Ubíquo e a mão de Lustrosa

Ubíquo era um grão-de-bico altamente filosófico e que punha em questão a cada instante o propósito e o valor da sua existência. Ubíquo tinha grande dificuldade em sentir que a vida era melhor do que a morte, em aceitar que havia actos absolutos de Bem e Mal. Foi isso que o fascinou em Ceroulas e que o levou a identificar-se tanto com ela. No entanto, rapidamente percebeu que a vida a dois com Ceroulas seria impossível. Não crendo que houvesse qualquer padrão no mundo, qualquer lei que se repetisse, qualquer constante, Ceroulas passava o tempo a ignorar toda a sua experiência passada e via sempre tudo como se fosse a primeira vez. Isso era interessante, como novidade, nos primeiros tempos da paixão. Talvez nos primeiros dois dias. Depois disso, Ubíquo começou a ter dificuldade em aceitar que ela lhe perguntasse constantemente o nome. Ele respondia sempre que o seu nome era Ubíquo.

- Ah, mas é que agora estavas debaixo de uma macieira. Podias chamar-te Ubíquo apenas quando não estavas debaixo de macieiras e queria ter a certeza -- explicou Ceroulas de uma dessas vezes.

Ceroulas era claramente uma inspiração filosófica para Ubíquo. Tanto assim era que no dia em que a conheceu criou imediatamente uma das suas músicas mais filosóficas, Universo Azul Carmim. Mas a vida prática com Ceroulas era demasiado complicada e, por isso, fugaz. Ubíquo, sempre muito genuíno e verdadeiro, explicou a Ceroulas que não conseguia mais viver assim e ela aceitou perfeitamente esse facto. Para ela, era apenas mais um acontecimento no Universo, nada do que era inesperado para os outros era inesperado para ela. Apenas a constância a surpreendia. O seu espanto era, sim, todos os dias, quando via que Ubíquo ainda estava com ela, não o facto de ele se ir embora. Não por se ter a si própria em má conta, simplesmente porque não esperava que qualquer coisa hoje ainda o fosse amanhã.

Passaram vários meses em que Ubíquo nunca encontrou qualquer inspiração para as suas músicas. Até que conheceu Lustrosa. Não chegou a falar com ela. Nem sabe se ela sequer sabe que ele existe. Apenas a contemplou a passar na rua, com o seu casaco hipnotizante. Ao fitá-la, os olhos de Ubíquo emanaram espirais de luz vermelha que ficaram reais a pairar no ar rodando à sua volta. Ficou absolutamente fascinado e quis levar Lustrosa para fora do mundo, para longe de tudo e viver paixão sem fim. No momento em que Lustrosa passou por ele, tudo ficou subitamente em câmara lenta. Lustrosa, a rua, tudo. Porém, Ubíquo sabia que as suas calças rotas, a sua filosofia existencialista e o seu desprezo completo pelo capital, pelo materialismo, nunca teriam lugar no universo de uma ervilha como Lustrosa. Ubíquo parou, virou-se e seguiu as suas curvas com o olhar à medida que ela se afastava. Viu-a ficar cada vez mais pequena, cada vez mais distante. À cadência dos passos de Lustrosa, Ubíquo sentiu um ritmo invadi-lo e ficar gradualmente mais forte. O seu sangue passou a circular nesse ritmo, preciso, o bater do coração marcando o mesmo exacto compasso. Ainda na rua, quase ao virar da esquina, sentiu uma melodia sair-lhe de dentro do peito e palavras involuntárias a sairem-lhe da boca

- A mão dela... a mão dela... -- repetia baixinho num ritmo antes nunca ouvido

e ao longo do caminho até casa, todos os tons da música que lhe chegavam não sabia bem de onde se concertavam num todo coerente, tomando aos poucos forma, consistência. Chegado a casa, gravou num só take o que viria a ser um dos seus grandes sucessos, A Mão Dela.





A MÃO DELA
Ubíquo

A mão dela é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

A mão dela é um poço e lá no fundo
Água limpa e cristalina
Que alimenta a colina,
O mundo

O barco parte, e eu
Vou navegar
No breu da noite, frio,
Vou acabar sem a mão dela

(A mão dela) é de ouro e de marfim
A mão dela nunca tocará em mim
E eu fico a ver o mar
Um barco espreita e eu vou acenar

[Improviso em lamento]


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