Tem umas meias amarelas. Porquina acordou cheia de dores no corpo. Tinha uma gripe. Ao segundo dia de mal estar sentiu-se tão mal que foi ao médico. O médico disse-lhe que era gripe e que ela não devia abusar do sistema nacional de saúde com mariquices. Porquina voltou para casa. Ao fim de dois dias estava a sentir-se tão mal que voltou ao médico. Era o mesmo médico. Disse-lhe que era um vírus de gripe muito raro. A gripe do grão-de-bico. Disse-lhe que ela devia ter ido lá mais cedo porque aquele tipo de gripe é melhor tratar-se aquando dos primeiros sintomas. No dia seguinte Porquina morreu.

Ao fim de alguns dias, uma outra ervilha ficou com febre. Foi ao médico. Chamava-se Inácia. A ervilha. O médico disse que precisava de lhe fazer um monte de testes. Disse-lhe que fez muito bem em vir no início da doença porque podia-se atacar o problema desde cedo. Inácia ficou internada para o dia seguinte. Meteram-lhe tubos em tudo o que é sítio. Era uma boa constipação. Foi para casa igual ao que vinha. Talvez com mais dores. As camas eram duras. Pelo menos a dela.

Duas semanas exactas depois da morte de Porquina, morreram mais 31 ervilhas. Foi nesse dia que surgiu a expressão "está aqui um 31". Ainda é usada nos nossos dias. A autópsia das 31 ervilhas revelou que 29 deles tinham morrido de gripe do grão-de-bico. Das outras duas, uma tinha sido por falta de água e a segunda por lesões sofridas durante a própria autópsia. Juntamente com Porquina, o total de mortes por gripe do grão-de-bico ia já em 30. A Organização Mundial da Saúde das Ervilhas (OMSE) elevou o grau de alerta a nível mundial para 5. Ninguém sabia o que isso significava exactamente. Mas era mau.

Ao fim de algumas semanas, todas as ervilhas do mundo usavam uma máscara. Grande parte delas já não viajava para fora do seu país e restringia as suas deslocações a um mínimo. A OMSE forçou as pessoas a não saírem de casa durante vários dias. As escolas fecharam, as empresas pararam. Apenas os serviços básicos ficaram em funcionamento. As ervilhas começaram a ficar entediadas. Nem televisão podiam ver, já que as pessoas que fazem a televisão funcionar também ficavam em casa. A internet fechou. Os níveis de tédio começaram a roçar limites inimagináveis. De repente, e ao mesmo tempo em todas as casas, as ervilhas adormeceram. Durante dois anos. Quando acordaram o mundo era perfeito.

Camola e Ambrósio

Conheço uma ervilha. Chama-se Camola. Camola comprou um PC. Trouxe-o para casa. Decidiu chamar-lhe Ambrósio. Camola considerava-se uma ervilha decidida e ervilha do seu nariz. Ao contrário de Xamilas, não ia deixar o mundo tomar qualquer decisão por ela. Queria ser ela a escolher o sistema operativo do Ambrósio. Ligou-o e esperou.

Em pânico descobriu que o mundo já tinha escolhido por ela. Era Uindôs. Tentou acalmar-se. Bebeu um copo de água com açúcar. Fitou o ecrã. Esperou, esperou, esperou. Voltou a esperar. Sempre aquelas janelas às cores no ecrã. Esperou. Mexeu o rato. O ecrã ficou todo azul. Mexeu o rato novamente. Já nada. Desligou-o.

Camola não gostava de fazer o que lhe mandavam. Menos ainda, de fazer o que era suposto. Decidiu que se aquilo era o que o mundo tinha decidido por ela, sem sequer a consultar, era precisamente outra coisa qualquer o que ela queria. Escolheu Pinux. Viu o tamanho das instruções de instalação e desistiu. Depois lembrou-se que ela não era ervilha de desistir. Prosseguiu. Durante quatro horas. Operação concluída.

