Os espasmos de Kolmicas

Conheço uma ervilha. Chama-se Ceroulas. Ceroulas começou a ter sonhos recorrentes com o Universo Azul Carmim. Na verdade, ela já costumava sonhar com ele todos os dias. Mas agora sonhava cada vez mais. E com mais força. Às vezes, mesmo acordada, chegava a ver grandes bandos de albatrozes a voar na sua direcção para a comer. Sentiu que devia fazer alguma coisa. Decidiu falar com Kolmicas. Apesar de estar farta das perguntas das ervilhas, Kolmicas tinha sempre tempo para questões profundas como esta. E Ceroulas sabia-o. Era daquelas poucas coisas que mantinha como certas na sua base de dados cerebral.

Ceroulas telefonou a Kolmicas. Ficou logo alegre quando percebeu que ao levantar o auscultador do telefone e ao chegá-lo até ao ouvido, o auscultador do telefone ia de facto parar ao seu ouvido. E precisamente ao ouvido esquerdo, tal como ela queria. Do outro lado atendeu Kolmicas. Ceroulas notou algum ruído na linha, mas lembrou-se que deveria ser o barulho de Kolmicas a recortar jornais, prosseguindo a sua classificação de notícias em caixinhas azuis e vermelhas.

Apesar de dedicar todo o seu tempo livre a manter um maravilhoso sistema organizacional baseado em caixinhas coloridas, Kolmicas tinha sempre tempo para conversar com Ceroulas. Eram muito amigas. Ambas sabiam das suas diferenças abissais e de como seriam sempre eternas, mas eram amigas. E as amigas gostam umas das outras apesar das suas diferenças.

Ceroulas falou-lhe do Universo Azul Carmim e de como tinha sonhos recorrentes com um espaço abstracto formado por todos os conceitos possíveis e imaginários. Falou também nos albatrozes maquiavélicos, mas Kolmicas não pareceu dar importância. Kolmicas não era muito de aves. Ceroulas prosseguiu dizendo que lhe parecia até razoável escrever um programa de computador que ficasse a enumerar todos os conceitos desse espaço. Um a um. Um a um. Para sempre. Na posse desse maravilhoso programa, não seria preciso descobrir mais nada no mundo. Poderia levar algum tempo mas, qualquer que fosse o conceito genial, nalguma altura o programa iria acabar por criá-lo. Ceroulas babou-se.

Kolmicas não lhe pareceu muito interessada. Mas como amiga, ouvia-a sempre com muita atenção. Ceroulas tentou então apelar directamente a Kolmicas, dizendo que todas as notícias de jornal, os pedaços de informação que alguma vez alguém podia escrever ou transmitir, viveriam nesse universo fascinante. Kolmicas ficou por minutos a contemplar um ponto do tecto enquanto imaginava um armazém de caixas vermelhas e azuis. Imaginou-o ultra organizado e isso acalmou-a. Depois, nessas suas visões, apercebeu-se de que esse armazém não tinha qualquer fim visível, de que as caixas vermelhas e azuis se estendiam por uma infinitude inimaginável e começou com suores frios. Sentiu que não iria ter tempo para organizar em caixas todo aquele Universo Azul Carmim. Sentiu uma falta de ar sôfrega. Os suores passaram a espasmos ritmados até que Kolmicas caíu redonda no chão. No momento do estrondo, Ceroulas viu o seu telefone transformar-se num albatroz gigante que ficou a olhá-la fixamente sem piscar os olhos. Ceroulas não ficou surpreendida. Era o que ela esperava da vida. Fez-lhe uma festa no pescoço. Era um animal doce. Tinha penas suaves.

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