O método da escolha dos sapatos de Xamilas

Conheço uma ervilha. Chama-se Xamilas. Xamilas tem oito pares de sapatos. São oito esquerdos e oito direitos. Para escolher os que vai usar, Xamilas usa um método que algumas ervilhas apelidam de peculiar. O procedimento é muito simples. Xamilas tem os seus sapatos todos no mesmo quarto, num monte, dispostos aleatoriamente. Com as luzes apagadas, chega lá e escolhe dois sapatos completamente ao acaso. Se forem dois sapatos esquerdos ou dois direitos, Xamilas repõe o segundo sapato e volta a escolher um novo do monte até que saia um sapato do lado que deve ser. Os dois sapatos que obtém desta forma são os sapatos que vai usar nesse dia. Xamilas chama a este processo o Método da Escolha dos Sapatos. Foi a própria Xamilas que inventou, algo que a deixa muito orgulhosa. Ainda hoje, passados vinte anos sobre o dia em que inventou este método, a melhor forma de abordar Xamilas pela primeira vez é perguntar-lhe se ela é *a* Xamilas que inventou o método da escolha dos sapatos. Os seus olhos iluminam-se por dentro quando lhe fazem essa pergunta. E sente borboletas a esvoaçar na barriga. Daquelas com várias cores.

Usando este método, torna-se bastante difícil usar dois sapatos do mesmo par. Na maior parte dos dias, Xamilas anda com sapatos diferentes. Mas isso não a incomoda minimamente porque sabe que, se um dia usar dois sapatos do mesmo par, será um dia especial. E no entanto, todas as ervilhas olharão para Xamilas como se nada fosse, já que apenas verão um normal par de sapatos. Xamilas acreditava que o facto de ter deliberadamente diminuído a probabilidade de algo acontecer, tornava esse acontecimento muito mais especial. Aquele gesto simples do dia-a-dia, e que nunca lhe retirava mais de cinco minutos por dia e apenas a tinha feito perder o comboio duas vezes, encerrava em si a mais profunda essência do Princípio da Ordem Natural.

A Ordem Natural é uma filosofia teológica que se baseia única e exclusivamente no Princípio da Ordem Natural (PON). O PON é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. No caso de Xamilas, andar com dois sapatos que fizessem par seria uma dessas coincidências não fortuitas. A partir do PON deduz-se directamente todo um conjunto de directivas basilares que devem reger o modo de vida das ervilhas que crêem nesse princípio. O moto da Ordem Natural é "Há coincidências. E são absolutamente fascinantes." A Ordem Natural vai mais longe e incita os seus crentes a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais. Daí o Método da Escolha dos Sapatos de Xamilas.

Xamilas é uma ferverosa crente no PON. Por isso, deixa que a própria Ordem Natural proceda, não só à selecção do seu calçado, como também que faça parte da sua vida em todo um outro conjunto de coisas. Basicamente, em tudo. Por exemplo, depois de se converter à Ordem Natural, Xamilas nunca mais combinou encontros convencionais com outras ervilhas. Deixou de marcar hora e locais específicos e passou a combinar detalhes muito mais vagos. E quanto mais vagos melhor. Ainda noutro dia, para se encontrar com Lustrosa, mandou-lhe uma mensagem a dizer: "Temos assuntos para falar. Encontramo-nos perto da hora de almoço na zona da Baixa. O teu casaco é absolutamente lindo." Xamilas sentia que, dados os detalhes vagos para o encontro, se elas se conseguissem de facto encontrar, seria algo tão especial que valia a pena correr o risco de não se chegarem a ver. Era algo por que valia a pena sofrer. Já Lustrosa, que não só não era fã do PON como regia a sua vida pelo Princípio da Optimização Extrema*, respondeu-lhe apenas "OK. 12h30 à porta do Minitreço. Aliás, na caixa 34. Aquilo tem várias portas e era uma confusão." Xamilas ficou desapontada. Lustrosa tinha conseguido tornar um encontro que podia ser um supremo fascínio em algo sem qualquer espécie de significado.

Xamilas acredita que há algo de mágico, de etéreo, naquele princípio. Algo que a faz ter arrepios na espinha só de pensar nele. Às vezes quando se concentra muito a pensar no PON chega a sentir uma espécie de incisões cutâneas muito precisas, embora não dolorosas, na zona do abdómen. Xamilas lembra-se bem de um desses momentos, até porque foi quando foi operada ao apêndice, que é algo que dificilmente se esquece. Disse-lhe o médico que aquilo tinha sido tudo causado por ela comer as graínhas das uvas. Ela não ligou. De cada vez que tentava safar-se das graínhas acabava por trincá-las. E as graínhas têm um sabor demasiado amargo na opinião de Xamilas.