Decidiu então relaxar ouvindo um dos seus empolgantes CDs de Fibra Pesada. Queria ouvir Robirta. Pôs o CD, nada. Leu o manual, nada. Viu catorze fóruns na internet, percebeu mais qualquer coisa. Depois de um conjunto de comandos, clicou no CD e abriu-se um programa onde se lia "Vou pegar fogo às tuas vagens", o título da primeira música do seu CD. Ficou contente. Era claramente um bom prenúncio. Esperou.

Já quarenta segundos música adentro e, aos ouvidos, nada. Algo se passava. Verificou o volume de som, fez tudo o que uma ervilha razoável faria. Nada. Voltou aos fóruns. Depois de 29 entradas de fórum, instalou uma biblioteca de som especial para CDs. Mais 85 entradas de fórum e uns comandos especiais numa coisa chamada Terminal, e apareceu uma lista infindável de símbolos crípticos no ecrã a uma velocidade incrível. Parecia que estava naqueles filmes em que ervilhas muito espertas têm que quebrar códigos de bancos e assim. Sentiu-se especial. No final desses símbolos, contudo, apareceu uma mensagem de erro. Contemplou por seis segundos o tecto branco.

Toda aquela dança, aquele jogo de carregar em teclas, a entusiasmava. E, com aquele jogo, o que ia mesmo bem era uma música, pensou. Após mais alguns fóruns, conseguiu ejectar o CD, pegou nele e colocou-o no velho leitor que tinha na secretária. Carregou no botão Play. Fantástica aquela Robirta. Música pujante, cheia de energia. Atirou o Ambrósio pela janela. Não deu conta, mas o Ambrósio caíu em cima de um pombo. O pombo ficou espalmado no cimento. Nem piou.

Garélia, Efigélia e os enigmas de Picucha

Conheço uma ervilha. Chama-se Garélia. Garélia tem uma empresa. A empresa faz sabonetes. Essa empresa precisa de recrutar ervilhas para trabalhar. É melhor recrutar boas ervilhas do que más ervilhas. Por isso, Garélia paga uma fortuna a uma outra empresa para lhe descobrir as ervilhas boas.

Conheço uma outra ervilha. Chama-se Efigélia. Efigélia também tem uma empresa. Essa empresa também faz sabonetes. Pelas mesmas razões, Efigélia também paga uma fortuna a uma empresa para descobrir as ervilhas promissoras.

Efigélia e Garélia vivem numa cidade pequena. Não necessariamente em tamanho, mais em mentalidade. Efigélia não quer que Garélia saiba os seus planos de recrutamento. Por isso não pode pôr anúncios com o nome da sua empresa de sabonetes. Daí que use a tal empresa para recrutar. Mas também não quer que Garélia descubra qual a empresa que utiliza. Garélia podia tentar sabotar o processo de recrutamento. Ou ficar a saber todos os planos de expansão que Efigélia tem para a empresa.

Efigélia inventou então todo um sistema rebuscado. Os anúncios são postos pela empresa de recrutamento. Porém, em lado nenhum aparece o nome da empresa de sabonetes. Genial. A questão é que quem concorre a um emprego gosta de saber aquilo a que está a concorrer. Então a empresa de recrutamento deixa pequenas pistas sobre a empresa de sabonetes. Apenas os mais astutos conseguem efectivamente perceber qual a empresa de sabonetes. É uma espécie de jogo de investigação.

Picucha tem um curso superior em sabonetes. Um daqueles antes do acordo de Bolonha. Cinco anos, um curso a sério. Picucha está há mais de seis meses há procura de emprego. Foi despedida da empresa onde antes trabalhava juntamente com grande parte dos trabalhadores. Com a crise, a procura de sabonetes caíu 83%. Daí o despedimento. Picucha era uma ervilha diligente e trabalhadora. O problema foi a crise. Picucha folheia todos os dias o jornal à procura de qualquer coisa. Está desesperada. Precisa de pagar a hipoteca do T1 nos subúrbios.

