A Grande Pinguinada


Há muitas teorias sobre o começo do universo. Esta é uma delas. Mas não é uma qualquer. É aquela em que quase todas as ervilhas do mundo acreditam. E, se tantas ervilhas acreditam nela e se já o fazem há vários milhares de anos, só pode ser mesmo verdade.


No início, não existia nada. Nem mesmo o verbo. Era um vazio, o chamado Vácuo Primordial. O Vácuo Primordial tinha a característica espantosa de não ter rigorosamente nada. A única coisa que tinha, por assim dizer, era existência. Só que a sua existência primava, ironicamente, pela não existência de mais nada. Podia-se dizer que o Vácuo Primordial era o expoente máximo do egoísmo. Mas como o universo nessa altura ainda era um lugar justo, os egoístas não podiam levar a melhor durante muito tempo. Assim, volvidos três minutos, apareceu uma placa de gelo que ficou ali assim a pairar no vazio. Logo a seguir, começaram a cair pinguins do céu. Céu é uma forma de expressão; vinham de cima. Quando caíam no gelo, ficavam a rebolar como se fossem ervilhas a fazer exercício no prado. Àquele conjunto da placa de gelo e dos pinguins, chamou-se mais tarde Genitália, pela razão óbvia de ter estado na génese do universo. Não se sabe exactamente como surgiu Genitália. Nem exactamente, nem mais ou menos. Não se sabe. Porém, não se fala disso porque isso não é importante. Afinal de contas, são apenas três minutos que não se compreendem.

Genitália era essencialmente feita de gelo e de pinguins. Todos pretos e brancos, como qualquer pinguim. Excepto um, que era cor-de-rosa fluorescente. Chamava-se Champi e era um pinguim imperador. Para além da cor pouco comum, Champi tinha ainda a particularidade de piscar como se fosse o cursor de um ecrã de computador. Ficava visível durante meio segundo, para depois não se ver durante outro meio segundo. Fazia um efeito engraçado quando andava porque parecia que desaparecia num sítio e aparecia noutro. Parecia e era exactamente isso que acontecia. Tirando o facto de ser cor-de-rosa fluorescente e de piscar, Champi era um pinguim em tudo igual aos outros. Era muito afável e comunicativo.

Como quase todos os pinguins imperadores, Champi queria acasalar e fazer pinguins. Quase todos porque havia também pinguins que queriam de facto copular mas que não estavam interessados em relações duradouras, muito menos em criar pinguins. Depois havia ainda outros que queriam criar pinguins, mas preferiam acasalar com pinguins do mesmo sexo e daí não era fácil surgirem novos pinguins. Mas como eles não sabiam, continuavam a tentar. Champi não sabia explicar a
razão para querer acasalar e fazer pinguins, mas era algo inato. Por isso, chegada a altura própria, passou longos dias a cortejar uma fêmea lindíssima chamada Patchi. Patchi não se interessava minimamente por ele. Por isso, um dia, Champi apanhou-a de surpresa durante o sono e resolveu o assunto. Passados 61 dias, Patchi pôs um ovo e, como todas as fêmeas imperador, passou-o ao progenitor macho, Champi, que teve que o guardar numa parte quentinha, por cima das suas patas. Entretanto criou-se um pedaço de mar alto, com peixes e orcas, à volta de Genitália. Patchi, que estava esfaimada e exausta, foi para lá encher-se de petiscos. Champi ficou ali a tomar conta do ovo. Passaram muitos meses e, de Patchi, nem sombra. Até porque não havia ainda sol. Naquele Inverno, o frio assolou Genitália como nunca tinha assolado antes. Principalmente porque nos Invernos anteriores ainda não havia Genitália. Champi resistiu corajoso ao frio polar durante vários meses. A vontade de trazer um pinguim ao mundo era tão forte que ele sabia que seria capaz de vencer qualquer cataclismo.

Certo dia, ainda Patchi passeava algures no mar alto, o ovo começou a tremer. Tremeu, tremeu, e rachou de um dos lados. Champi ficou ansioso. O seu filhote estava prestes a nascer. Champi não se conseguia conter de emoção. A casca quebrou completamente e Champi pode ver finalmente o resultado de todo o seu esforço. Para seu espanto, porém, ao invés de um pinguim bebé, lá dentro estava, sim, um universo. Champi ficou altamente decepcionado. Tinha andado todos aqueles meses, diligente, com o ovo para trás e para a frente, pensando que talvez até lhe saísse um pinguim a quem pudesse ensinar a jogar à bola, tinha superado grandes provas de coragem, de dedicação, e vai-lhe sair um universo? Era preciso azar. Champi esperava algo de fascinante e maravilhoso, não era um universo. E porquê logo a ele? Ele nem sabia o que podia fazer com aquilo.

