O restaurante de Alipas

Conheço uma ervilha. Chama-se Alipas. Alipas abriu um restaurante de comida Urdichesa. A especialidade era sopa de feijão verde. Era uma delícia. Algumas ervilhas manifestaram-se ferozmente contra a abertura desse restaurante. Consideravam vergonhoso que nos tempos modernos ainda houvesse ervilhas a comer outros vegetais. Defendiam que as ervilhas deveriam fazer uma dieta tão-somente à base de água. Eram ervilhas ditas aquarianas. Acreditavam que havia muitos pratos saborosos que podiam ser confeccionados usando apenas água e que muitos dos vegetívoros nem dariam conta da diferença.

No dia da inauguração, concentraram-se à porta do restaurante gritando palavras de ordem -- "Assassinos! Assassinos!" -- e empunhando grandes cartazes com slogans variados -- "não ao genocídio da couve-flor", "vivam os nabos!", ou mesmo outros mais rebuscados como "e se a tua mãe fosse uma abóbora?". Uma ervilha, claramente vegetívora pelos dentes mais desenvolvidos, saíu do restaurante para encetar conversações. Dirigiu-se à líder da manifestação e defendeu a posição das ervilhas vegetívoras de forma intransigente dizendo que água não puxava carroça. As aquarianas ficaram a olhar umas para as outras sem saber muito bem o que dizer. De facto elas nunca tinham visto água a puxar carroças. Por isso, calaram-se. Baixaram os cartazes e foram cada uma para sua casa cabisbaixas.

Alipas tinha contratado os serviços de colnsultoria de Lustrosa para garantir o sucesso do empreendimento. A facturação do restaurante no primeiro trimestre ficou muito aquém do previsto por Lustrosa. Em parte porque os serviços de Lustrosa eram muito caros. Lustrosa, porém, tinha por hábito retirar essa informação dos relatórios de contas que fazia -- era, dizia, prática da casa -- e Alipas atribuiu por inteiro o insucesso nas vendas a algum problema fundamental do seu serviço. Mas não conseguia perceber qual era. Alipas pediu novamente ajuda a Lustrosa. Mais umas vagens que arderam. Lustrosa percebia muito de como ter mais vendas num restaurante. Era nestas alturas que todo o conhecimento adquirido a tentar que os outros gostassem dos seus casacos se revelavam frutíferos.

Lustrosa foi ao restaurante de Alipas. Lá, iniciou todo um processo de observação minucioso. Começou por apontar a escolha dos tons dos cortinados como fraca. As ervilhas queriam tons quentes, era certo, mas nunca aquele tom particular de laranja. Havia outros tons de laranja com muito mais impacto no estado mental dos consumidores. Mas o que deixou Lustrosa em estado de choque foi aperceber-se de que Alipas não tinha implementado qualquer sistema de falso feedback. Disse que a Teoria do Casaco moderna assentava mais do que nunca na percepção aparente por parte do consumidor de que a sua opinião estava a ser tida em conta. Depois perguntou se Alipas estava a perceber a ideia. Alipas acenou que não com a cabeça. Lustrosa ignorou esse facto. Até porque já tinha mostrado o seu interesse pelo bem estar de Alipas ao perguntar se ela estava a perceber a ideia. Prosseguiu a explicação. Clarificou que, cinco minutos depois de estar servido o prato principal, um dos empregados deveria passar pela mesa e perguntar se estava tudo bem com a comida.

Alipas achou a ideia inovadora e seguiu o conselho. A ideia foi um sucesso. As ervilhas adoravam que lhes perguntassem se estava tudo bem. Praticamente todas diziam que sim, nem que fosse porque não tinham grande coragem para confrontar o empregado. Para além disso, o facto de lhes estarem a perguntar se tudo estava bem, fazia-as sentir-se alegres e bem dispostas e aceitar eventuais defeitos da comida. De facto, as ervilhas ficaram tão dependentes desta pergunta, que ao fim de algumas semanas todos os restaurantes da zona tiveram que contratar os serviços de Lustrosa para implementar a mesma medida. Se não o fizessem, iriam à falência.

Os empregados fizeram todos os esforços por nunca se esquecer de perguntar se estava tudo bem com a refeição. Ao fim de algum tempo alguns clientes começaram a queixar-se de que já era a segunda vez que lhes perguntavam aquilo. Na verdade, seguindo um conselho anterior da empresa de Lustrosa, os empregados não estavam alocados a mesas específicas. Lustrosa tinha explicado que se optimizavam recursos e se minimizava o tempo de espera dos clientes se cada empregado pudesse servir qualquer mesa. Dessa forma, era muito difícil saber se algum empregado teria já passado anteriormente pela mesa. Lustrosa sugeriu então que se passasse a ter uma pequena jarra com uma flor em cada mesa e que, depois de feita a pergunta, se devia colocar uma flor adicional nessa jarra. Era o chamado Mecanismo de Controlo do Sistema de Falso Feedback (MCSFF), hoje um padrão na Teoria do Casaco da Restauração. Assim, o empregado apenas precisava de verificar o número de flores para decidir se devia ou não indagar o cliente acerca da qualidade da comida.

O sistema funcionou na perfeição. Os empregados diligentes não falhavam agora uma única vez. Aos poucos, as ervilhas ficaram tão familiarizadas com o sistema que começaram a pedir para escolher a cor das jarras e a variedade de flores usadas. Tornou-se algo tão importante que era a primeira coisa que as ervilhas pediam quando se sentavam à mesa. Antes da comida, antes das bebidas, antes de tudo. Passou a haver um menu à parte com fotos de flores para as ervilhas escolherem. Gradualmente, a variedade de flores disponível foi aumentando e a de pratos diminuindo. Ao fim de algum tempo, havia apenas um prato único, cuja qualidade deixava muito a desejar. As ervilhas não se importavam com isso pois, para compensar, havia flores oriundas de todo o mundo e em cores tão diversas e empolgantes. O sucesso do restaurante de Alipas atingiu níveis absolutamente inéditos no país para um estabalecimento de restauração.

Até às ervilhas aquarianas agradou imensamente toda a importância dada às flores e algumas delas começaram a ir ao restaurante apenas para contemplar diferentes tipos de pétalas e deixar sugestões sobre as cores das jarras. Algumas vezes acabavam por se sentar. Chegavam mesmo a consumir. Ficavam horas e horas a conversar naquelas mesas bem decoradas. Pediam um copinho de água.

No comments:

Post a Comment