Picucha gosta de resolver enigmas. As palavras cruzadas são para Picucha uma brincadeira de crianças. Ela gosta de desafios a sério. Daí que esteja a adorar estes seis meses de procura de emprego. Pode jogar o tal jogo de investigação a tempo inteiro, sem ter remorsos por estar a brincar, ou a fazer aquilo de que gosta. Um dos enigmas mais interessante que Picucha encontrou esta semana é o seguinte:
Empresa

Importante empresa de sabonetes. Líder de mercado. Renome internacional. Escritórios espalhados pelo mundo, principalmente Europa e América do Norte. Onde, exactamente, não podemos dizer. Mas são sítios bons. Começa com 'P, tem várias letras e acaba em 'X'.

Oferta

Muito boa. Nomeadamente em diversos aspectos. Salário varia com a experiência. Maior experiência, melhor salário; menor experiência, pior salário. Mas muito bom, o salário. A sério.

Localização

Fica numa das duas cidades principais do nosso país, mas não vamos dizer qual. E é perto do centro. Portanto, boa em termos de transportes. Se fosse numa dessas cidades seria assim, tipo, avenidas novas, linha amarela ou azul ou assim. Se fosse na outra seria, tipo, perto de uma avenida importante que invoca a primeira guerra mundial.
Picucha é muito astuta na resolução destes problemas. Garélia apercebeu-se disso e telefonou a Picucha. Foi um telefonema da parte da manhã. Hoje em dia Picucha trabalha na empresa de Garélia a fazer espionagem industrial no campo dos recursos humanos. Passa os dias a ler destes anúncios e a usar técnicas avançadas de raciocínio para determinar a empresa responsável pelo anúncio. Faz aquilo de que mais gosta. É feliz.

A Fibra Pesada de Robirta

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Faz músicas. Depois do seu grande sucesso Eu Não Quero Ir para a Sopa, Robirta fez uma primeira incursão em Fibra Pesada. É um estilo como outro qualquer. Só que tem muita energia. Principalmente para uma ervilha. Nos agudos chego a ter medo que ela rebente. Até agora nunca rebentou. É ver.

A nova música aborda o tema das injustiças sociais. De como certas pessoas esbanjam vagens em coisas fúteis enquanto outros nada têm. Mas vou parar por aqui. Robirta não gosta que se explique as músicas que faz. Diz que é um insulto à inteligência dos fãs. A música chama-se Vou Pegar Fogo às tuas Vagens.



VOU PEGAR FOGO ÀS TUAS VAGENS
Robirta

(Na na na na na)

As vagens geram assimetria

Não estou disposta a pactuar
Com uma existência material e fria
Por isso estou-te a avisar

Vou pegar fogo às tuas vagens
Vou pegar fogo às tuas vagens
Vou pegar fogo às tuas vagens
(Vagens)

Sem vagens já não vais comprar champagne (champagne)
Nem férias nas ilhas Phuket (Phuket)
Vais deixar que a depressão se
entranhe (entranhe)
E só então vais perceber porquê: (porquê)

Vou pegar fogo às tuas vagens
Vou pegar fogo
às
tuas vagens
Vou pegar fogo às tuas vagens
(Vagens)

[Risota tradicional das ervilhas de Urdiche]

Kolmicas e o fascinante idioma de Urdiche

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. Kolmicas era uma ervilha muito especial. Tinha umas calças de ganga azuis. Tinha também a particularidade de ter características quase impossíveis de descrever por palavras. Excepto, talvez, dizendo que elas eram quase impossíveis de descrever por palavras. Algumas delas podia ser facilmente descritas em Batongo, um código de tambores da floresta Amazila, ou em Ploc-ploc, uma sofisticada linguagem de estalidos de boca de Urdiche, uma ilha quase deserta no meio do oceano Pacilis. Mas dificilmente por palavras. Era precisamente esta aparente e intrigante discrepância entre a expressividade das linguagens que entretinham Kolmicas dia e noite. Era a sua ocupação a tempo inteiro. O seu sustento material e espiritual.