Xamilas aprecia o PON acima de tudo porque abomina a ideia de que o universo seja determinístico. Abomina bastante, até. Aliás, abomina tanto que quase morreu de dores no peito quando percebeu que num universo determinístico não poderia congratular-se por conquistar alguma coisa, nem mesmo o seu lindo descapotável. E uma vez também ficou um bocado picada por ter que comer bolachas de chocolate quando o seu cérebro quase colapsou por ser obrigada a escolher entre pão de trigo e pão de centeio. Não que ela desgostasse das bolachas, muito pelo contrário. Mas o facto de não ter sido sua a escolha, irritava-a particularmente. Sentia-se abusada. E o abuso é mau. Muito mau. Quando se sentia abusada, Xamilas focava a sua energia no PON e ficava muito mais calma. O símbolo do PON é um pequeno pónei azul com a crina em arco-íris. Por isso Xamilas, gosta de fechar os olhos e imaginar um pónei a saltitar pela floresta a comer bagos de uvas com graínhas. O símbolo do PON ser um pónei é uma grande coincidência, principalmente porque nalguns dialectos de ervilhas pónei escreve-se foneticamente como "pon". Como por exemplo na frase "Olha ali aquele pon tão bonito". Algumas ervilhas diriam "Não há coincidências". Mas Xamilas dirá antes "Há sim senhora. E são absolutamente fascinantes".

* O Princípio da Optimização Extrema diz que o tempo de vida deve ser utilizado de forma óptima para maximizar o número de coisas que conseguimos fazer. Diz o princípio que quanto melhor optimizarmos o tempo, mais poderemos desfrutar do tempo de vida. Embora pareça uma contradição, nas suas formas mais fundamentalistas, este princípio chega a sugerir que, mesmo que o tempo que se perca a optimizar seja superior ao que se ganha ao pôr a optimização em prática, o esforço por pôr em prática este princípio é suficiente para tornar toda a existência mais especial.

Robirta e as noites para esquecer

Conheço uma ervilha. Chama-se Robirta. Depois de ter descoberto o Cheiro da Paixão, Robirta descobriu a dor de ser abandonada pelo grande amor da sua vida e decidiu beber para esquecer. Escreveu "Mais Uma Noite Para Esquecer". Quase sempre vodka. Noites e noites naquilo. Não sei se alguma vez sairá desta fossa. Vamos acreditar que sim.







MAIS UMA NOITE PARA ESQUECER
Robirta

É sexta-feira à noite e eu
Não tenho ninguém com quem rolar
Longe os tempos em que as tuas covas viviam perto de mim
Longe os tempos em que a tua casca me abraçava sem fim

Por isso quatro da manhã e eu
Perdida num bar qualquer
Vou beber
Vou beber para esquecer

Abandonaste-me e fiquei ao frio
Onde está a minha humidade?
Passo os dias a chorar e tu não queres saber
E hoje é só mais uma noite para esquecer

Camola e Brucélio

Conheço uma ervilha. Chama-se Camola. Depois da saga da compra do Ambrósio, Camola decidiu que precisava de lhe arranjar um substituto. Até porque, por ser grande e rijo, Ambrósio sobreviveu à queda do quinto andar e foi preso por homicídio negligente de um pombo. Negligente porque, tivesse estado com atenção, tinha-se desviado do pobre pombo. Ambrósio tentou alegar instinto de sobrevivência já que, não fora o pombo a amortecer a queda, teria morrido. Não teve sucesso e apanhou dezasseis anos de prisão. Já a Camola nada aconteceu porque ao atirar um computador do quinto andar, era impossível que estivesse premeditadamente a querer fazer mal àquele pombo em particular. E também porque ela negou sempre que tinha atirado Ambrósio da janela. Justificou tudo com um bug do Uindôs que era conhecido por abrir e fechar janelas quando menos se esperava. Todos estes pormenores são irrelevantes. O importante é que Camola precisava de um computador com urgência.

Passou numa loja de computadores muito recente na baixa da cidade e sentiu-se compelida a entrar. Não por qualquer motivo relacionado com os produtos à venda, mas tão-só pelas cores hipnotizantes da montra e pela grande maçã já com uma dentada que tinham à entrada. Camola adorava maçãs. Já lá dentro, viu uma pequena caixa branca reluzente. Estava para venda. Era um computador. Era lindo, por isso trouxe-o para casa. Em casa, ligou-o. Entrou num mundo fascinante. Tudo funcionava, tudo era compatível, tudo fazia exactamente aquilo que ela queria, como ela queria e quando ela queria. Sempre que não sabia como fazer alguma coisa, Camola fazia a primeira coisa que lhe vinha à cabeça e funcionava sempre. Um sonho tornado realidade. Nem dois minutos passados sobre a chave de casa na porta e já Camola a ouvir a sua música favorita de Robirta, que entretanto já era O Cheiro da Paixão. Sentiu que estava apaixonada pelo seu novo computador. Decidiu chamar-lhe Brucélio.

