Camola e Brucélio

Conheço uma ervilha. Chama-se Camola. Depois da saga da compra do Ambrósio, Camola decidiu que precisava de lhe arranjar um substituto. Até porque, por ser grande e rijo, Ambrósio sobreviveu à queda do quinto andar e foi preso por homicídio negligente de um pombo. Negligente porque, tivesse estado com atenção, tinha-se desviado do pobre pombo. Ambrósio tentou alegar instinto de sobrevivência já que, não fora o pombo a amortecer a queda, teria morrido. Não teve sucesso e apanhou dezasseis anos de prisão. Já a Camola nada aconteceu porque ao atirar um computador do quinto andar, era impossível que estivesse premeditadamente a querer fazer mal àquele pombo em particular. E também porque ela negou sempre que tinha atirado Ambrósio da janela. Justificou tudo com um bug do Uindôs que era conhecido por abrir e fechar janelas quando menos se esperava. Todos estes pormenores são irrelevantes. O importante é que Camola precisava de um computador com urgência.

Passou numa loja de computadores muito recente na baixa da cidade e sentiu-se compelida a entrar. Não por qualquer motivo relacionado com os produtos à venda, mas tão-só pelas cores hipnotizantes da montra e pela grande maçã já com uma dentada que tinham à entrada. Camola adorava maçãs. Já lá dentro, viu uma pequena caixa branca reluzente. Estava para venda. Era um computador. Era lindo, por isso trouxe-o para casa. Em casa, ligou-o. Entrou num mundo fascinante. Tudo funcionava, tudo era compatível, tudo fazia exactamente aquilo que ela queria, como ela queria e quando ela queria. Sempre que não sabia como fazer alguma coisa, Camola fazia a primeira coisa que lhe vinha à cabeça e funcionava sempre. Um sonho tornado realidade. Nem dois minutos passados sobre a chave de casa na porta e já Camola a ouvir a sua música favorita de Robirta, que entretanto já era O Cheiro da Paixão. Sentiu que estava apaixonada pelo seu novo computador. Decidiu chamar-lhe Brucélio.

Brucélio era de facto perfeito. Camola estava por demais satisfeita. A única coisa que a incomodava era que, embora pudesse ouvir toda a música que quisesse no Brucélio, ele era grande demais para o levar quando ia fazer o seu rolling* matinal. Decidiu comprar um aparelho mais pequeno só para esse efeito. Estava tão satisfeita com Brucélio que foi novamente à loja da maçã. Na loja aconselharam-na a comprar um dos novos iRoll que vendiam. Disseram-lhe que os iRoll eram muito compatíveis com o Brucélio e que se ela arranjasse um aparelho de outra marca qualquer podia haver todo o tipo de problemas. Camola achou que só um problema já seria muito desagradável portanto todo o tipo de problemas seria mesmo muito mau. Assim fez. Levou o iRoll. E não se arrependeu. Bastava ligar o iRoll ao Brucélio e a magia acontecia. Toda a música de ambos se sincronizava e a vida fluía em perfeita harmonia.

Aquela empresa da maçã era de facto fenomenal. Pensavam em todas as necessidades dos utilizadores. Nada falhava. Quando decidiu comprar um telemóvel, porque o seu estava velho, Camola não hesitou em dirigir-se à loja da maçã com a dentada. Mais uma vez, não se arrependeu. Comprou o telefone deles. Aliás, tudo foi muito fácil porque não havia sequer modelo ou características para escolher. O modelo era único, só havia aquele. Mas isso fazia todo o sentido porque todas as ervilhas tinham a mesma exacta necessidade: telefonar. Se a necessidade era a mesma, para quê as escolhas? Para além disso, é muito perigoso dar escolhas às ervilhas. Elas quase nunca saberiam bem o que fazer com a liberdade. Pensou também que não era assim espectacular não poder correr duas aplicações ao mesmo tempo, nem ser impossível mandar MMS com fotos do seu dia-a-dia atribulado às amigas. Nem o facto de não poder guardar o rascunho de um SMS enquanto escrevia outro SMS. Ainda por cima porque a maior parte dos telefones banais de outras empresas conseguiam fazer tudo isso. Mas isso era amplamente compensado por toda aquela integração perfeita com o seu adorado Brucélio. E porque era lindo. E porque todas as amigas gostavam mais dela por ela ter um.