Algumas características de Kolmicas eram mesmo muito difícieis de descrever por palavras. E, mesmo quando descritas por palavras, a descrição nunca era suficientemente precisa. Aliás, aquela sua característica peculiar de, em certos momentos objectivamente definidos que envolviam uma combinação de factores relacionados com o programa de televisão, o nível de pluviosidade, a soma dos dígitos do dia do mês, entre outros, virar a cabeça para o lado, ligeiramente inclinada para cima, olhos semi-cerrados, mas mais abertos do que fechados, fitando o céu ou o tecto ou o que quer que fosse que a sua cabeça focava quando se inclinava para cima e para o lado daquela forma específica, sentir um fluxo de ar subir pelo esófago para se perder a meio do caminho entre sonoros roncares involuntários, e ponderar por alguns instantes o profundo significado metafísico da existência de certas entidades semânticas serem tão difíceis de expressar em certas linguagens e tão sucintas noutras, caía precisamente nessa classe de características.

Essa sua característica, nos termos exactos acima descritos, era facilmente expressável em Ploc-ploc, a sofisticada linguagem de Urdiche. Bastavam dois estalidos. E se não tivesse lugar qualquer tipo de fluxo de ar no esófago, bastava um estalido. Era, obviamente, uma linguagem bastante sucinta e prática. Claro que não há rosas sem espinhos, a menos que os cortemos claro, e esta facilidade de expressão vinha a um preço. Por um lado, havia alguma ambiguidade na linguagem. Por exemplo, esses mesmos dois estalidos, no mesmo exacto tom e ritmo, podiam também significar "Opá, sai da frente e deixa ver o jogo. Já me estou a passar. É que já te levantaste para aí umas 19 vezes. Mais uma dessas e apanhas pancada à séria. À séria ou a sério? Olha, apanhas das boas!". Curiosamente, os mesmos exactos estalidos podiam ser também usados para dizer, nestes precisos termos, "Caramba! Parece impossível. Uma ervilha acabada de casar e vai assim falecer sem dar cavaco a ninguém. É verdade que já tinha 82 anos e que era a sua oitava esposa mas, mesmo assim, não é razoável falecer-se nestas circunstâncias. Era muito boa ervilha. Se ainda fosse o caso de ter roubado alguma coisa lá do café do Sr Vitor, algum pacote de amendoins. Mas assim parece-me mesmo uma coisa sem jeito".



Claro que este problema da ambiguidade era de fácil resolução. Bastava utilizar o contexto. Quase nunca falhava. O problema era quando havia o que as ervilhas de Urdiche chamavam Coincidências Não Fortuitas. Por exemplo, se estivéssemos a ver um jogo com uma ervilha amiga que tivesse acabado de inclinar a cabeça para o lado e para cima e de fazer uns barulhos esquisitos com a barriga e, como é tão típico nos dias de hoje, tivesse falecido uma ervilha de 82 anos acabado de casar pela oitava vez, seria difícil não gerar a confusão quando tentássemos oferecer pancada à ervilha irrequieta que à nossa frente se tivesse levantado e não nos estivesse a deixar ver o jogo. Esses momentos eram muito raros e eram descritos nos livros sagrados de Urdiche como prenúncios do fim do mundo como Urdiche o conhecia. Dizia-se que todas as ervilhas que assistissem a um desses momentos eram transformadas instantaneamente em puré.