Brucélio era de facto perfeito. Camola estava por demais satisfeita. A única coisa que a incomodava era que, embora pudesse ouvir toda a música que quisesse no Brucélio, ele era grande demais para o levar quando ia fazer o seu rolling* matinal. Decidiu comprar um aparelho mais pequeno só para esse efeito. Estava tão satisfeita com Brucélio que foi novamente à loja da maçã. Na loja aconselharam-na a comprar um dos novos iRoll que vendiam. Disseram-lhe que os iRoll eram muito compatíveis com o Brucélio e que se ela arranjasse um aparelho de outra marca qualquer podia haver todo o tipo de problemas. Camola achou que só um problema já seria muito desagradável portanto todo o tipo de problemas seria mesmo muito mau. Assim fez. Levou o iRoll. E não se arrependeu. Bastava ligar o iRoll ao Brucélio e a magia acontecia. Toda a música de ambos se sincronizava e a vida fluía em perfeita harmonia.

Aquela empresa da maçã era de facto fenomenal. Pensavam em todas as necessidades dos utilizadores. Nada falhava. Quando decidiu comprar um telemóvel, porque o seu estava velho, Camola não hesitou em dirigir-se à loja da maçã com a dentada. Mais uma vez, não se arrependeu. Comprou o telefone deles. Aliás, tudo foi muito fácil porque não havia sequer modelo ou características para escolher. O modelo era único, só havia aquele. Mas isso fazia todo o sentido porque todas as ervilhas tinham a mesma exacta necessidade: telefonar. Se a necessidade era a mesma, para quê as escolhas? Para além disso, é muito perigoso dar escolhas às ervilhas. Elas quase nunca saberiam bem o que fazer com a liberdade. Pensou também que não era assim espectacular não poder correr duas aplicações ao mesmo tempo, nem ser impossível mandar MMS com fotos do seu dia-a-dia atribulado às amigas. Nem o facto de não poder guardar o rascunho de um SMS enquanto escrevia outro SMS. Ainda por cima porque a maior parte dos telefones banais de outras empresas conseguiam fazer tudo isso. Mas isso era amplamente compensado por toda aquela integração perfeita com o seu adorado Brucélio. E porque era lindo. E porque todas as amigas gostavam mais dela por ela ter um.

Camola descobriu que a grande empresa da maçã não parava de pensar nela e tinha preparado, só para ela, um sítio único na net onde Camola podia comprar toda a música que queria. Adeus aos desagradáveis CDs, e ao ter que sair de casa para comprar música. Se era para fazer exercício, ia fazer rolling, não ia comprar CDs. E uma pechincha. Uma vagem por cada música. Ela podia sempre comprar noutro sítio mas, se fosse ali, tudo era muito mais simples e podia comprar a música directamente do seu iRoll. Até mesmo durante o rolling matinal, algo que lhe dava prazer. Até porque quando as ervilhas a viam naquilo ficavam a achá-la uma ervilha muito moderna.

Comprar música naquele sítio era ainda mais tentador porque, ao fim de seis músicas, recebia um vale 2 por 1 para usar numa cadeia de pizzarias. Camola não gostava particularmente de pizzas e muito menos de comer sempre na mesma cadeia, mas tinha a grande vantagem de ter esse desconto. Para além disso, quanto mais consumisse naquele restaurante, mais vales de desconto tinha para comprar o "Diário do Prado", um diário generalista de informação sobre o mundo. E Camola gostava muito de saber coisas sobre o mundo. Por isso não desperdiçava um único vale que fosse. Até chegava a ir mais vezes à tal pizzaria, só para poder comprar o jornal do dia. Esse jornal era fantástico porque se se acumulasse pontos suficientes, tinha-se um desconto substancial em pacotes de férias numa praia específica da República Inomesa. Era uma pena ter que ser naquela praia em particular, até porque não era assim nada de especial, mas o desconto era substancial e valia a pena. E na praia podia usar internet de graça se usasse o seu Brucélio. E o aluguer do carro era oferecido no pacote, por isso valia mesmo muito a pena. Tinha que ser um modelo específico, mas era um carro muito jeitoso. Funcionava com o mesmo sistema operativo do Brucélio.

