A alegre existência de Ceroulas

Conheço uma ervilha. Chama-se Ceroulas. Ceroulas recusa-se a adoptar todo e qualquer facto como verdadeiro. A menos que exista uma prova irrefutável desse facto. O seu moto é: o Universo joga aos dados, os dados estão viciados, e a probabilidade de sair cada face altera-se de forma aleatória a cada lançamento. Ceroulas sabia que este moto não era daqueles que ficava no ouvido. Mas não se importava. Ela nem sequer sabia se existiam de facto outras ervilhas no mundo, para quê preocupar-se com a sua opinião acerca do seu moto.

Ceroulas não tinha qualquer poder sobre esta sua visão do mundo. Era algo intrínseco que ela não conseguia controlar. Ceroulas sabia como esta sua visão não tinha praticamente adeptos e como isso a tornava motivo de chacota onde quer que ela fosse. Já tinha tentado aderir à tão difundida Ordem Natural, ou mesmo à Grande Pinguinada*, com tantos fiéis nos dias de hoje, mas tudo lhe pareceu demasiado arbitrário. Tentou virar-se para o Apinguinismo**, mas havia demasiadas crenças envolvidas. Mesmo a Ciência, com o seu ridículo método científico, lhe parecia uma anedota. Por que raio é que ela havia de acreditar que duas experiências feitas nas mesmas exactas condições teriam exactamente o mesmo resultado? Parecia-lhe um axioma demasiado forte para basear todo o seu conhecimento nele. No seu âmago profundo teria sempre aquela sua visão muito própria do mundo. Só lhe sobrava aprender a conviver com ela.

A maior parte da vida de Ceroulas era na sua essência um grande conjunto de agradáveis surpresas. Começava o dia logo bem disposta quando se apercebia de que tinha acordado na mesma cama onde se tinha deitado e a disposição dos objectos no quarto era ainda a do dia anterior. Até o tecto tinha a mesma cor. À medida que o sono passava, e conseguia pensar, alegrava-se com o facto de ter na cabeça dela as memórias do costume, acrescidas ainda de todas aquelas que tinha adquirido durante o dia anterior. Ficava contente por conseguir andar quando se levantava da cama. Estava já preparada para aprender a andar nesse dia, mas felizmente podia poupar esse esforço. Maravilhava-se com o facto de sair água das torneiras do lavatório. Que invenção deliciosa aquela da água canalizada. Às vezes distraía-se e ficava ali a abrir e a fechar a torneira. Abrir, fechar, grito de espanto. Abrir, fechar, grito de espanto. Às vezes dez minutos naquilo. A sua preferida era quando, já do lado de fora, trancava a porta de casa e a chave que tinha encaixava na fechadura na perfeição. Era incrível como a probabilidade de ter na mão uma chave que encaixasse ali era praticamente nula, mas de todas as vezes sempre a chave que tinha na mão a fechava sem qualquer resistência.

Ceroulas sabia bem como era fácil pensar que todas estas pequenas coisas não eram coincidências e atribuir-lhes um desígnio profundo, uma Ordem Natural. Mas Ceroulas era como era e não o conseguia evitar. Mesmo não sendo capaz de acreditar em nada, havia algo nela que não a deixava negar a sua própria identidade. E, assim que põs o pé na rua, ali ficou a contemplar os carros a passar com um sorriso estático nos lábios. Vinha um autocarro ao longe. Era o 35. Ainda passava pela sua rua. E parava na mesma paragem. E ainda passava ao Arco da Vagem. Ela confirmou com o motorista antes de entrar. Como fazia aliás todos os dias. O motorista adorava-a.

Naquele dia um carro travou de repente e o autocarro abalroou-o. Os passageiros ficaram todos em pânico. Corriam desalmadamente de um lado para o outro. Ceroulas ficou maravilhada com o facto de o choque de um autocarro num carro continuar a ter os mesmos efeitos colossais de sempre. Saíu e, enquanto os bombeiros tentavam desencarcerar o condutor do veículo ligeiro, Ceroulas entreteve-se a analisar os estragos no metal do automóvel. Passava os dedos ao de leve na pintura. As partes mais pontiagudas de tinta continuavam a fazer pequenos cortes nos dedos. E isso continuava a doer. Fascinante.


* A Grande Pinguinada era uma religião poderosa que acreditava que o mundo tinha sido criado pel'O Grande Pinguim, de seu nome Champi. De acordo com a Grande Pinguinada, a religião mais influente no mundo dos vegetais, Champi era omnisciente, omnipresente e iria julgar as nossas acções quando morressemos para escolher se iríamos para o Pólo Norte ou para o Pólo Sul. Havia por todo o mundo muitos locais de culto, os chamados Iglôs, que tinham um pinguim imperador rosa-fluorescente à entrada, no topo, onde as ervilhas iam grasnar cantos de acasalamento de pinguim para comunicar com Champi.

** O Apinguinismo assentava na crença de que não existiam pinguins de qualquer espécie ou, pelo menos, de que, a existir, não tinham criado o mundo. Tomava como certo que aquilo que fazíamos em vida não teria qualquer impacto no pós-vida pela simples razão de que o pós-vida para os apinguinistas, não existia. Existir, existia, mas limitar-se-ia a uma existência um bocado dispersa já que os nossos átomos aos poucos iriam ser utilizados para outras coisas.

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