Outro problema aparente é que, por exemplo, a palavra "sim" requeria cerca de 87 estalidos. E eram num tom e com um ritmo tão específicos que a maior parte dos habitantes de Urdiche não chegava a conseguir usar essa palavra. E os poucos que a conseguiam efectivamente aprender não podiam fazer grande coisa com esse novo conhecimento dado. Praticamente ninguém ia perceber o que eles queriam dizer porque não sabiam dizer "sim". E mesmo que dissessem a alguém que soubesse exactamente a sequência de 87 estalidos, era sempre muito arriscado fazê-lo. A verdade é que os primeiros 86 estalidos da palavra "sim" queriam também dizer "Hoje de manhã dormi com a tua mulher; ela sabe-la toda!" e o 87º estalido deve ser dito apenas 7 segundos depois dos primeiros 86. Ora aquele curto iato entre os dois últimos estalidos parece sempre uma eternidade em que se vê toda a vida a passar diante dos olhos e rezamos para ir para o Céu das Ervilhas e não há muita ervilha com tomates para passar por isso.



Enquanto a palavra "sim" estava envolta em todo este conjunto fascinante de complicações, já à palavra "não" bastava um estalido e meio. Embora possa parecer problemático, na realidade não se tratava de um problema efectivo desta população. Era antes, como em todas as linguagens, um reflexo da personalidade daquele povo como um todo. A verdade é que as ervilhas de Urdiche eram muito atentas aos pormenores. Como aliás se percebe facilmente analisando não só as frases que se conseguem dizer com dois estalidos, como também a especificidade das nuances de tons e ritmos que se podem dar a cada estalido. Como ervilhas muito atentas aos pormenores que eram, era difícil estarem de completo acordo sobre o que quer que fosse. Eram aquilo que alguns designariam por picuinhas. Elas não gostavam desta designação. Diziam-se, antes, ervilhas muito focadas. Sendo ervilhas assim tão focadas, os 87 estalidos da palavra "sim" não eram qualquer obstáculo ao seu dia-a-dia. Elas raramente a usavam. Tinham outras expressões como "Pois, é possível, mas não creio muito." que se diziam em meros três ou quatro estalidos. Kolmicas gostava de contemplar este tipo de coisas fascinantes. Ficava absorta num mundo só dela e perdia a noção do tempo. Mas, por acaso, desta vez, não. Eram três da tarde e ela tinha um sítio importante onde estar. Por isso, saíu de casa.

Alipas e a ratazana almiscarada

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Um dia saíu de casa e fechou a porta. Fechou-a já depois de estar cá fora porque queria sair de casa. Se a fechasse quando ainda dentro de casa, teria que voltar a abri-la para sair. O importante é que saíu de casa e fechou a porta. Fê-lo nem com mais nem com menos força do que havia feito das 481 vezes anteriores. Morava numa cave. Subiu os mesmos 11 degraus de sempre.

Era muito cedo. Contemplou a rua deserta. Ou quase deserta. Um gato rosa-fluorescente pairava airoso a um metro do chão. Tinha dois chapéus pretos de mágico, um em cima do outro, e descascava amendoins. Mas não os comia. Aos amendoins. Apenas os descascava. Descascava-os à cadência exacta de um amendoim por segundo. Ao fim de exactos 3601 amendoins, deitava vapor pelos ouvidos, punha a língua de fora e dizia: "Lá se foi outra hora. Praticamente uma hora, vá. Talvez um pouco mais, vá. Mas não muito. Olha, cheira a feldspato triclínico.". Mas fazia-o num dialecto africano muito antigo. Tão antigo que só ele e uma ratazana almiscarada da Namíbia o conheciam. Não que fossem particularmente fluentes. Sabiam apenas as expressões mais úteis.

A tal ratazana almiscarada da Namíbia era famosíssima em toda a África subsaariana. Tornou-se uma celebridade no dia em que, após engolir espinafres fritos com demasiado alho, ficou perpetuamente em trabalho de parto. "Faça força, muita força.", gritava a enfermeira em desespero. A médica de serviço informou a família de que se tratava de um caso raríssimo. Apenas tinha sido observado uma vez no passado e há mais de duzentos anos. E tinha sido por uma coruja de lábios grossos com um anel de diamante. Felizmente a coruja foi passando a informação de geração em geração para que chegasse aos nossos dias. Essa coruja era obcecada com a perda de informação. A perda de informação era para ela como a sopa de ervilha. Mexia com as suas entranhas.