Ao fim de alguns meses, Camola estava tão satisfeita com todos os produtos que tinha conseguido obter através da sua compra do Brucélio que tinha conseguido convencer todas as amigas da espectacularidade da sua conquista. Aos poucos, todas as suas amigas compraram um computador igual ao dela e, pelas mesmas razões, foram gradualmente seguindo os mesmos passos de Camola. O leitor de música, o telemóvel, as pizzas, o jornal, as férias e o carro. Algumas ervilhas queixavam-se da falta de escolha que havia e da standardização, de como todas tinham coisas iguais e todas faziam o mesmo. A verdade é que isso também era bom porque tinham mais em comum e sentiam-se mais próximas umas das outras. E, se se alheassem da falta de escolha, os produtos que acabavam por utilizar eram os melhores do mercado. Não tinham liberdade de escolher quase nada nesses produtos, porque eram todos iguais, mas eles eram funcionais e, acima de tudo, muito bonitos. Eram autênticas obras de arte. E podiam colar autocolantes da sua predileção para os tornar únicos. Isso deixava-as felizes.

* O rolling é um tipo de exercício feito por muitas ervilhas. Consiste em andar a rolar a uma velocidade aproximadamente constante pela rua, não porque se precise de ir algum lado concreto, mas apenas pelo exercício. A maior parte dos ervilhas gosta de o fazer antes de ir para o trabalho ou à tardinha. Algumas, mais atarefadas, usam mesmo passadeiras automáticas em que podem rolar o tempo que quiserem sem sair do mesmo sítio.

Chiquita e o seu teste 99.8% seguro

Conheço uma ervilha. Chama-se Chiquita. Chiquita tem uma capacidade fora do vulgar para se lembrar de formas muito originais de fazer vagens. São quase sempre ideias efémeras e o lucro que advém de cada uma dessas ideias é muito pequeno e localizado no tempo. Porém, são tantas as ideias e sempre tão fora-de-série que Chiquita, só à custa delas, consegue manter um rendimento mensal de encher a casca a qualquer ervilha.

Um destes dias, Chiquita teve mais uma das suas ideias geniais. Surgiu-lhe enquanto navegava na net, uma actividade à qual dedicava uma ínfima parte do seu tempo. Daí que fosse uma coincidência mirabolante que a ideia lhe tivesse surgido precisamente nessa altura. Chiquita era uma crente acérrima no Princípio da Ordem Natural* e, devido a toda aquela improbabilidade, achou que aquela ideia devia ser muito especial. Ao navegar na internet, essa fonte fidedigna de informação, Chiquita viu uma estatística interessante: o número de ervilhas no mundo afectadas pelo vírus da Chupilose do Carnaval, apenas sexualmente transmissível, era 0,2% da população total de ervilhas no mundo. Essa informação crucial, por Chiquita desconhecida até então, fez-lhe surgir um sorriso de cova a cova. Tinha acabado de descobrir um método muito engenhoso de testar a doença.

Chiquita começou a preparar o primeiro kit de teste da doença. Comprou um tubo de ensaio baratucho e colocou lá um líquido verde com cheiro a refogado. Arranjou um autocolante tipo raspadinha e arranjou forma de colocar debaixo da superfície a riscar a seguinte mensagem: "Não tens chupilose, pá. Mas para a próxima, cuidadinho!". Chiquita sorriu por dentro quando percebeu que, de acordo com a estatística que tinha visto, tivesse ou não chupilose a ervilha, este kit acertaria em 99,8% dos casos. E 99,8% parecia-lhe um teste bastante fiável. Para tornar o teste mais profissional, Chiquita preparou um folheto informativo. As instruções eram as seguintes:
Para fazer o teste, (1) abre o tubo e (2) sopra lá para dentro. Se o líquido mudar de cor, não deves ter chupilose. Mas telefona-nos porque podes ter problemas crónicos de hálito. Se não mudar de cor, é um bom prenúncio. Em qualquer caso, risca o autocolante para saber o resultado. Podes usar uma moeda.

Quando havia instruções com muitos detalhes e a sugerir coisas ridículas e que as ervilhas não conseguiam entender, todos acreditavam mais na fiabilidade do teste. E era preciso dar segurança às ervilhas que faziam este tipo de teste.

Chiquita estava contente consigo mesma por ter feito tal descoberta tão fascinante e por ter conseguido usar as técnicas da Teoria do Casaco que levariam este teste ao número máximo de ervilhas. Fazia-o de forma altruísta, para ajudar todas as ervilhas em apuros. Sentiu-se útil à comunidade. Depois, apercebeu-se de que, dada a natureza do teste, nem chegava a ser preciso qualquer contacto directo com a ervilha que estava a ser testada. Podia, aliás, ser tudo feito na internet. Embalada de toda essa motivação, Chiquita criou um mega site na net onde as ervilhas podiam fazer o seu teste da chupilose a troco de 10 vagens. E podiam fazer dois testes pelo preço de um. Desde que fossem os dois na mesma ervilha. Algumas ervilhas queixaram-se dizendo que depois de fazerem o teste já não iam precisar do outro. Mas Chiquita explicou-lhes que ao fazerem dois, aumentavam a fiabilidade do teste.

