Esnífia e a natureza do espirro

Conheço uma ervilha. Chama-se Xambélia. Como todas as ervilhas, Xambélia tinha uma mãe. Chamava-se Parêntida. A mãe. Xambélia tinha sempre muitas perguntas sobre o mundo. Parêntida tinha uma forma pedagógica de as abordar, contando-lhe histórias fantásticas, como a de Atlantis e a Salinização dos Mares. Acima de tudo, eram histórias verdadeiras. A verdade sempre foi uma conceito muito subjectivo.

Era hora de dormir e, como sempre, Xambélia não tinha sono. Rebolou-se algumas vezes na sua cama, mas nada.

- Parêntida!... -- chamou, como sempre, num tom completamente inesperado.

A mãe entrou esbafurida pelo quarto adentro e só sossegou quando percebeu que era apenas a filha a chamar. Acalmou. Mas agora já não se podia ir embora porque a filha tinha dado conta que ela tinha entrado.

- Por que espirram as pessoas? -- perguntou Xambélia como se tivesse muito interesse na resposta, algo que ambas sabiam não ser minimamente verdade.

A mãe olhou durante um bocado para o fundo de si à procura da resposta e, quando a encontrou, começou:

Era uma vez uma ervilha chamada Esnífia que gostava muito de alfazema. Andava sempre com um raminho atrás. Um dia decidiu, de livre vontade, espetar dois ou três caules da alfazema nas narinas com toda a força que tinha. Imediatamente fez aquilo que hoje em dia se designa por espirrar. Ficou surpreendida com o estrépido do fenómeno e repetiu-o mais algumas vezes. Como aquilo era algo a que achava muita piada, volta e meia enfiava os caules da alfazema no nariz e espirrava como se não houvesse amanhã. Ao fim de algum tempo a usar desta prática, desenvolveu uma alergia tão crónica que, mesmo sem enfiar qualquer alfazema no nariz, só o pensamento na alfazema gerava uma sequência considerável de espirros. Ao fim de mais algum tempo, já nem precisava de pensar na alfazema para espirrar. Era um processo involuntário e incontrolável. Espirrava de cinco em cinco segundos.

Como era a única ervilha do mundo que espirrava, tornou-se famosa e criou uma moda muito própria. Espirrar tornou-se tão in que muitas ervilhas tinham já aprendido a técnica de fingir os espirros para conseguir atrair a atenção de outras ervilhas. O espirro tornou-se numa forma de demonstração de estatuto social. Apenas as ervilhas capazes de demonstrar tal capacidade de forma exímia podiam ascender socialmente e, no fundo, sobreviver na sociedade. As ervilhas que nunca espirravam eram segregadas e discriminadas, eram-lhes sempre rejeitados os melhores empregos, faziam pouco delas um pouco por todo o lado. O extremo da humilhação era quando uma ervilha que espirrava lhes fazia cócegas com um raminho de alfazema na parte de baixo da casca à frente de todas as ervilhas em redor.

Como sempre, a selecção natural tratou de dar preferência às ervilhas que, através de alguma mutação pontual e depois por cruzamentos entre ervilhas, nasciam já com a capacidade de espirrar involuntariamente. Eram essas de facto as ervilhas com mais probabilidade de sobreviver e de se reproduzir. Tudo isto resultou numa disseminação genética generalizada da propensão para espirrar. Volvidas muitas gerações, foram ficando apenas as ervilhas que volta e meia espirravam. Hoje em dia, não há ervilha que não espirre de vez em quando. Algumas fazem até um ar altamente snob prendendo o espirro, algo que é tido como um comportamento típico das classes mais elavadas. Espirrando agora todas as ervilhas era natural que surgisse algo que pudesse fazer a distinção social entre as ervilhas.

Depois do estrelato, Esnífia entrou numa fase mais depressiva da vida, principalmente quando o espirro se banalizou e praticamente todas as ervilhas espirravam involuntariamente várias vezes ao dia. Esnífia deixou de aparecer na televisão ou de ser convidada para as festas cor-de-rosa. Como resposta, isolou-se nas montanhas onde se dedicou à cultura de vários tipos de ervas aromáticas. Passava o dia a enfiar caules diversos no nariz, à procura de novos fenómenos interessantes. Ao longo do resto da sua vida descobriu ainda dois ou três fenómenos fascinantes. Fenómenos, aliás, tão fascinantes que deixavam o espirro a um canto. Porém, por estar de costas voltadas para o mundo, nunca deu a conhecer a ninguém tão maravilhosas descobertas. Um dia, quando cortava um raminho de hortelã, apareceu-lhe uma libelinha gigante que lhe segredou uma mensagem ao ouvido. Nunca ninguém soube o que foi, até porque não estava mais ninguém lá para ouvir e a libelinha optou também ela por se remeter eternamente ao silêncio nesta matéria, mas foi uma mensagem tão forte que Esnífia morreu de medo. Ficou de barriga para cima. E com os olhos abertos. Esbugalhados.

Finda a resposta, Parêntida olhou a filha ternamente, apenas para confirmar o que já previra. Xambélia dormia profundamente. Desta vez Parêntida não aconchegou os cobertores à filha. Pensou que, se ela tivesse frio durante a noite, talvez sonhasse com a Primavera para aquecer, e se lembrasse da alfazema com força suficiente para dar uns espirros valentes. Parêntida queria acreditar que um dia Xambélia iria ser alguém na vida. E os pais querem sempre o melhor para os filhos. Embuída desse espírito, Parêntida foi-se deitar. Desta vez não se esqueceu de verificar se tinha deixado alguma coisa ao lume. Não tinha.

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