Era muito desagradável estar permanentemente em trabalho de parto. Ainda para mais para uma ratazana almiscarada. Tinha que andar sempre com a cama e o hospital atrás. Mas, pior ainda, não só tinha todos os sintomas do parto, como tinha adquirido uma disfunção que não lhe permitia interiorizar que o trabalho de parto era perpétuo. Na sua pobre ingenuidade, a ratazana fazia força, sempre muita força, horas e horas a fio, porque acreditava genuinamente que estava em trabalho de parto. E estava.

Curiosamente, e isto sim tornava-a num caso de extenso estudo na comunidade médica, a disfunção que a tornava incapaz de perceber que o parto era perpétuo, propagava-se a todos os que estivessem num raio de dois metros. Todos à sua volta estavam verdadeiramente convencidos de que o parto estava, a cada momento, iminente. Isso explicava a azáfama constante dos médicos e das enfermeiras que a cada instante seguiam todos os procedimentos clínicos necessários para trazer ao mundo uma ratazana bebé saudável.

Por vezes um dos membros da equipa médica afastava-se e mal saía daquele raio de dois metros percebia que tudo aquilo era uma fantochada. Mas quando tentava avisar os colegas eles respondiam sempre "Epá, se queres falar, vem cá mais perto.". Outras vezes, passava um homenzinho mal encarado e, do lado de fora da sala de partos com a porta entreaberta, dizia insistentemente "Ah, isso é fita! A gaja que vá para casa!". Mas ninguém lhe dava ouvidos porque esse homenzinho era feio e acreditava que a Lua não existia e que a Terra era um paralelepípedo com fitinhas amarelas penduradas. Ah, sim, e era ateu.

Robirta da voz estonteante e a sua fã incondicional

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Robirta gosta muito de fazer gravações das suas composições musicais. Passa os dias a ouvi-las. Aliás, não ouve mais nada. Diz que não quer poluir a sua experiência auditiva com influências externas. Não quer perder o seu interior mais profundo.

Muita gente considera a sua voz fascinante. Outros tantos abominam-na. A sua voz é um divisor de multidões: ou se ama, ou se detesta. Há sempre, claro, os que não a conhecem e também os que, conhecendo, não têm uma opinião formada sobre o assunto. É gente estúpida.

Robirta decidiu partilhar com o mundo a sua música favorita, a que chamou Eu não quero ir para a sopa. Criou um ficheiro MP3 e pô-lo à disposição num torrent na internet. Decidiu chamar-lhe "Crazy_Aerosmith.mp3". Há quem diga que Robirta escolhe os nomes dos ficheiros a dedo só para ter muitos downloads -- ao fim de dois dias tinha tido cerca de 500 mil downloads o que é inédito para uma ervilha até então desconhecida -- mas isso é totalmente falso. Fá-lo porque é uma verdadeira crente no Princípio da Ordem Natural* e julga que para alguém encontrar a sua música na internet tem que ser por uma razão muito forte. Ora, com este nome, a probabilidade é mínima. Ninguém se iria lembrar de procurar o Eu não quero ir para a sopa de Robirta escrevendo "Crazy" e "Aerosmith" no campo de procura.



EU NÃO QUERO IR PARA A SOPA
Robirta

Os ventos sopram de feição
Rapam as vagens em segredo
Não quero ser a refeição
Morrem ervilhas só de medo

Eu não quero ir para a sopa
Eu não quero ir para a sopa

Pirotas é uma ervilha que não conheço. Nem ela me conhece a mim. Robirta também não conhece Pirotas, mas Pirotas é grande fã da produção artística de Robirta. É tão fã que conhece todas as manias e segredos de Robirta. Em particular, está a par do grande fetiche de Robirta. O de pôr sempre as suas produções artísticas em ficheiros com nomes que, à primeira vista, parecem de outros artistas. Pirotas passa então os seus dias a fazer downloads de ficheiros MP3 com nomes de artistas conhecidos. Chega a puxar mais de 200 músicas por dia. Passa dias e dias nisto, por vezes meses seguidos, até conseguir encontrar uma música que seja de Robirta. Mas, quando encontra, essa descoberta fascinante compensa por todos aqueles dias deitados ao lixo.