Num processo de generalização abstracto digno das mentes mais brilhantes, Chiquita notou que este teste podia ser alargado a todas as doenças cuja expressão na população mundial de ervilhas fosse igual ou superior à taxa de fiabilidade que estivesse disposta a anunciar. Passado pouco tempo, tinha já montado um site onde testava todas as doenças presentes em menos de 1% da população. Eram praticamente todas as doenças relevantes para as ervilhas. Aos poucos a sua empresa cresceu e monopolizou o negócio de testes de doenças através de fusões e aquisições de outras empresas de testes mais pequenas. Eram empresas que não tinham conseguido crescer porque tinham ficado presas a burocracias legalistas que as obrigavam a seguir todo um conjunto de práticas deontológicas. Com as aquisições todas essas práticas puderam ser eliminadas e o mercado pôde funcionar livremente. Foi também uma lição de economia que Chiquita deu ao mundo.

Certo dia, houve uma ervilha muito esperta que provou por a+b que aquele teste não fazia sentido. Era uma ervilha que adorava provar coisas por a+b. Gostava da abstracção das variáveis e de como cada uma dessas letras podia representar tantos números diferentes. Já tinha aliás provado um monte de coisas por a+b. Fazia-a sentir-se bem. Chiquita foi processada e teve que retirar o seu teste do mercado. E teve que pagar uma indemnização. Não iria ficar ali a rir-se a fios de vagem despregados. Pagou um monte de dinheiro. Foi praticamente 17% daquilo que ganhou com a história do teste, o que era mesmo muito porque ela tinha ganho muito com o teste. Pagou pelo que fez. Por essa altura, porém, já Chiquita tinha outra ideia em marcha. Teve-a enquanto aparava a relva do jardim, coisa que só fazia uma vez por ano. Outra coincidência. Claramente, outra das suas ideias especiais.

* O Princípio da Ordem Natural (PON) é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. Algumas ervilhas levam este princípio mais longe e chegam mesmo a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais.

Os espasmos de Kolmicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Ceroulas. Ceroulas começou a ter sonhos recorrentes com o Universo Azul Carmim. Na verdade, ela já costumava sonhar com ele todos os dias. Mas agora sonhava cada vez mais. E com mais força. Às vezes, mesmo acordada, chegava a ver grandes bandos de albatrozes a voar na sua direcção para a comer. Sentiu que devia fazer alguma coisa. Decidiu falar com Kolmicas. Apesar de estar farta das perguntas das ervilhas, Kolmicas tinha sempre tempo para questões profundas como esta. E Ceroulas sabia-o. Era daquelas poucas coisas que mantinha como certas na sua base de dados cerebral.

Ceroulas telefonou a Kolmicas. Ficou logo alegre quando percebeu que ao levantar o auscultador do telefone e ao chegá-lo até ao ouvido, o auscultador do telefone ia de facto parar ao seu ouvido. E precisamente ao ouvido esquerdo, tal como ela queria. Do outro lado atendeu Kolmicas. Ceroulas notou algum ruído na linha, mas lembrou-se que deveria ser o barulho de Kolmicas a recortar jornais, prosseguindo a sua classificação de notícias em caixinhas azuis e vermelhas.

Apesar de dedicar todo o seu tempo livre a manter um maravilhoso sistema organizacional baseado em caixinhas coloridas, Kolmicas tinha sempre tempo para conversar com Ceroulas. Eram muito amigas. Ambas sabiam das suas diferenças abissais e de como seriam sempre eternas, mas eram amigas. E as amigas gostam umas das outras apesar das suas diferenças.

Ceroulas falou-lhe do Universo Azul Carmim e de como tinha sonhos recorrentes com um espaço abstracto formado por todos os conceitos possíveis e imaginários. Falou também nos albatrozes maquiavélicos, mas Kolmicas não pareceu dar importância. Kolmicas não era muito de aves. Ceroulas prosseguiu dizendo que lhe parecia até razoável escrever um programa de computador que ficasse a enumerar todos os conceitos desse espaço. Um a um. Um a um. Para sempre. Na posse desse maravilhoso programa, não seria preciso descobrir mais nada no mundo. Poderia levar algum tempo mas, qualquer que fosse o conceito genial, nalguma altura o programa iria acabar por criá-lo. Ceroulas babou-se.