Champi passou dois dias em rejeição. Dizia que o filho não era dele, que tinha sido algum pinguim que por pirraça lhe tinha trocado o ovo durante a noite. Ainda por cima, Patchi andava lá entretida no mar alto a enfardar peixe e não estava ali para ajudar nas decisões familiares importantes. Passado algum tempo, Champi concluiu que, qualquer interpretação que ele desse àquele estranho acontecimento, a realidade era incontornável: adoptado ou não, aquele universo era o seu filho e ele não podia rejeitar um filho. Champi decidiu chamar-lhe Afilósio. Não sabia bem quais eram os nomes típicos de universo, mas Afilósio pareceu-lhe fazer muito sentido. E começava pela letra A, o que alfabeticamente vinha antes de Ana, por isso ficaria nas carteiras da frente na escola e estaria sempre com muita atenção. Champi queria que Afilósio tivesse todo o sucesso do mundo. Até mesmo, todo o sucesso do universo, pensou com um sorriso de confiança.

Os primeiros dias de Afilósio foram terríveis. Chorava que se fartava. Era uma barulheira insuportável. Ao ponto de um dos pinguins na vizinhança comentar:

- Ainda bem que me safei da pestinha a tempo. Eu vi logo que um ovo que dizia Frágil e que trazia um lacinho de embrulho não podia ser boa coisa.

Champi não ouviu, e ainda bem. Champi foi um pai extremoso, sempre muito atento a cada preocupação do seu filho. Passado mais alguns dias chegou finalmente Patchi que, através de chamamentos muito peculiares, correspondidos de forma precisa por Champi, conseguiu logo encontrá-los. Quando viu o que tinha saído do seu lindo ovo, Patchi não quis acreditar na sua malfadada sorte. De imediato, disse que não iria aceitar aquela situação. Também disse que, independemente disso, tinha usado o tempo no mar alto para reflectir e que achava que a relação deles não tinha futuro e que passavam o tempo a discutir. Champi disse que eles não discutiam certamente, já que mal falavam por ela passar o tempo todo no mar alto a comer peixe. Patchi virou costas e desapareceu para sempre.

- Todos iguais... todos iguais... -- repetia volta e meia Patchi pelo caminho, cada vez mais distante, abanando a cabeça.

Champi estava então na difícil situação de pai solteiro. Ainda por cima, tinha a seu cargo um universo. Champi sabia que ia conseguir criar o seu rebento e que lhe ia dar todo o amor e carinho que um pai sabe dar a um filho. E foi precisamente isso que aconteceu. Ou algo parecido.

Nota: A Grande Pinguinada não é taxativa sobre a forma como se deu a concepção, existindo várias correntes. A mais proeminente, o Champismo Divino, diz que Champi se limitou a olhar para Patchi de forma tão ternurenta e tão pejada de Amor puro que Patchi foi fecundada por graça divina, de forma imaculada e que, apesar de sempre apregoar o contrário, tudo aquilo que Patchi sempre desejara era criar o seu próprio filho, e ainda mais se, em vez de um pinguim, por um acaso inesperado se tratasse de um universo. Segundo essa corrente, Patchi não abandonou Champi por falta de paciência para a vida familiar mas, pelo contrário, foi atacada por uma orca enquanto procurava alimento para o seu filho; essa orca malvada estraçalhou-a de forma brutal, apesar de ela ter lutado heroicamente pela vida.

A segunda corrente mais proeminente, o Champismo Terra-a-Terra, diz que Champi se limitou a violar Patchi durante a noite, que apesar de Patchi lhe estar sempre a fugir era exactamente isso que ela queria e que até fingiu estar a dormir para poder levar a melhor sem ter que dar o braço a torcer. Segundo esta segunda corrente, Patchi era uma promíscua sem vergonha que usava o seu corpo para seduzir pinguins macho e que depois os deixava pais solteiros. Também dizia que, depois de passar o ovo resultante deste esquema ao macho, Patchi roubava-o durante a noite para vender ao desbarato a orcas desconhecidas. Isso explicava que deixasse, em sua substituição, ovos com universos lá dentro. O efeito surpresa de sair um universo do ovo, deixava sempre os machos em grande azáfama e eles distraíam-se do problema principal que era terem-lhes roubado o seu filho.

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