Rogilas é a primeira-ministra da República Inomesa. É tia de Baquicas. Convenceu o parlamento do seu país a passar uma lei que proíbe os downloads de músicas protegidas por direitos de autor. A pena por cometer este crime é pagar ao artista tudo aquilo que o artista quiser, quando ele quiser. Rogilas disse que esta lei se impunha porque estava preocupada com os problemas dos jovens artistas como um todo. Disse que nem sequer tinha conhecimento que Baquicas tinha enveredado por uma carreira musical. A outra sobrinha de Rogilas é dona de uma editora discográfica. Mas Rogilas afirma nem sequer conhecer essa sobrinha. Diz que a sobrinha é do lado do marido e que essa gente não é de boa rês.

Um dia Pirotas acordou sobressaltada às três da manhã com um estrondo na porta. Rebolou-se da cama e desceu as escadas. "Polícia!", alguém berrou. Pirotas abriu a porta e viu sete ervilhas da polícia especial armadas com lança-feijões. Teve medo. Muito medo. O chefe dos sete perguntou-lhe se morava lá uma ervilha chamada Pirotas. Pirotas disse que não. Eles pediram desculpa e foram-se embora. Pirotas sentiu remorsos. Mentir é feio. Chamou-os ao longe. Eles voltaram. Disse que era ela a Pirotas. Eles iniciaram os seus procedimentos de imobilização e levaram Pirotas com ela. Puseram-na numa cela.

Dois anos volvidos, Pirotas está ainda na prisão. O chão é de cimento. Dizem que cometeu um crime. Pirotas acha que o seu único crime foi amar a música de Robirta. Robirta teve tanto sucesso no mundo da música que foi apanhada com droga numa casa de banho. Foi detida. Ficou na cela mesmo ao lado de Pirotas. Agora todos os dias de manhã Robirta canta para Pirotas o Eu não quero ir para a sopa. Pirotas inventou até uma coreografia para a música. Foram muito felizes as duas, nessa altura. Pensaram até adoptar. Mas depois Robirta foi libertada.

* O Princípio da Ordem Natural (PON) é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. Algumas ervilhas levam este princípio mais longe e chegam mesmo a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais.

Rogilas e o seu braço direito

Conheço uma ervilha. Chama-se Rogilas. Rogilas é a primeira-ministra da República Inomesa. Rogilas tem um braço direito. Chama-se Diligos. Diligos é uma ervilha muito curiosa. Gosta de refresco de café. Diligos não gosta de ser o braço direito de Rogilas. Aliás, Diligos não gosta de ser o braço direito de nenhuma ervilha. Diz que ser o braço direito de uma ervilha é muito ingrato. Ou essa ervilha é canhota e, na verdade, não servimos para grande coisa, ou então não o é e provavelmente vai utilizar-nos para limpar o rabo. Diligos também gosta de corridas de carros. Fica sempre perto da linha de chegada para ser o primeiro a saber quem ganhou.

A opção pessoal de Kolmicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. É muito peculiar. Usa gel no cabelo. Em 1989, Kolmicas entrou numa casa-de-banho de uma discoteca. Passado 10 segundos vomitou. Concluiu que entrar em casas de banho lhe provocava o vómito. Deixou de ir a casas-de-banho. Com excepção de uma vez em 1994. Estava mesmo muito aflita. Chichi. Curiosamente, dessa vez não vomitou. Certamente, foi sorte. Só pode ter sido. A não utilização de casas-de-banho foi uma alteração profunda à sua rotina. Representava todo um conjunto de complicações adicionais. Para não mencionar a discriminação constante por carregar sempre um penico portátil. Mas era o seu modo de vida. E há que respeitar as opções pessoais de cada um.

