O sistema de atendimento de Kolmicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Kolmicas. Kolmicas é uma ervilha muito inteligente. Sabe muitas coisas e relaciona-as todas de forma exemplar. Por essa razão, as outras ervilhas passavam a vida a fazer-lhe perguntas. Ora eram sobre o caminho mais curto entre dois pontos da cidade, ora sobre efeitos secundários de cremes para peles mais verdes. Kolmicas acerta sempre em todas as perguntas. Desde que tenham uma resposta objectiva. É o seu dom. É esse e classificar informação. Até hoje nunca apareceu uma pergunta à qual não soubesse responder de imediato. As outras ervilhas estariam dispostas a pagar fortunas por aquelas respostas. Chegavam a tentar oferecer-lhe rios de vagens. Kolmicas nunca aceitava. Não o fazia por interesse materialista. Fazia-o apenas na ânsia de encontrar um dia uma pergunta difícil. Uma que lhe desse luta. Uma, quiçá, à qual não soubesse responder.

O tempo foi passando e essa pergunta desejada nunca chegava. As perguntas eram já tantas que era difícil para Kolmicas manter em dia o seu sistema de classificação de informação em caixinhas coloridas. Aos poucos, Kolmicas sentiu-se farta de ser escrava destas perguntas. Quis desistir. Falou com Lustrosa, que tinha sempre a solução perfeita para este tipo de problemas. Lustrosa analisou em detalhe todo o contexto e entregou-lhe um relatório de 400 páginas. Kolmicas leu o relatório atentamente e seguiu todas as instruções à risca.

Começou por implementar um sistema de gestão de filas de espera. Comprou um mostrador digital e um máquina de senhas numeradas. Ao chegar à porta de sua casa, as ervilhas tinham agora que escolher uma e uma só de três senhas: (i) questões envolvendo a palavra "que"; (ii) questões envolvendo a palavra "e"; (iii) outras questões. A senha tinha um número e as ervilhas podiam seguir a chamada no mostrador digital. Cada ervilha podia ler na sua própria senha uma estimativa da hora a que iria ser feito o atendimento. Para tornar o atendimento mais eficiente, antes de serem atendidas por Kolmicas, as ervilhas passavam agora por um sistema de triagem automático. O sistema fazia algumas perguntas às ervilhas para decidir qual o grau de urgência de cada pergunta e também para acelerar o tempo de resposta de Kolmicas. Quando confrontada com a pergunta, Kolmicas saberia já o tópico da pergunta e responderia ainda mais depressa.

As ervilhas adoraram o sistema. Mostrava dedicação por parte de Kolmicas e trazia todo um novo nível de organização ao atendimento. Punha fim aos conhecidos e odiados esquemas para dar o golpe na fila. Se tivessem algum assunto importante a tratar, podiam sair e voltar sem perder a sua vez. Para além disso, na sala de espera podiam fazer passatempos divertidos. Acima de tudo, demostrava o grande empenho de Kolmicas em tornar o atendimento mais eficiente. E as ervilhas gostavam quando outras ervilhas mostravam empenho nelas.

Ao fim de algum tempo algumas ervilhas começaram a ficar insatisfeitas. Umas ficaram algo confusas porque algumas perguntas usavam tanto a palavra "que" como a palavra "e" e era difícil decidir qual era a senha ideal para elas. Outras sentiam que o sistema de triagem automático fazia perguntas demasiado intrusivas, como o número de vezes que elas rebolavam nos lençóis antes de adormecer. Mesmo estando garantida pela lei a protecção dos seus dados pessoais, as ervilhas sentiram-se algo expostas. Elas confiavam em Kolmicas, mas alguma empresa mal intencionada podia encontrar forma de cruzar esses dados com a sua base de dados e se havia coisa que as ervilhas não podiam aceitar era um mundo sem privacidade. Outras ainda queixaram-se de que não havia um espaço onde pudessem deixar sugestões ou apresentar reclamações. Outras, por fim, não gostavam do tipo de passatempos na sala de espera.

Para fazer face a todos esses problemas Kolmicas criou um número de telefone gratuito de Apoio à Ervilha Consumidora (AEC) onde as ervilhas podiam, não só esclarecer todas as suas dúvidas, como deixar os seus comentários e sugestões. O atendimento telefónico era completamente automático através de um sistema de menus. Era algo que as ervilhas adoravam. Não corriam o risco de falar com alguma ervilha menos simpática. Bastava carregar nos dígitos do seu telefone para escolher as opções de cada menu de atendimento. Se não estivessem contentes com algum menu, podiam carregar na tecla asterisco (*) e personalizar a ordem das opções no menu e até mesmo o conteúdo de cada opção. Em qualquer altura, podiam também pedir para falar com um operador que ouvia todas as suas críticas e dizia numa voz grave e sensual expressões reconfortantes como "compreendo perfeitamente", "já tivémos outras queixas nesse sentido e estamos a trabalhar arduamente para resolver precisamente esse problema". No final o operador dizia sempre "mais alguma coisa em que possa ser útil?" e só depois -- e independentemente da resposta das ervilhas -- desligava. Se estivessem descontentes com o AEC, podiam carregar cardinal (#) a qualquer instante e deixar gravada a sua queixa.

Algumas ervilhas gostaram tanto do sistema que passavam horas e horas a personalizar os menus do AEC. Alteravam a ordem das opções, mudavam a voz do atendimento automático, deixavam sugestões de melhoramento. Sentiam-se bem por todas as suas preferências ficarem guardadas. Era realmente um atendimento personalizado e isso fazia-as sentirem-se importantes. Outras usavam-no como um sistema de terapia pós-laboral, carregando descontroladamente na tecla cardinal e deixando gravações aos berros de tudo o que lhes tinha corrido mal durante o dia.

A utilização do AEC passou a representar praticamente 100% de toda a operação do serviço de perguntas e respostas de Kolmicas. Na realidade apenas uma ervilha por mês chegava efectivamente a fazer uma pergunta. Essa ervilha era trazida até ao escritório de Kolmicas onde um holograma indistinguível de Kolmicas lhe dizia: "Essa é uma questão profunda. Terei que pensar e responder depois. O sistema tem os seus detalhes pessoais. Mando-lhe a resposta para a morada de casa ou por telefone". Invariavelmente a resposta perdia-se depois no intrincado sistema organizacional. Felizmente a ervilha podia telefonar para o número de AEC e requerer o seu reenvio. Na maior parte dos casos, entre alterações de menus e mudanças da voz de atendimento, a ervilha acabava por se esquecer da queixa que ia fazer. E mesmo quando as ervilhas eram perseverantes, acabava por passar tanto tempo que a resposta já não era necessária. Como tudo era automático, Kolmicas podia dedicar-se por inteiro à classificação da informação, a sua verdadeira paixão. Acima de tudo, sentia-se bem consigo mesma por poder disponibilizar um serviço útil e eficiente à comunidade.

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