Porquina e o Índice de Covas Corporais

Conheço uma ervilha. Chama-se Porquina. Aliás, chamava-se. Já morreu. Foi vítima da gripe do grão-de-bico. Porquina teve sempre uma vida complicada. Como todas as outras ervilhas, aos seis anos entrou para a escola. Já era uma menina grande. Pelo menos, foi o que a mãe lhe disse quando a deixou sozinha e em lágrimas à porta da escola.

Ao chegar, viu um grupo de ervilhas da idade dela. Pareciam simpáticas e Porquina, educada, disse-lhes olá. Precisava mesmo de encontrar bons amigos para ultrapassar aquele trauma de entrar para a escola. Uma delas apontou-lhe o dedo e começou a gritar "Esburacada! Esburacada!". Porquina sabia que o seu Índice de Covas Corporais* (ICC) estava acima do limite recomendado pela Organização Mundial de Saúde das Ervilhas (OMSE). E não convivia particularmente bem com esse facto. Mas era escusado apontarem-lhe assim o dedo. Ela sabia que isso se chamava discriminação e que isso era algo proibido por lei. Virou-se para a ervilha que lhe apontou o dedo e disse que se ele não gostava, havia quem gostasse. Depois disso todas as outras 11 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Esburacada! Esburacada!".

Porquina afastou-se do grupo e foi ter com um outro grupo de ervilhas. Todas elas pareciam ter um ICC muito superior ao seu. Mas isso não a incomodava. Fazia sentir-se bem consigo mesma, até. Mesmo sabendo que uma ervilha não se media pelo seu número de covas. Algumas raízes de conversa depois apareceu uma outra ervilha que disse olá. Era muito clarinha. De um verde celestial. Uma delas apontou-lhe o dedo e gritou "Branquelas! Branquelas!". Ela respondeu que era branquelas e que tinha muito orgulho em sê-lo. Que ser branquelas não era defeito nenhum e que, mesmo de diferentes variedades, por dentro, as ervilhas eram todas iguais. Depois disso todas as outras 5 ervilhas do grupo lhe apontaram também o dedo e gritaram "Branquelas! Branquelas!". A ervilha foi-se embora com ar corajoso. Mais ao longe, desatou a chorar.

Porquina deixou de se sentir bem naquele grupo. Saíu do grupo e foi ter com a ervilha que estava a chorar. Sentaram-se ao lado uma da outra num banco da escola. Era frio o banco. Ficaram a olhar o infinito por minutos a partilhar o silêncio cúmplice. Ainda de olhos molhados, a amiga olhou Porquina.

- A tua roupa é ridícula -- disse a amiga antes de se levantar e se afastar.

Porquina viu-a ir-se embora e voltou a olhar o infinito. A sineta da escola tocou. Levantou-se e foi para a sua primeira aula.


* O Índice de Covas Corporais de uma ervilha é a razão entre o número de covas e a superfície total da ervilha ao quadrado. É utlizado clinicamente para medir quão proporcional é uma ervilha. Quando muito acima dos valores médios, algumas ervilhas pagam fortunas por intervenções cirúrgicas designadas por covosucções em que grande parte das covas lhes é retirada.

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