Xamilas e as bolachas de chocolate

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas saíu de casa para comprar pão. Chegada à padaria olhou o pão quentinho. Ficou indecisa entre o pão de trigo e o de centeio. Ambos pareciam deliciosos. Apenas podia escolher um deles portanto concluiu que era razoável que tivesse que tomar uma decisão.

Lembrou-se então que podia sempre não tomar qualquer decisão acerca dos pães. Mas nesse caso estaria sempre a decidir entre (1) tomar uma decisão sobre que pão comprar e (2) não tomar qualquer decisão. A menos que também decidisse não tomar nenhuma decisão relativamente a estas duas opções. Mas não tomar essa decisão seria por si só já uma opção entre (A) não tomar nenhuma decisão sobre escolha entre 1 e 2 e (B) escolher entre 1 e 2.

Nessa altura, Xamilas apercebeu-se que este processo se podia repetir indefinidamente. Se ali ficasse a enumerar as decisões que podia obter desta maneira, dado que elas são infinitas, ficaria ali tempo infinito. Se ficasse ali tempo infinito, acabaria por tomar involuntariamente a decisão de não tomar qualquer decisão sobre nenhuma das possíveis decisões. E isto por si só era já uma decisão. Em resumo, se ela se desse ao trabalho de conhecer todas as possibiilidades de escolha que tinha, o mundo decidiria por ela.

Xamilas concluiu que se tivesse informação completa sobre o mundo, não podia agir sobre ele. Ficou demasiado perturbada e voltou para casa sem pão. Comeu bolachas de chocolate. Estavam tão boas.

O descapotável de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Tem um descapotável amarelo com dois retrovisores laterais. Quando acordou hoje de manhã viu uma ervilha azul a pairar sobre o ar. Era idêntica a qualquer outra ervilha com a excepção de simultaneamente ter filhos e ser virgem. E ser azul.

Disse-lhe a virgem que o mundo era determinístico. Dado que ela era azul, Xamilas acreditou. Ainda para mais, virgem. De repente, invadiu-a uma imensa tristeza. O descapotável amarelo não seria então mérito seu. Apenas o resultado de ela ser aquele conjunto de átomos que no seu conjunto se designavam por Xamilas e estar definido algures que ela o ia comprar.

Chorou, chorou e voltou a chorar. Depois chorou ainda mais, porque percebeu que aquele choro não era uma consequência da sua nova percepção do mundo, mas apenas o resultado de ele ser determinístico. Sentiu-se presa. O aperto no peito foi tão grande que morreu. Se não foi, pareceu mesmo.

As 18 vagens de Baquicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Baquicas. Faz músicas. É a sua profissão. Tem uma rica casa. Muito pequenina mas muito jeitosinha. Paga 400 vagens de renda. É na Buraca.

Baquicas editou um disco em Janeiro passado. Orquestração fascinante. Muito captivante e original. Levou oito meses a produzir. Fez tudo sozinha. Colocou-o à venda na internet. Seis vagens cada disco. Vendeu três -- à mãe, ao marido e ao melhor amigo -- e facturou 18 vagens.

É uma artista muito conhecida. Todos adoram a sua música. Dizem que transfigurou o panorama musical das ervilhas a nível mundial. Não há quem não tenha uma cópia do seu álbum. É muito fácil obter uma gratuita na internet.

Desde Janeiro que está a trabalhar no seu novo álbum. Desde Janeiro que vive com as 18 vagens que facturou. Estamos em Maio. De Janeiro a Maio são quatro meses. É muito feliz ela. Mas está ligeiramente magra demais ou que é. Nem sei se aquilo não lhe fará mal. Mas não me cabe a mim dar palpites sobre a vida dos outros.