Kolmicas não lhe pareceu muito interessada. Mas como amiga, ouvia-a sempre com muita atenção. Ceroulas tentou então apelar directamente a Kolmicas, dizendo que todas as notícias de jornal, os pedaços de informação que alguma vez alguém podia escrever ou transmitir, viveriam nesse universo fascinante. Kolmicas ficou por minutos a contemplar um ponto do tecto enquanto imaginava um armazém de caixas vermelhas e azuis. Imaginou-o ultra organizado e isso acalmou-a. Depois, nessas suas visões, apercebeu-se de que esse armazém não tinha qualquer fim visível, de que as caixas vermelhas e azuis se estendiam por uma infinitude inimaginável e começou com suores frios. Sentiu que não iria ter tempo para organizar em caixas todo aquele Universo Azul Carmim. Sentiu uma falta de ar sôfrega. Os suores passaram a espasmos ritmados até que Kolmicas caíu redonda no chão. No momento do estrondo, Ceroulas viu o seu telefone transformar-se num albatroz gigante que ficou a olhá-la fixamente sem piscar os olhos. Ceroulas não ficou surpreendida. Era o que ela esperava da vida. Fez-lhe uma festa no pescoço. Era um animal doce. Tinha penas suaves.

Ceroulas e o universo azul carmim

Conheço uma ervilha. Chama-se Ceroulas. Ceroulas detestava todas as linguagens usadas no dia-a-dia pelas ervilhas do mundo. Achava-as demasiado ambíguas e redundantes. Irritava-a também a sua natureza linear e unidimensional, o agrupar das palavras em frases, das frases em parágrafos. Não era dada liberdade a quem escrevia e a expressividade era sempre demasiado limitada.

Ceroulas acreditava que era possível definir de raíz uma linguagem perfeita que fosse suficientemente expressiva para permitir descrever todos os conceitos existentes e imaginários do mundo e ao mesmo tempo fosse cristalinamente objectiva. Ceroulas pouco se importava se essa linguagem poderia algum dia ser utilizada na realidade ou mesmo se alguém lhe pegaria. A mera idealização desta linguagem como conceito abstracto num universo de conceitos fora do universo físico material, fazia-lhe arrepios por toda a espinha. Ou pelo menos faria, se ela tivesse espinha.

Ceroulas tinha muita dificuldade em acreditar sem reservas na maior parte das coisas que as outras ervilhas tomavam como certo e garantido. Porém, ela não punha em questão a existência deste tipo de ideias e definições abstractas. Existisse ou não universo, fosse ela ou não um cérebro num boião controlado por um super computador, essas ideias abstractas existiriam sempre. Ceroulas imaginava-as a viver num universo à parte formado só por conceitos. Chegava a ter visões desse universo. Via-o azul carmim. Gostava muito de azul carmim. Fazia-lhe lembrar albatrozes.

O restaurante de Alipas

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Alipas abriu um restaurante de comida Urdichesa. A especialidade era sopa de feijão verde. Era uma delícia. Algumas ervilhas manifestaram-se ferozmente contra a abertura desse restaurante. Consideravam vergonhoso que nos tempos modernos ainda houvesse ervilhas a comer outros vegetais. Defendiam que as ervilhas deveriam fazer uma dieta tão-somente à base de água. Eram ervilhas ditas aquarianas. Acreditavam que havia muitos pratos saborosos que podiam ser confeccionados usando apenas água e que muitos dos vegetívoros nem dariam conta da diferença.

No dia da inauguração, concentraram-se à porta do restaurante gritando palavras de ordem -- "Assassinos! Assassinos!" -- e empunhando grandes cartazes com slogans variados -- "não ao genocídio da couve-flor", "vivam os nabos!", ou mesmo outros mais rebuscados como "e se a tua mãe fosse uma abóbora?". Uma ervilha, claramente vegetívora pelos dentes mais desenvolvidos, saíu do restaurante para encetar conversações. Dirigiu-se à líder da manifestação e defendeu a posição das ervilhas vegetívoras de forma intransigente dizendo que água não puxava carroça. As aquarianas ficaram a olhar umas para as outras sem saber muito bem o que dizer. De facto elas nunca tinham visto água a puxar carroças. Por isso, calaram-se. Baixaram os cartazes e foram cada uma para sua casa cabisbaixas.

Alipas tinha contratado os serviços de colnsultoria de Lustrosa para garantir o sucesso do empreendimento. A facturação do restaurante no primeiro trimestre ficou muito aquém do previsto por Lustrosa. Em parte porque os serviços de Lustrosa eram muito caros. Lustrosa, porém, tinha por hábito retirar essa informação dos relatórios de contas que fazia -- era, dizia, prática da casa -- e Alipas atribuiu por inteiro o insucesso nas vendas a algum problema fundamental do seu serviço. Mas não conseguia perceber qual era. Alipas pediu novamente ajuda a Lustrosa. Mais umas vagens que arderam. Lustrosa percebia muito de como ter mais vendas num restaurante. Era nestas alturas que todo o conhecimento adquirido a tentar que os outros gostassem dos seus casacos se revelavam frutíferos.

