Chiquita e o seu teste 99.8% seguro

Conheço uma ervilha. Chama-se Chiquita. Chiquita tem uma capacidade fora do vulgar para se lembrar de formas muito originais de fazer vagens. São quase sempre ideias efémeras e o lucro que advém de cada uma dessas ideias é muito pequeno e localizado no tempo. Porém, são tantas as ideias e sempre tão fora-de-série que Chiquita, só à custa delas, consegue manter um rendimento mensal de encher a casca a qualquer ervilha.

Um destes dias, Chiquita teve mais uma das suas ideias geniais. Surgiu-lhe enquanto navegava na net, uma actividade à qual dedicava uma ínfima parte do seu tempo. Daí que fosse uma coincidência mirabolante que a ideia lhe tivesse surgido precisamente nessa altura. Chiquita era uma crente acérrima no Princípio da Ordem Natural* e, devido a toda aquela improbabilidade, achou que aquela ideia devia ser muito especial. Ao navegar na internet, essa fonte fidedigna de informação, Chiquita viu uma estatística interessante: o número de ervilhas no mundo afectadas pelo vírus da Chupilose do Carnaval, apenas sexualmente transmissível, era 0,2% da população total de ervilhas no mundo. Essa informação crucial, por Chiquita desconhecida até então, fez-lhe surgir um sorriso de cova a cova. Tinha acabado de descobrir um método muito engenhoso de testar a doença.

Chiquita começou a preparar o primeiro kit de teste da doença. Comprou um tubo de ensaio baratucho e colocou lá um líquido verde com cheiro a refogado. Arranjou um autocolante tipo raspadinha e arranjou forma de colocar debaixo da superfície a riscar a seguinte mensagem: "Não tens chupilose, pá. Mas para a próxima, cuidadinho!". Chiquita sorriu por dentro quando percebeu que, de acordo com a estatística que tinha visto, tivesse ou não chupilose a ervilha, este kit acertaria em 99,8% dos casos. E 99,8% parecia-lhe um teste bastante fiável. Para tornar o teste mais profissional, Chiquita preparou um folheto informativo. As instruções eram as seguintes:
Para fazer o teste, (1) abre o tubo e (2) sopra lá para dentro. Se o líquido mudar de cor, não deves ter chupilose. Mas telefona-nos porque podes ter problemas crónicos de hálito. Se não mudar de cor, é um bom prenúncio. Em qualquer caso, risca o autocolante para saber o resultado. Podes usar uma moeda.

Quando havia instruções com muitos detalhes e a sugerir coisas ridículas e que as ervilhas não conseguiam entender, todos acreditavam mais na fiabilidade do teste. E era preciso dar segurança às ervilhas que faziam este tipo de teste.

Chiquita estava contente consigo mesma por ter feito tal descoberta tão fascinante e por ter conseguido usar as técnicas da Teoria do Casaco que levariam este teste ao número máximo de ervilhas. Fazia-o de forma altruísta, para ajudar todas as ervilhas em apuros. Sentiu-se útil à comunidade. Depois, apercebeu-se de que, dada a natureza do teste, nem chegava a ser preciso qualquer contacto directo com a ervilha que estava a ser testada. Podia, aliás, ser tudo feito na internet. Embalada de toda essa motivação, Chiquita criou um mega site na net onde as ervilhas podiam fazer o seu teste da chupilose a troco de 10 vagens. E podiam fazer dois testes pelo preço de um. Desde que fossem os dois na mesma ervilha. Algumas ervilhas queixaram-se dizendo que depois de fazerem o teste já não iam precisar do outro. Mas Chiquita explicou-lhes que ao fazerem dois, aumentavam a fiabilidade do teste.

Num processo de generalização abstracto digno das mentes mais brilhantes, Chiquita notou que este teste podia ser alargado a todas as doenças cuja expressão na população mundial de ervilhas fosse igual ou superior à taxa de fiabilidade que estivesse disposta a anunciar. Passado pouco tempo, tinha já montado um site onde testava todas as doenças presentes em menos de 1% da população. Eram praticamente todas as doenças relevantes para as ervilhas. Aos poucos a sua empresa cresceu e monopolizou o negócio de testes de doenças através de fusões e aquisições de outras empresas de testes mais pequenas. Eram empresas que não tinham conseguido crescer porque tinham ficado presas a burocracias legalistas que as obrigavam a seguir todo um conjunto de práticas deontológicas. Com as aquisições todas essas práticas puderam ser eliminadas e o mercado pôde funcionar livremente. Foi também uma lição de economia que Chiquita deu ao mundo.

Certo dia, houve uma ervilha muito esperta que provou por a+b que aquele teste não fazia sentido. Era uma ervilha que adorava provar coisas por a+b. Gostava da abstracção das variáveis e de como cada uma dessas letras podia representar tantos números diferentes. Já tinha aliás provado um monte de coisas por a+b. Fazia-a sentir-se bem. Chiquita foi processada e teve que retirar o seu teste do mercado. E teve que pagar uma indemnização. Não iria ficar ali a rir-se a fios de vagem despregados. Pagou um monte de dinheiro. Foi praticamente 17% daquilo que ganhou com a história do teste, o que era mesmo muito porque ela tinha ganho muito com o teste. Pagou pelo que fez. Por essa altura, porém, já Chiquita tinha outra ideia em marcha. Teve-a enquanto aparava a relva do jardim, coisa que só fazia uma vez por ano. Outra coincidência. Claramente, outra das suas ideias especiais.

* O Princípio da Ordem Natural (PON) é uma crença profunda de que acontecimentos muito improváveis que têm de facto lugar são especiais. Esses acontecimentos são designados por Coincidências Não Fortuitas. Algumas ervilhas levam este princípio mais longe e chegam mesmo a diminuir a probabilidade de acontecimentos desejados apenas para os tornar ainda mais especiais.

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