Camola descobriu que a grande empresa da maçã não parava de pensar nela e tinha preparado, só para ela, um sítio único na net onde Camola podia comprar toda a música que queria. Adeus aos desagradáveis CDs, e ao ter que sair de casa para comprar música. Se era para fazer exercício, ia fazer rolling, não ia comprar CDs. E uma pechincha. Uma vagem por cada música. Ela podia sempre comprar noutro sítio mas, se fosse ali, tudo era muito mais simples e podia comprar a música directamente do seu iRoll. Até mesmo durante o rolling matinal, algo que lhe dava prazer. Até porque quando as ervilhas a viam naquilo ficavam a achá-la uma ervilha muito moderna.

Comprar música naquele sítio era ainda mais tentador porque, ao fim de seis músicas, recebia um vale 2 por 1 para usar numa cadeia de pizzarias. Camola não gostava particularmente de pizzas e muito menos de comer sempre na mesma cadeia, mas tinha a grande vantagem de ter esse desconto. Para além disso, quanto mais consumisse naquele restaurante, mais vales de desconto tinha para comprar o "Diário do Prado", um diário generalista de informação sobre o mundo. E Camola gostava muito de saber coisas sobre o mundo. Por isso não desperdiçava um único vale que fosse. Até chegava a ir mais vezes à tal pizzaria, só para poder comprar o jornal do dia. Esse jornal era fantástico porque se se acumulasse pontos suficientes, tinha-se um desconto substancial em pacotes de férias numa praia específica da República Inomesa. Era uma pena ter que ser naquela praia em particular, até porque não era assim nada de especial, mas o desconto era substancial e valia a pena. E na praia podia usar internet de graça se usasse o seu Brucélio. E o aluguer do carro era oferecido no pacote, por isso valia mesmo muito a pena. Tinha que ser um modelo específico, mas era um carro muito jeitoso. Funcionava com o mesmo sistema operativo do Brucélio.

Ao fim de alguns meses, Camola estava tão satisfeita com todos os produtos que tinha conseguido obter através da sua compra do Brucélio que tinha conseguido convencer todas as amigas da espectacularidade da sua conquista. Aos poucos, todas as suas amigas compraram um computador igual ao dela e, pelas mesmas razões, foram gradualmente seguindo os mesmos passos de Camola. O leitor de música, o telemóvel, as pizzas, o jornal, as férias e o carro. Algumas ervilhas queixavam-se da falta de escolha que havia e da standardização, de como todas tinham coisas iguais e todas faziam o mesmo. A verdade é que isso também era bom porque tinham mais em comum e sentiam-se mais próximas umas das outras. E, se se alheassem da falta de escolha, os produtos que acabavam por utilizar eram os melhores do mercado. Não tinham liberdade de escolher quase nada nesses produtos, porque eram todos iguais, mas eles eram funcionais e, acima de tudo, muito bonitos. Eram autênticas obras de arte. E podiam colar autocolantes da sua predileção para os tornar únicos. Isso deixava-as felizes.

* O rolling é um tipo de exercício feito por muitas ervilhas. Consiste em andar a rolar a uma velocidade aproximadamente constante pela rua, não porque se precise de ir algum lado concreto, mas apenas pelo exercício. A maior parte dos ervilhas gosta de o fazer antes de ir para o trabalho ou à tardinha. Algumas, mais atarefadas, usam mesmo passadeiras automáticas em que podem rolar o tempo que quiserem sem sair do mesmo sítio.

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