Lustrosa foi ao restaurante de Alipas. Lá, iniciou todo um processo de observação minucioso. Começou por apontar a escolha dos tons dos cortinados como fraca. As ervilhas queriam tons quentes, era certo, mas nunca aquele tom particular de laranja. Havia outros tons de laranja com muito mais impacto no estado mental dos consumidores. Mas o que deixou Lustrosa em estado de choque foi aperceber-se de que Alipas não tinha implementado qualquer sistema de falso feedback. Disse que a Teoria do Casaco moderna assentava mais do que nunca na percepção aparente por parte do consumidor de que a sua opinião estava a ser tida em conta. Depois perguntou se Alipas estava a perceber a ideia. Alipas acenou que não com a cabeça. Lustrosa ignorou esse facto. Até porque já tinha mostrado o seu interesse pelo bem estar de Alipas ao perguntar se ela estava a perceber a ideia. Prosseguiu a explicação. Clarificou que, cinco minutos depois de estar servido o prato principal, um dos empregados deveria passar pela mesa e perguntar se estava tudo bem com a comida.

Alipas achou a ideia inovadora e seguiu o conselho. A ideia foi um sucesso. As ervilhas adoravam que lhes perguntassem se estava tudo bem. Praticamente todas diziam que sim, nem que fosse porque não tinham grande coragem para confrontar o empregado. Para além disso, o facto de lhes estarem a perguntar se tudo estava bem, fazia-as sentir-se alegres e bem dispostas e aceitar eventuais defeitos da comida. De facto, as ervilhas ficaram tão dependentes desta pergunta, que ao fim de algumas semanas todos os restaurantes da zona tiveram que contratar os serviços de Lustrosa para implementar a mesma medida. Se não o fizessem, iriam à falência.

Os empregados fizeram todos os esforços por nunca se esquecer de perguntar se estava tudo bem com a refeição. Ao fim de algum tempo alguns clientes começaram a queixar-se de que já era a segunda vez que lhes perguntavam aquilo. Na verdade, seguindo um conselho anterior da empresa de Lustrosa, os empregados não estavam alocados a mesas específicas. Lustrosa tinha explicado que se optimizavam recursos e se minimizava o tempo de espera dos clientes se cada empregado pudesse servir qualquer mesa. Dessa forma, era muito difícil saber se algum empregado teria já passado anteriormente pela mesa. Lustrosa sugeriu então que se passasse a ter uma pequena jarra com uma flor em cada mesa e que, depois de feita a pergunta, se devia colocar uma flor adicional nessa jarra. Era o chamado Mecanismo de Controlo do Sistema de Falso Feedback (MCSFF), hoje um padrão na Teoria do Casaco da Restauração. Assim, o empregado apenas precisava de verificar o número de flores para decidir se devia ou não indagar o cliente acerca da qualidade da comida.

O sistema funcionou na perfeição. Os empregados diligentes não falhavam agora uma única vez. Aos poucos, as ervilhas ficaram tão familiarizadas com o sistema que começaram a pedir para escolher a cor das jarras e a variedade de flores usadas. Tornou-se algo tão importante que era a primeira coisa que as ervilhas pediam quando se sentavam à mesa. Antes da comida, antes das bebidas, antes de tudo. Passou a haver um menu à parte com fotos de flores para as ervilhas escolherem. Gradualmente, a variedade de flores disponível foi aumentando e a de pratos diminuindo. Ao fim de algum tempo, havia apenas um prato único, cuja qualidade deixava muito a desejar. As ervilhas não se importavam com isso pois, para compensar, havia flores oriundas de todo o mundo e em cores tão diversas e empolgantes. O sucesso do restaurante de Alipas atingiu níveis absolutamente inéditos no país para um estabalecimento de restauração.

Até às ervilhas aquarianas agradou imensamente toda a importância dada às flores e algumas delas começaram a ir ao restaurante apenas para contemplar diferentes tipos de pétalas e deixar sugestões sobre as cores das jarras. Algumas vezes acabavam por se sentar. Chegavam mesmo a consumir. Ficavam horas e horas a conversar naquelas mesas bem decoradas. Pediam um copinho de água.

A alegre existência de Ceroulas

Conheço uma ervilha. Chama-se Ceroulas. Ceroulas recusa-se a adoptar todo e qualquer facto como verdadeiro. A menos que exista uma prova irrefutável desse facto. O seu moto é: o Universo joga aos dados, os dados estão viciados, e a probabilidade de sair cada face altera-se de forma aleatória a cada lançamento. Ceroulas sabia que este moto não era daqueles que ficava no ouvido. Mas não se importava. Ela nem sequer sabia se existiam de facto outras ervilhas no mundo, para quê preocupar-se com a sua opinião acerca do seu moto.

