Alipas e a ratazana almiscarada

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Um dia saíu de casa e fechou a porta. Fechou-a já depois de estar cá fora porque queria sair de casa. Se a fechasse quando ainda dentro de casa, teria que voltar a abri-la para sair. O importante é que saíu de casa e fechou a porta. Fê-lo nem com mais nem com menos força do que havia feito das 481 vezes anteriores. Morava numa cave. Subiu os mesmos 11 degraus de sempre.

Era muito cedo. Contemplou a rua deserta. Ou quase deserta. Um gato rosa-fluorescente pairava airoso a um metro do chão. Tinha dois chapéus pretos de mágico, um em cima do outro, e descascava amendoins. Mas não os comia. Aos amendoins. Apenas os descascava. Descascava-os à cadência exacta de um amendoim por segundo. Ao fim de exactos 3601 amendoins, deitava vapor pelos ouvidos, punha a língua de fora e dizia: "Lá se foi outra hora. Praticamente uma hora, vá. Talvez um pouco mais, vá. Mas não muito. Olha, cheira a feldspato triclínico.". Mas fazia-o num dialecto africano muito antigo. Tão antigo que só ele e uma ratazana almiscarada da Namíbia o conheciam. Não que fossem particularmente fluentes. Sabiam apenas as expressões mais úteis.

A tal ratazana almiscarada da Namíbia era famosíssima em toda a África subsaariana. Tornou-se uma celebridade no dia em que, após engolir espinafres fritos com demasiado alho, ficou perpetuamente em trabalho de parto. "Faça força, muita força.", gritava a enfermeira em desespero. A médica de serviço informou a família de que se tratava de um caso raríssimo. Apenas tinha sido observado uma vez no passado e há mais de duzentos anos. E tinha sido por uma coruja de lábios grossos com um anel de diamante. Felizmente a coruja foi passando a informação de geração em geração para que chegasse aos nossos dias. Essa coruja era obcecada com a perda de informação. A perda de informação era para ela como a sopa de ervilha. Mexia com as suas entranhas.

Era muito desagradável estar permanentemente em trabalho de parto. Ainda para mais para uma ratazana almiscarada. Tinha que andar sempre com a cama e o hospital atrás. Mas, pior ainda, não só tinha todos os sintomas do parto, como tinha adquirido uma disfunção que não lhe permitia interiorizar que o trabalho de parto era perpétuo. Na sua pobre ingenuidade, a ratazana fazia força, sempre muita força, horas e horas a fio, porque acreditava genuinamente que estava em trabalho de parto. E estava.

Curiosamente, e isto sim tornava-a num caso de extenso estudo na comunidade médica, a disfunção que a tornava incapaz de perceber que o parto era perpétuo, propagava-se a todos os que estivessem num raio de dois metros. Todos à sua volta estavam verdadeiramente convencidos de que o parto estava, a cada momento, iminente. Isso explicava a azáfama constante dos médicos e das enfermeiras que a cada instante seguiam todos os procedimentos clínicos necessários para trazer ao mundo uma ratazana bebé saudável.

Por vezes um dos membros da equipa médica afastava-se e mal saía daquele raio de dois metros percebia que tudo aquilo era uma fantochada. Mas quando tentava avisar os colegas eles respondiam sempre "Epá, se queres falar, vem cá mais perto.". Outras vezes, passava um homenzinho mal encarado e, do lado de fora da sala de partos com a porta entreaberta, dizia insistentemente "Ah, isso é fita! A gaja que vá para casa!". Mas ninguém lhe dava ouvidos porque esse homenzinho era feio e acreditava que a Lua não existia e que a Terra era um paralelepípedo com fitinhas amarelas penduradas. Ah, sim, e era ateu.

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