Ceroulas não tinha qualquer poder sobre esta sua visão do mundo. Era algo intrínseco que ela não conseguia controlar. Ceroulas sabia como esta sua visão não tinha praticamente adeptos e como isso a tornava motivo de chacota onde quer que ela fosse. Já tinha tentado aderir à tão difundida Ordem Natural, ou mesmo à Grande Pinguinada*, com tantos fiéis nos dias de hoje, mas tudo lhe pareceu demasiado arbitrário. Tentou virar-se para o Apinguinismo**, mas havia demasiadas crenças envolvidas. Mesmo a Ciência, com o seu ridículo método científico, lhe parecia uma anedota. Por que raio é que ela havia de acreditar que duas experiências feitas nas mesmas exactas condições teriam exactamente o mesmo resultado? Parecia-lhe um axioma demasiado forte para basear todo o seu conhecimento nele. No seu âmago profundo teria sempre aquela sua visão muito própria do mundo. Só lhe sobrava aprender a conviver com ela.

A maior parte da vida de Ceroulas era na sua essência um grande conjunto de agradáveis surpresas. Começava o dia logo bem disposta quando se apercebia de que tinha acordado na mesma cama onde se tinha deitado e a disposição dos objectos no quarto era ainda a do dia anterior. Até o tecto tinha a mesma cor. À medida que o sono passava, e conseguia pensar, alegrava-se com o facto de ter na cabeça dela as memórias do costume, acrescidas ainda de todas aquelas que tinha adquirido durante o dia anterior. Ficava contente por conseguir andar quando se levantava da cama. Estava já preparada para aprender a andar nesse dia, mas felizmente podia poupar esse esforço. Maravilhava-se com o facto de sair água das torneiras do lavatório. Que invenção deliciosa aquela da água canalizada. Às vezes distraía-se e ficava ali a abrir e a fechar a torneira. Abrir, fechar, grito de espanto. Abrir, fechar, grito de espanto. Às vezes dez minutos naquilo. A sua preferida era quando, já do lado de fora, trancava a porta de casa e a chave que tinha encaixava na fechadura na perfeição. Era incrível como a probabilidade de ter na mão uma chave que encaixasse ali era praticamente nula, mas de todas as vezes sempre a chave que tinha na mão a fechava sem qualquer resistência.

Ceroulas sabia bem como era fácil pensar que todas estas pequenas coisas não eram coincidências e atribuir-lhes um desígnio profundo, uma Ordem Natural. Mas Ceroulas era como era e não o conseguia evitar. Mesmo não sendo capaz de acreditar em nada, havia algo nela que não a deixava negar a sua própria identidade. E, assim que põs o pé na rua, ali ficou a contemplar os carros a passar com um sorriso estático nos lábios. Vinha um autocarro ao longe. Era o 35. Ainda passava pela sua rua. E parava na mesma paragem. E ainda passava ao Arco da Vagem. Ela confirmou com o motorista antes de entrar. Como fazia aliás todos os dias. O motorista adorava-a.

Naquele dia um carro travou de repente e o autocarro abalroou-o. Os passageiros ficaram todos em pânico. Corriam desalmadamente de um lado para o outro. Ceroulas ficou maravilhada com o facto de o choque de um autocarro num carro continuar a ter os mesmos efeitos colossais de sempre. Saíu e, enquanto os bombeiros tentavam desencarcerar o condutor do veículo ligeiro, Ceroulas entreteve-se a analisar os estragos no metal do automóvel. Passava os dedos ao de leve na pintura. As partes mais pontiagudas de tinta continuavam a fazer pequenos cortes nos dedos. E isso continuava a doer. Fascinante.


* A Grande Pinguinada era uma religião poderosa que acreditava que o mundo tinha sido criado pel'O Grande Pinguim, de seu nome Champi. De acordo com a Grande Pinguinada, a religião mais influente no mundo dos vegetais, Champi era omnisciente, omnipresente e iria julgar as nossas acções quando morressemos para escolher se iríamos para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul. Havia por todo o mundo muitos locais de culto, os chamados Iglôs, que tinham um pinguim imperador rosa-fluorescente à entrada, no topo, onde as ervilhas iam grasnar cantos de acasalamento de pinguim para comunicar com Champi.

** O Apinguinismo assentava na crença de que não existiam pinguins de qualquer espécie ou, pelo menos, de que, a existir, não tinham criado o mundo. Tomava como certo que aquilo que fazíamos em vida não teria qualquer impacto no pós-vida pela simples razão de que o pós-vida para os apinguinistas, não existia. Existir, existia, mas limitar-se-ia a uma existência um bocado dispersa já que os nossos átomos aos poucos iriam ser utilizados para outras coisas.